30 de outubro de 2014

imago, meu amigo

O’ABRE ASPAS entre as coisas e os homens


“Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens. O desenho mental já é um modo incipiente de apreender o mundo [...]

“A imagem, mental ou inscrita, entretém com o visível uma dupla relação que os verbos aparecer e parecer ilustram cabalmente. O objeto dá-se, aparece, abre-se (lat.: apparet) à visão, entrega-se a nós enquanto aparência:
esta é a imago primordial que temos dele. Em seguida, com a reprodução da aparência, esta se parece com o que nos apareceu. Da aparência à parecença: momentos contíguos que a linguagem mantém próximos [...]

“Toda imagem pode fascinar como uma aparição capaz de perseguir.
O enlevo ou o mal-estar suscitado pelo outro, que impõe a sua presença, deixa a possibilidade, sempre reaberta, da evocação. Para nossa experiência,
o que dá o ser à imagem acha-se necessariamente mediado pela finitude do corpo que olha. A imagem do objeto-em-si é inaferrável; e quem quer apanhar para sempre o que transcende o seu corpo acaba criando um novo corpo: a imagem interna, ou o desenho, o ícone, a estátua. Que se pode adorar ou esconjurar. Mas que assume, nem bem acabado e posto à nossa frente, o mesmo estatuto desesperante da transcendência. Assim, nos percursos da imagem, por mais que se evite a distância não se consegue nunca suprimi-la. A fusão, que se deseja e não se alcança, produz um desconforto que semelha a angústia do cão mal amado pelo dono que, no entanto, não sai nunca da sua frente. A imagem, fantasma, ora dói, ora consola, persegue sempre, não se dá jamais de todo. A aparência, desde que vira semelhança, sela a morte da unidade.”


(Alfredo Bosi) O ser e o tempo da poesia, 1977
do capítulo “Imagem, discurso”, pp.14-15.

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22 de outubro de 2014

um corpo, o texto em movimento

O’ABRE ASPAS entre dois lugares


“A tendência da estética romântica foi privilegiar a singularidade do escritor e minimizar o caráter institucional do exercício da literatura. Ora, não é possível produzir enunciados reconhecidos como literários sem se colocar como escritor, sem se definir com relação às representações e aos comportamentos associados a essa condição [...]

“Longe de enunciar num solo institucional neutro e estável, o escritor alimenta sua obra com o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à sociedade. Não é uma espécie de centauro, uma parte do qual estaria imersa na gravidade social e a outra, a mais nobre, voltada para as estrelas, mas alguém cuja enunciação se constitui através da própria impossibilidade de se designar um ‘lugar’ verdadeiro [...]

 “Não é possível falar de uma corporação dos escritores como se fala de uma corporação dos hoteleiros ou dos engenheiros. A literatura define de fato um ‘lugar’ na sociedade, mas não é possível designar-lhe qualquer território. Sem ‘localização’, não existem instituições que permitam legitimar ou gerir a produção ou o consumo das obras, consequentemente, não existe literatura; mas sem ‘deslocalização’, não existe verdadeira literatura. O esforço de certos regimes totalitários para proporcionar uma condição de assalariado do Estado aos escritores reunidos em algum sindicato permite manter uma produção literária, mas não produzir obras literárias, a menos que o escritor se afaste do que é esperado dele, torne problemática essa própria pertinência ao grupo. A pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar, mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Essa localidade paradoxal, vamos chamá-la paratopia.”


(Dominique Maingueneau) O contexto da obra literária, 1995
do capítulo “A paratopia do escritor”, pp.27-28.

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21 de outubro de 2014

de onde parte a voz dos escritores?

O’ABRE ASPAS entre ontem e hoje


“Quando a concepção de desenvolvimento do Brasil foi condicionada à aceleração do projeto de industrialização, a literatura infantil viu-se envolvida mais diretamente, a ponto de confundir-se com a meta proposta: textos foram escritos segundo o modelo da produção em série, e o escritor foi reduzido à situação de operário, fabricando, disciplinadamente, o objeto segundo as exigências do mercado.

“Essas exigências não eram necessariamente as do consumidor final – o pequeno leitor –, e sim das instâncias que se colocavam como mediadoras entre o livro e a leitura: a família, a escola, o Estado, enfim, o mundo adulto, nas suas diferentes esferas, desde a mais privada à mais pública. Por sua vez, elas se mostravam harmônicas e integradas, o que lhes permitiu forjar uma imagem de si e do país que figura ainda como uma página importante no capítulo da história das ideologias no Brasil [...]

 “É obliquamente que certos valores afloram: o pedagogismo, resultando na supremacia da personagem mais velha e das entidades através da qual ela se expressa, quais seja, a escola e a família; e o elitismo burguês. O mundo adulto representado coincide com a situação dos grupos economicamente privilegiados, isto é, os que podem sustentar férias no campo, excursões à floresta virgem, comprar terras no interior e animais de raça, etc.”

(Marisa Lajolo e Regina Zilberman)
Literatura infantil brasileira: história & histórias, 1984
do capítulo “Entre dois brasis”, pp.119-120.

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