19 de julho de 2025

viva a candura do povo!

Tiro o meu chapéu, vejam só, para a senhora Ruth Rocha, fazendo literatura de cordel no livro BOI, BOIADA, BOIADEIRO (1987). Tiro também o chapéu para o pintor paulista José Antonio da Silva e suas paisagens rurais.

Ela, nele se inspirando, estabelece uma relação palavra e imagem que se chama écfrase e é, ao mesmo tempo, um diálogo com o tempo de frutas e colheita de algodão, festança e desejos de reforma agrária, nascimentos, agradecimento, mortes e derrubada da mata, subtexto da identidade e precariedade do povo brasileiro.
NASCIMENTO DO BEZERRO

Bezerrinho, mal nascido,
Nos braços do seu vaqueiro;
Apenas foste parido
Já tens dono e cativeiro.
És como o pobre, vendido,
Por poder, ou por dinheiro.
Tiro chapéu, pela terceira, para o projeto gráfico (só pode ser Walter Ono, você sabe, você viu, era um dos sócios da Quinteto Editorial), pois o branco é moldura para os quadros, é moldura para a leitura das sextilhas e outras estrofes tangidas por variado número de versos. Tiro, por fim, o chapéu para o texto de Carlos Moraes, na contracapa —

O QUE UM PINTA E O OUTRO BORDA

Essa não. Quem pode com tanta beleza? Ruth Rocha e José Antonio da Silva num livro só. Agora é que a Quinteto se luziu de vez.
A Ruth, cruz credo, bem sabia, é escritora juramentada e da mais alta magicação: escreveu mais de setenta livros para crianças.
Essa Ruth rural, de viola, é que pra mim é novidade.
Mas quê! No fundo, somos todos rurais. No raso, dizem as estatísticas, o Brasil hoje tem mais gente na cidade do que no campo. Corpo de gente. A alma vai mais devagar. Pega a tua alma, irmão urbano, pega a tua alma e sacode na janela num dia de sol — que que cai? Cai pitanga, broinha de milho, música de carreta, sapinho de lagoa, pedra de bodoque, titica de cabrito, jabuticaba.
Cai tudo o que o Silva pinta e a Ruth com versinhos borda.
Esse Silva. Nunca teve escola. Pinta com pura luz de boitatá, força de lobisomem, alegria de saci, tristeza de alma penada, beleza de fada, e todas as magias da terra bruta. E é assim, pingando barro, que chega aos mais importantes museus do mundo.
Este livro. Este livro vale pelo que valemos todos nós: por uma certa candura que sobra. O vivente humano, que faz? Campereia, campereia por este mundo velho, junta aqui, amontoa ali, e o que sobra de precioso, quando sobra, é certa candura de ver o mundo. A doce e suprema inteligência da ingenuidade. Daquela ingenuidade que vai mais longe e fundo do que toda a esperteza deste mundo.
Olha aonde nos levou o Brasil dos espertinhos. A uma dívida que vamos morrer pagando e a um tesouro em dólares, quase do tamanho da dívida, velhacamente enrustidos no Exterior. Mas deixa eles, os espertinhos. Eles estão muito bem retratados na lira caipira de Ruth Rocha. Deixa eles aí, dolarizando a miséria alheia e se safenando todos. Nós temos outros tesouros, outras boiadas.
Nós temos este livro, esta bruxaria de cores, estes versos, esta ingenuidade fecunda.
Viva Ruth Rocha. Viva José Antonio da Silva. Viva a candura do povo!
Carlos Moraes
Em tempo de PL da Devastação,
deixo aqui o texto completo

#dobrasdapoesia #ruthrocha
#joseantoniodasilva #cordel

8 de julho de 2025

verso que estica, verso que encolhe

dobrasdaleitura |
Tradução talvez seja um exercício muito próximo dos esquemas de ‘close reading’, tropeçando em cada palavra, à cata de sons, ritmo ou imagens. Verso que estica, verso que encolhe, desde a língua de partida, às diferentes chegadas...

I –
There was on Old Man with a beard,
who said, “It is just as I feared! –
Two Owls and a Hen,
four Larks and Wren,
Have all built their nests in my beard!

Edward Lear : A book of nonsense (1846)

II –
Havia um velho de longa barba
que se lamentava: “Que coisa bárbara! –
Pardal, andorinha,
coruja, galinha,
Tudo se aninha na minha barba!”

José Paulo Paes : Sem cabeça nem pé,
com ilustrações de Luiz Maia (1991)
III –
Había un hombre de barba espesa
Que dijo: “¡Vaya sorpresa
Una gallina y dos lechuzas
Quatro calladrias e una grulla
Anidaron em médio de mi barba espesa!”
Eduardo Berti (2010)
IV–
Havia um sujeito com barba gigante
Que disse, “Mas é natural que me espante!
Corujas e uma galinha,
Sabiás mais algumas rolinhas,
Em mim construíram um ninho gigante!

Renato Moriconi : 200 limeriques de
Edward Lear para ler e para ver
(2024)
🧡 #quemtemquindimtem
V –
Havia um velho de hirsuta barba,
que alto contava, “Isso aqui me amarga! –
Duas corujas e galinha caipira,
Quatro cotovias, uma corruíra,
Todas assim aninhadas na minha barba!

peter O sagae (2025)

#dobrasdapoesia #edwardlear
#limerique #limerick

6 de julho de 2025

o bom vizinho da poesia

Poeta severo, tradutor e crítico literário, na minha estante, Régis Bonvicino permanece o bom vizinho da poesia em geral e dos livros para crianças.

Quem nunca ouviu citados, pelo bikerrepórter da Rádio Eldorado, uns versos seus na hora do rush paulistano?
não há saídas
só ruas viadutos
avenidas
Mas aqui estico o braço e abro “O beija-flor”, pequeno pássaro com bico preso num grampo de cabelo, na parceira com @guto.lacaz, no livro NUM ZOOLÓGICO DE LETRAS (Maltese, 1994).
O beija-flor
queria beijar uma flor
voou voou voou
mas flor para beijar
não encontrou

o beija-flor
queria beber água pura
voou voou voou
mas água pura para beber
não encontrou

o beija-flor
queria comer inseto
voou voou voou
mas inseto para comer
não encontrou

então
muito triste
o beija-flor perguntou
em que mundo estou?
em que mundo estou?
#dobrasdapoesia

Veja também no blog Dobras da Leitura, abril de 2013, uma reunião de autores na resenha LETRA, TIPO, PALAVRA... BICHO! Régis Bonvicino com Guilherme Mansour, Arnaldo Antunes e Zaba Moreau.

27 de junho de 2025

pensar sensivelmente

dobrasdaleitura | Nina-nana
— Meu bem, meu bem,
o que você tem?

— Vontade de açúcar,
na lata não tem.

— Meu bem, meu bem,
por que você chora?

— Vontade de amora,
na cesta não tem.

— Meu bem, feche os olhos,
que o sono já vem!

— O sono tem leite?
O sono tem pão?

— Filhinho, tem não.
Vai, dorme, querido.
Papai foi embora,
mamãe te quer bem!
Sempre volto à leitura de Maria Dinorah, neste livro PANELA NO FOGO, BARRIGA VAZIA (L&PM, 1984), pela simplicidade dos versos e das ilustrações de Leonardo Menna Barreto. A força de sua poesia me conduz a pensar sensivelmente as questões sociais. Do Brasil e do mundo.
Conheça mais @institutomariadinorah
#mariadinorah #dobrasdapoesia