26 de julho de 2012

avó deliciosa

Temporada de Contos e Recontos, 8

Qual a avó mais gostosa que habita os contos folclóricos? Eu apostaria na velha bruxa da floresta que mora, há muitos e muitos recontos, na casinha feita de coisas doces...


Invenção dos colecionadores de histórias alemães do XIX, a casa com telhado de pão de ló e janelas de açúcar não era encontrada por crianças em antigas narrativas, como Nennillo e Nennella, de Giambattista Basile (1635), conto que conta igualmente as desventuras de dois irmãos pelo mundo afora; surgiu, no caminho de Hänsel e Gretel, tão somente em 1812, ano em que Napoleão, com seu famoso cavalo branco, fez campanha nas terras de Baba-Yaga, outra simpática avozinha que mora nos lugares ermos da floresta... Seja lá como for, temos nos habituados a sonhar com este lugar de confeitos e excessos como permitem as deliciosas avós, uma casa onde nos espera uma cama quente e macia, na companhia dos nomes de João e Maria.


Sei que inúmeros intérpretes de contos tradicionais olham para a bruxa da floresta como a contraparte simbólica da madrasta, uma e outra jogando com a promessa e a pressa de não passarem fome juntamente às crianças. Mas, um símbolo não impõe imagens partidas, porque abriga o que é aparentemente oposto em seu interior; do contrário, não teria forma nem força para atuar como símbolo! A velha espelha quem pode substituir a mãe; é a mesma imagem da madrasta, frações de bruxa e fada, em sua maternidade ancestral, um convite nutriz e, ao mesmo tempo, devorador.


É esta ideia que surge na ilustração de Victor Escandell, às primeiras páginas do livro João e Maria, em uma versão espanhola seguindo de perto o conto configurado pelos Grimm, na tradução de Andrea Ponte (Escala Educacional, 2011). Como uma avó inventando parlenda, a voz da velha suave soa:
“Será que é a ratinha que está roendo a minha casinha?”.
O menino responde com inteligência e imaginação:
“É o vento, é o vento, aquele que faz girar o cata-vento!”


A partir dos Grimm também, è giusto, a versão italiana de Roberto Piumini para João e Maria traz Anna Laura Cantone nas expressivas ilustrações coloridas de um humor cômico e cativante; tradução de Daniela Bunn (Positivo, 2010). E vale lembrar que a história não deixa de mostrar o caldo de netos que, por vezes, oferecemos a nossas avós. Diz a velha desgostosa a respeito de João: “Ah! Come, come e não engorda!”. E quanto trabalho na hora de abrir o forno...


Há uma versão brasileira, registrada por Câmara Cascudo (1919) que, quando a velha bate nas brasas e labaredas, queimando-se toda, gritava toda desesperada: “Água, meus netinhos!”, mas os sonsos respondiam: “Azeite, senhora avó!” E, como são muitas as portas que me levam aos contos, tiro da estante...


O indefectível compacto 33 ½ de vinil azul com João e Maria, na adaptação de Elza Fiusa e a orquestração de Radamés Gnattali (1961). Sem madrasta na história, os irmãozinhos perdem-se na floresta na hora de levar o almoço para o pai, conforme se vê na capa do disco. E a velha bruxa-avó era, sim, uma fada!

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P.S. Compare as duas produções para a Coleção Disquinho.
Serão uma versão dos anos 40, mais próxima do texto dos Grimm, e outra dos anos 60, com outros elementos introduzidos no conto tradicional? Quem tiver qualquer informação, compartilhe!



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20 de julho de 2012

para sempre vermelho

Temporada de contos e recontos, 7


Dizem que Chapeuzinho Vermelho não é propriamente um conto folclórico, muito menos conto de fadas, tendo surgido como uma lenda local de âmbito restrito às regiões europeias mais centrais, ao longo do Loire rumo ao Tirol, tão ao norte da Itália, indo à meio caminho dos Alpes, quem sabe, alcançando o que hoje muitos chamam Suíça, quase Eslovênia... E são muitos os estudos sobre as origens, os significados, as aplicações do conto à vida prática ou psicológica, em um volume de notas volúveis entre o anseio infantil e o imaginário, nem sempre freado, dos comentaristas adultos. Pouco importa.

Chapeuzinho Vermelho é dessas matérias literárias de alta plasticidade textual: quem não conheceria um conto, seu reconto, paródia, paráfrase, anedota, caso, chiste, animação, thriller, leitura, tradução, transcrição, ensaio fotográfico, ilustração, roupa, propaganda, jogo que trace o caminho da menina em direção à boca do Leitor, mais faminto e severo que o lobo? Angela-Lago bem definiu o conto-personagem como A Interminável Chapeuzinho Vermelho, dada a avidez que temos de buscar possibilidades para digerirmos a história... E há um insinuante vídeo de Jan Kounen, O Último Chapeuzinho Vermelho (1996), que não é apenas uma versão... Na floresta dos meios de produção de linguagem, Chapeuzinho Vermelho tornou-se um objeto-nexo-contexto de representações. É o que importa.

Mas, vamos aos livros.
I.

Na Espanha, dizem que Caperucita ganhou uma capa de sua mãe e Eva Navarro ilustra seu Chapeuzinho Vermelho de braços abertos para a vida. E o que leva na cestinha? Bolinhos de mel... O livro, com tradução de Andrea Ponte, diz seguir o caminho francês de Charles Perrault (1697), desembocando, no entanto, no final alemão dos Irmãos Grimm (1812): um caçador, mais um lavrador enchem a barriga do lobo com pedras (Escala Educacional, 2011).

II.

O italiano Roberto Piumini reconta Chapeuzinho Vermelho, a partir de J. e W. Grimm, lembrando que a avô dera à menina linda um chapéu de veludo vermelho... E os ingredientes da cesta – bolo e suco de uva – farão parte da ceia para festejar o fim do lobo e do conto! Ilustrado pelas pinceladas de Alessandro Sanna, o texto foi traduzido por Daniela Bunn (Positivo, 2010).

III.

Em uma proposta bem humorada, Chapeuzinho (Anuncie Aqui!) Vermelho pode ser considerado um “livro ilustrado com propaganda”, na concepção de Alain Serres (Scipione, 2011). O autor apostou no texto integral do conto de Charles Perrault, com tradução de Ana Luiza Baesso, e nas ilustrações de Clotilde Perrin, mas convidou diversos outros ilustradores para dar cor e uma linguagem própria a cada anúncio que invade as páginas do livro... Ainda que termine a narrativa, de acordo com a tradição francesa, a publicidade de um aparelho de telefonia móvel garante a reinvenção da velha história. Total cobertura de humor.


12 de julho de 2012

uma ouvinte tão exemplar

O'ABRE ASPAS reticentes para Hoffmann


"Do fundo da escrivaninha, ele tirou tudo quanto havia escrito na vida. Poesias, fantasias, visões, romances, contos, aos quais não cessava de acrescentar os mais variados sonetos, estrofes e canções, e passava horas lendo-os para Olimpia, incansavelmente. Mesmo porque nunca tinha tido uma ouvinte tão exemplar. Ela não bordava nem tricotava, não olhava pela janela, não dava de comer a nenhum pássaro, não brincava com cachorros ou gatos de estimação, não enrolava pedaços de papel nem ocupava as mãos em outras atividades, não simulava tosse para encobrir um bocejo; em suma, passava horas e horas olhando fixa e inalteravelmente para os olhos do amado, sem mudar de posição, sem se mover, ..." (Ernest Theodor Amadeus Hoffmann) Der Sandmann, 1817.

Do livro Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino (Companhia das Letras, 2004), "O Homem de Areia" traduzido por Luiz A. de Araújo.

7 de julho de 2012

quando menos = mais

Temporada de contos e recontos, 6

Na economia da linguagem, revela=se uma multiplicidade, sempre. De leituras, colhendo surpresas pelo caminho. Jogar com o leitor é algo que Angela Lago, agora Angela-Lago, se mostra mestre. Sempre +. E ninguém se cansa disso ou daquilo, esperando mesmo por aquele instante em que isso vira aquilo. Em seus livros, quando menos = mais...


Vamos fechar as contas sobre JOÃO FELIZARDO, O REI DOS NEGÓCIOS (Cosac Naify, 2007), uma engenhosa reinterpretação do conto popular que recolheram os Grimm no século XIX: João, o rei da barganha que, de herança, recebe uma moeda de ouro, apenas e única, ah miséria, e sai mundo afora para fazer a própria fortuna. E, claro, confusão também...

A autora lança nossos olhos diretamente para a ilustração. É fácil ler a primeira cena. No entanto, mais fácil é perder-se nos detalhes da imagem crispada e castanha em traço incerto que dá o começo = o fim, o pai de João é morto. É preciso flagrar o sorriso no rosto dos homens, o movimento de suas mãos, os bolsos cheios de uns, a mão estendida do menino... Há muito o que ler = recuperar e criar a partir das pistas.


A narrativa segue em ritmo de lengalenga, pra lá e pra cá, todos sabem como é um conto acumulativo e Angela-Lago faz João trocar, trocar, trocar sucessivamente um cavalo por um burrinho e este por uma cabra esperta, por um porquinho sossegado, por um pássaro... O que o menino possui, cada vez mais, vai se tornando menor, mais leve, sem importância material, mais imponderável ou uma qualidade impensada... Parece mesmo que o rei dos negócios sai sempre perdendo algo e o leitor antecipa que coisa alguma vai durar verdadeiramente em suas mãos! Angela bole com a estrutura tradicional. Seria aí um des-conto cumulativo? E o pássaro que era tão... Oh, surpresa, nem o narrador tem tempo para completar a frase, o pássaro voa!


Ao fundo, a paisagem... eu pensei "fundo"? Engano-me, porque. A cidade se espalha, transborda nas páginas, comprime João e faz a gente se perder num caos só — essa cidade tão nossa, vai ficando para trás, com seus carros, casas e coisas altas de concreto. Então, cores planas, extensas e simples de azul e areia vão deixando o menino caminhar. Descobrimos porque João = Felizardo por um imenso segundo.



* Extraído de Dobras da Leitura 44: abril de 2007

6 de julho de 2012

um enigma na teia de histórias, I

Temporada de contos e recontos, 5
a primeira resenha de peter o‘sagae* em 4 postagens


Sabemos que todas as histórias se perdem na noite dos tempos, narradas em diferentes lugares e, de repente, vamos encontrando seus personagens e enredos nas páginas de um pequenino livro: é o caso da princesa adivinhona tal e qual Angela-Lago resgata em SUA ALTEZA, A DIVINHA (RHJ, 1990), transportada para um texto deliciosamente combinando palavra & imagens ao ritmo de uma carta enigmática. Trata-se da história de uma princesa que se julga saber tudo e somente irá se casar com aquele que a conseguir derrotar em um jogo de adivinhações. Pois bem, que vieram lá os pretendentes! Todos, porém, acabaram na forca: rei, capitão, soldado, ladrão: era uma vez! Até que...


(Ah, não vou contar toda história, não. Vamos deixar o que acontece depois para depois) Interessa agora saber um pouco mais sobre essa antiga personagem...

É provável que Sua Alteza tenha nascido no Oriente, em uma terra escondida entre as mais diversas adaptações d’As Mil e Uma Noites... E lá começa o enigma: existiu, em tempos distintos, uma mulher de notável inteligência, conhecedora das artes e dos mistérios, medicina, astronomia, filosofia, lógica e toda ciência. Chamava-se Tawaddoue. Um tribunal formado por sábios e doutores foi convocado para interrogá-la, mas a moça saiu-se muito bem, formulando boas respostas. E sua fama correria mundo, apelidada Douta Simpatia através das paragens da tradição europeia.

um enigma na teia de histórias, II

Chegando à Itália, encontraremos lá a história de Turandot, a Princesa de Pequim, nas mãos do escritor veneziano Carlo Gozzi que, no XVIII, traduziu e adaptou uma variedade de contos populares do Extremo Oriente. Sua beleza e crueldade fariam Turandot transformar-se em personagem de ópera, na primeira metade do século XX, através das partituras de Ferruccio Busoni (1911) e de Giacomo Puccini (1926). Então, nos palcos, Turandot canta e afasta muitos pretendentes: “Três são os enigmas, uma só é a morte!”

 No pavilhão do palácio, no entanto, está um jovem estrangeiro que decifra as três perguntas-desafios: Qual é o fantasma que renasce a cada noite, morre ao alvorecer para continuar vivendo no coração do homem? Arde como a chama da febre e se resfria na morte, queima quando sonha com a vitória e seu brilho parece com a luz do sol que se deita? Qual o gelo que te inflama e se torna por isso mais frio, queimando-te? É ele o Príncipe da Tartária que, sequente, propõe à Turandot descobrir o nome que ele guarda em segredo... Por toda a noite, ninguém poderá dormir, enquanto o enigma do forasteiro não for descoberto. Esta é a ordem! Na ópera de Puccini, o estrangeiro canta a famosa ária “Nessun dorma” (e deixo aqui os enigmas para você resolver).


Na Península Ibérica, muitos conheceram a ventura da Donzela Teodora. De Portugal ao Brasil, num salto só, ela estará estampada em cordel com sua imbatível sabedoria. Fios que se cruzam, a teia é imensa 'té parece não ter fim, pois tem até santa nessa sanha: Catarina de Alexandria, mártir que viveu em meados do Século IV e é venerada no dia 25 de novembro como padroeira dos estudos. Sua identidade, muitas vezes, se confunde com a famosa matemática, astrônoma e filósofa Hipásia que viveu entre os anos 355 e 415 da Era Cristã. Qual seja! Diz a lenda que uma jovem de grande beleza e conhecimento enfrentou os magistrados da imemorial Biblioteca, venceu o debate e converteu todos ao Cristianismo nascente... Ora, nem sempre a virtuosa de Alexandria teve o mesmo nome: nascera Dorotéia e, com as águas do batismo, tornou-se Catarina. Nomes aí que configuram um anagrama, Teodora e Dorotéia significam igualmente ‘dádiva divina, pequena deusa, jovem de Deus’.


um enigma na teia de histórias, III


E quem está no livro de Angela-Lago? Uma princesa, a Divinha – diminutivo de Diva, divina e deusa, dádiva... E, do som que se transforma na relação da boca ao ouvido, seja ela princesa ou donzela, mesmo santa ou alteza, a personagem conquista a simpatia não apenas pela sabedoria-que-sabe, mas igualmente pela vitória inesperada, de que tanto gostamos nas histórias, do mais frágil sobre o mais forte. Em uma personagem, estão todas as outras em potência e possibilidades do passado: Tawaddoue, Teodora e Catarina-Dorotéia, cuja vitória se fez proclamar sobre o tribunal de sábios doutores; contrariamente, Turandot – ai, seu coração de gelo tremerá sob o fogo de uma paixão, quando o amado revelar seu nome em um beijo pousado em seus lábios... E o que acontece à Divinha, então?

Ora, a adivinha... Está por toda parte, nos jogos de linguagem d’o que é, o que é, nas palavras cruzadas, nos enigmas imaginados desde o tempo da Esfinge, entremeando-se, desde as rodas infantis aos fios da novela e do romance policial. O ponto de partida é sempre a pergunta. Contudo, mais que alcançar a resposta, importa o caminho-exercício para desvelar o que foi cifrado em segredo. Algumas adivinhas admitem dupla solução, são ricas na experiência com a linguagem, diga-se: uma linguagem especial, como nas famosas perguntas capciosas. Neste jogo, quem pergunta sempre oferece uma alternativa diferente, rebatendo a resposta que lhe foi dada. É, por isso, uma armadilha à qual o adivinhador deve esforçar-se para não cair. Decifrar significa, portanto, salvar a dignidade, escapar com vida. Como em um antigo ritual, ter a solução é encontrar o caminho da aceitação pública.

Pois bem: o jovem Príncipe da Tartária conquista a Princesa de Pequim, derrotando-a nos desafios que ninguém mais ousara adivinhar. As três respostas são: a esperança, o sangue e Turandot! E qual nome que ela mesma ignorava? Soam longamente os trompetes no palco da ópera e a moça, em frente a todo seu povo, responde: “Descoberto o segredo do estrangeiro. Seu nome é... Amor!” De fato, somente ele fora o único a dar as respostas-vida à princesa que tinha os sentimentos petri-trancafiados em seu coração frio... Enquanto ninguém dormia na cidade de Pequim, ele, Calaf, entrou em seu quarto para roubar-lhe o mais sincero beijo.

E a Divinha que é princesa, que é sabida, que é trocadilho no nome, também faz suas adivinhas e acaba adivinhada por Louva-a-deus, moço simplório que vai tentar a sorte no castelo... E que sorte encontra o rapaz por terras brasileiras! Há diversas variantes que apresentam o herói como João-de-Deus, o Matuto João, o Amarelo... Às vezes, esperto como ele só, parente mesmo de Pedro Malasartes, outras vezes, totalmente ingênuo, o tolo de bom coração que irá se casar com uma figura de alta importância, pondo fim à arrogância de qualquer princesa...

um enigma na teia de histórias, IV


O livro de Angela-Lago atualiza o jogo e o velho ritual, não apenas na linguagem especial das adivinhas, expressa nas falas da Divinha e de Louva-a-deus. A brincadeira amplia-se para as imagens que completam frases, substituindo palavras pela presença dos personagens, objetos, elementos da paisagem e demais ações da narrativa.

Se a escrita é um desenho, a autora não se faz de rogada ao jogar com a diagramação das letras sobre a página: são as vogais das palavras ‘rei, ‘soldado, ‘capitão e ‘ladrão’ que puxam a corda que prende os pretendentes pelo pescoço; a palavra ‘montanha’ é diagramada de tal forma que obriga o olhar do leitor a subir pela frase; aparecem sete ooooooovos enfileirados com a letra O e há muitos outros recursos que coloca o livro todo em movimento.


Forma e conteúdo se encontram na felicidade de um livro que não é meramente um livro, mas um artefato, objeto de papel invocando o teatro: é a presença da moldura que não fecha o foco apenas sobre o palco, mas abre espaço para o público entrar em cena, participando da torcida e da expectativa. É também o gestual do flagrante, a entonação da voz, humor e ritmo, sutilezas descortinadas a cada página virada.


* Peter O‘Sagae, em Dobras da Leitura 1, abril de 2000. Publicado anteriormente com o título “Um enigma na teia de estórias: a princesa que adivinha” In: O Balainho - Boletim de Literatura Infantil e Juvenil. São José SC, (3) : fev. 2000. Texto revisto e ampliado em 2012.