Quem ou quando me sopraram o nome de Mario Benedetti, não lembro, demorei tempo demais para conhecer um livro de sua rica bibliografia de contos, novelas, poesia e ensaios... Começo a conhecê-lo pelo último romance que o autor define como um puzzle de ficção que se faz habilmente por uma estrutura móvel, em torno de uma construção ou um monumento ou uma prisão que é a memória contra a amnésia com que nos felicitam certas democracias... Queria ter empreendido uma viagem a um lugar da literatura uruguaia como quem busca conhecer seus vizinhos, porém, através de ANDAIMES (1996) trad. Mario Damato (Mundaréu, 2017), a companhia de Javier, o personagem que retorna do exílio espanhol, deu a me incomodar, naquele sentido de estranhamento ao descortinar que o lugar longínquo, o lugar desconhecido é o país dentro de nós mesmos.
Javier me compreende como a um jovem de 19 anos, leva-me de volta a 1995, quando me movia e acreditava, deixando-me pensar que as boas coisas estavam reservadas a todos. Vivi eu as desilusões de um desemprego vindo pela puxada de tapete que resvalou pro chão as muitas conversas interessantes no âmbito político e cultural. Aprendemos a conversar com poucas pessoas, depois de tudo, que apenas dialogam à mesma linguagem. O futebol, o cinema de arte e o videoclube, as drogas, o zapping e a Aids, o vazio vagão de um trem, o corpo, o sonho que se toma de um quadro. Vários parágrafos de Benedetti fiz a vermelho como se eu fosse Javier aos 47. “A audição é o sentido da liberdade.”
Naquela década, havíamos passado fronteiras geográficas com a world music, porém as questões capitalistas nos tocavam esmagadoramente (in)visíveis em seus ritmos étnicos e eletrônicos. E um sentimento me integrou a Rocío, ao dizer: “Javier, não se trata de algo tão pessoal como nossa relação, que tomara dure anos, tomara dure para sempre. Mas no futuro não estamos somente você e eu. Abro o jornal, olho a tevê, e me parece estar imóvel, letárgica, em um pedaço de catástrofe. Não posso suportar o olhar dos meninos de Ruanda, de Sarajevo, da Guatemala e menos ainda os da Villa 31 em Buenos Aires ou, aqui mesmo, os de qualquer favela, prestes a serem desalojados (...) Você e eu, o que podemos fazer? Nada. E não me refiro a este país de bruzundanga mas sim ao mundo gigantesco.” Não temos aqui uma resenha do livro. Mario Benedetti não me levou ao Uruguai mas ao mundo de hoje nos rascunhos de 25 ou mais anos atrás.
P. S. O Clube Tatuí de Leitura amanhã, 31 de agosto, às 18h, discutirá o livro de Mario Benedetti, ANDAIMES, traduzido por Mário Damato e publicado pela Mundaréu.
30 de agosto de 2021
20 de agosto de 2021
a casa da madrinha
dobrasdaleitura | E minhas viagens com Lygia Bojunga durante este inverno terminam onde começam os caminhos para chegarmos até A CASA DA MADRINHA (1978). O livro agora me fez pensar na velocidade da voz e das imagens numa trama que tem lugar quando duas ou mais histórias aí se encontram. Pois aconteceu de Alexandre partir das praias de Copacabana e Ipanema, onde vendia biscoito e sorvete aos domingos, e depois sábado, e depois a semana quase inteira, deixando pra trás a escola e o barraco da família. O menino caminhou, caminhou muito para chegar à metade do caminho — lá encontrou o Pavão que nasceu num outro país, mas deixou-se capturar por homens que apenas faziam explorar sua beleza e forçaram sua matrícula numa escola onde conseguiram filtrar suas ideias, falas e ações. Depois conheceu João das Mil e Uma Namoradas, partiu num navio e tudo foi uma pena só. Chegou ao Rio de Janeiro, encalhou um tempo no zoológico, em escola de samba, em mansão de gente fina: depois ele tava estrada afora.
Alexandre e Pavão se encontraram naquele meio das viagens que inventam ser uma história nova — e juntos montam um espetáculo saltimbanco. Numa apresentação à sombra de uma mangueira, conhecem Vera que está na plateia à espera de viver uma vida verdadeira. Mas o que é uma aventura senão o emaranhado de narrativas, caminhos por água, terra, sol e lamento que fazem cada um ser o seu próprio herói? A casa da madrinha, descobriremos, fora erguida pelas palavras de Augusto, irmão mais velho de Alexandre, mais a escuta ansiosa do menino, o eco maravilhoso de uma ave cheia de penas, a desconfiança de uma menina à espera de viver... uma vida em outro plano da realidade! Tomemos um fio: os nomes desses personagens: fortes, simples, claros, evocando manchetes e odisseias que fazem da arte de narrar a garantia para continuarem e continuarmos existindo por onde os sonhos se mesclam, numa casa de quatro janelas para diferentes paisagens, com uma porta azul, com uma flor amarela no peito, com uma chave dentro... Da voz e das imagens, a narrativa é uma cavalgadura!
Alexandre e Pavão se encontraram naquele meio das viagens que inventam ser uma história nova — e juntos montam um espetáculo saltimbanco. Numa apresentação à sombra de uma mangueira, conhecem Vera que está na plateia à espera de viver uma vida verdadeira. Mas o que é uma aventura senão o emaranhado de narrativas, caminhos por água, terra, sol e lamento que fazem cada um ser o seu próprio herói? A casa da madrinha, descobriremos, fora erguida pelas palavras de Augusto, irmão mais velho de Alexandre, mais a escuta ansiosa do menino, o eco maravilhoso de uma ave cheia de penas, a desconfiança de uma menina à espera de viver... uma vida em outro plano da realidade! Tomemos um fio: os nomes desses personagens: fortes, simples, claros, evocando manchetes e odisseias que fazem da arte de narrar a garantia para continuarem e continuarmos existindo por onde os sonhos se mesclam, numa casa de quatro janelas para diferentes paisagens, com uma porta azul, com uma flor amarela no peito, com uma chave dentro... Da voz e das imagens, a narrativa é uma cavalgadura!
12 de agosto de 2021
a bolsa amarela
dobrasdaleitura | Raquel é a mais importante personagem do século XX na literatura brasileira para crianças e jovens, sem dúvida alguma, tornando-se um nome forte e único. Não é apenas uma menina, mas o espírito da própria infância vagando entre as dimensões do cotidiano e da fantasia, com seus estranhamentos diante de uma ordem pré-estabelecida. Nesta obra, escrita em 1976, Raquel deseja descobrir seu jeito, seu caminho, guardando, desde o início da aventura, três vontades: crescer de uma vez, ter nascido menino e escrever. Contudo, para que ninguém veja ou faça pouco de suas vontades, todas as três ela ajeita em uma bolsa amarela, presente de segunda mão de uma tia rica que costuma passar adiante o que não mais lhe convém. E essa bolsa torna-se um esconderijo especial — com acomodações e bolsos para outros personagens que nasceram em histórias que a menina inventou, como Rei, o galo que foge do próprio galinheiro, decidido a ter uma ideia por que lutar, o Terrível que teve o pensamento desumanamente costurado, e mais o Alfinete e uma guarda-chuva que é toda decisão, afeto e invenções de sua própria vida.
Com o recurso de fábulas e alegorias, Lygia Bojunga encena temas importantes para uma vida mais inclusiva e consciente: o cuidado com a criança e sua afirmação num mundo futuro, o cotidiano em família e a escola, o consumismo e a durabilidade das coisas, o autoritarismo e a liberdade de expressão, as questões de gênero, o lugar do feminino e do feminismo, a troca de papéis ou funções na realidade atual, um tecido em constante movimento e transformação. Neste quesito, o clímax da narrativa terá lugar na Casa dos Consertos, onde moram uma menina, um homem, uma mulher e um velho que compartilham das mesmas tarefas diárias, como estudar, cozinhar e consertar objetos, sem qualquer distinção de quem faz o quê... e tudo tão cheio de livros do teto ao chão e tempo organizado. É enfim uma história de liberdade. | Especial para o Clube de Leitura Quindim @clubequindim
Com o recurso de fábulas e alegorias, Lygia Bojunga encena temas importantes para uma vida mais inclusiva e consciente: o cuidado com a criança e sua afirmação num mundo futuro, o cotidiano em família e a escola, o consumismo e a durabilidade das coisas, o autoritarismo e a liberdade de expressão, as questões de gênero, o lugar do feminino e do feminismo, a troca de papéis ou funções na realidade atual, um tecido em constante movimento e transformação. Neste quesito, o clímax da narrativa terá lugar na Casa dos Consertos, onde moram uma menina, um homem, uma mulher e um velho que compartilham das mesmas tarefas diárias, como estudar, cozinhar e consertar objetos, sem qualquer distinção de quem faz o quê... e tudo tão cheio de livros do teto ao chão e tempo organizado. É enfim uma história de liberdade. | Especial para o Clube de Leitura Quindim @clubequindim
5 de agosto de 2021
qual o começo da história?
dobrasdaleitura | Entre a realidade e o sonho de Maria, estende-se uma corda bamba entre os prédios da orla carioca e, noite após noite, a menina sente a necessidade de ir adiante, não importa a altura, buscando o seu próprio equilíbrio. Às vezes, puxando o fim da madrugada um bando de andorinhas segue as costas de Maria — e quem ouve os relatos da menina até mesmo vê essas aves de verão paradas no ar como se fizessem fila detrás dela! Maria tem um arco de flores coloridas e anda na corda como um passeio seguro no calçadão da praia. Então, ela percebe numa vez um outro prédio alto com janela redonda e um andaime perto: estendendo a curiosidade até lá, Maria reencontra o mar sereno e também tumultuado em que se transformou sua vida, ao atravessar um corredor com variadas portas pintadas em cores diferentes, vozes e imagens de seu passado e memórias perdidas.
Qual o começo da história? É onde começa o livro com Maria, na idade de dez anos, indo morar no apartamento de sua ostensiva avó chamada Maria Cecília Mendonça de Melo? Ou o começo da história é uma infância vivida no circo ou, antes de tudo isso, com Márcia e Marcelo se conhecendo? Haverá um sonho que começa e termina dentro de outro sonho? A história de Maria é certamente um filme, com ecos distantes e movimentos arriscados. Houve uma tragédia na corda bamba ou drama mesmo será conviver com quem não conhecemos as intenções?
Tantas perguntas vão se enganchando de um capítulo a outro nesta novela de uma das mais importantes autoras de literatura brasileira para crianças e jovens; este é o quinto título de Lygia Bojunga que escreve vivamente a narração e os diálogos com o sabor espontâneo da fala e do pensamento de seus personagens. O livro foi lançando em 1979, considerado o Ano Internacional da Criança, e nos aproxima do drama de Maria — uma menina trancada em seu próprio mundo interior, numa condição médica que mais modernamente tem sido conhecida como a Síndrome da Resignação: após um acontecimento terrível em sua vida, a criança apresenta sinais de apatia em diferentes graus de silêncio, imobilidade, desinteresse em alimentar-se e cuidar de si mesma. Contudo, o texto de La Bojunga possui delicadezas, juntamente a outros temas de ordem social e existencial, numa elegância entre a forma, a metonímia e a metáfora. Assim, algumas surpresas escondem-se nas suas frases e outras escolhas. A avó é então lida como uma onça irascível, toda vez que aparece com seus quatro nomes repetidos. E há uma cantilena motivada pelos nomes do casal, Márcia, Marcelo, a invocação sobre a vida da menina deles interrompida: o mar ia... no entanto, a vida de Maria voltará a ter fluxo, sentido, novas portas no vaivém dos espaços futuros | Especial para o Clube de Leitura Quindim @clubequindim
Qual o começo da história? É onde começa o livro com Maria, na idade de dez anos, indo morar no apartamento de sua ostensiva avó chamada Maria Cecília Mendonça de Melo? Ou o começo da história é uma infância vivida no circo ou, antes de tudo isso, com Márcia e Marcelo se conhecendo? Haverá um sonho que começa e termina dentro de outro sonho? A história de Maria é certamente um filme, com ecos distantes e movimentos arriscados. Houve uma tragédia na corda bamba ou drama mesmo será conviver com quem não conhecemos as intenções?
Tantas perguntas vão se enganchando de um capítulo a outro nesta novela de uma das mais importantes autoras de literatura brasileira para crianças e jovens; este é o quinto título de Lygia Bojunga que escreve vivamente a narração e os diálogos com o sabor espontâneo da fala e do pensamento de seus personagens. O livro foi lançando em 1979, considerado o Ano Internacional da Criança, e nos aproxima do drama de Maria — uma menina trancada em seu próprio mundo interior, numa condição médica que mais modernamente tem sido conhecida como a Síndrome da Resignação: após um acontecimento terrível em sua vida, a criança apresenta sinais de apatia em diferentes graus de silêncio, imobilidade, desinteresse em alimentar-se e cuidar de si mesma. Contudo, o texto de La Bojunga possui delicadezas, juntamente a outros temas de ordem social e existencial, numa elegância entre a forma, a metonímia e a metáfora. Assim, algumas surpresas escondem-se nas suas frases e outras escolhas. A avó é então lida como uma onça irascível, toda vez que aparece com seus quatro nomes repetidos. E há uma cantilena motivada pelos nomes do casal, Márcia, Marcelo, a invocação sobre a vida da menina deles interrompida: o mar ia... no entanto, a vida de Maria voltará a ter fluxo, sentido, novas portas no vaivém dos espaços futuros | Especial para o Clube de Leitura Quindim @clubequindim
1 de agosto de 2021
um porco que vira porto
dobrasdaleitura | Nas últimas semanas aconteceu uma dose de sincronicidade entre propósitos de leitura em torno dos livros da Casa Lygia Bojunga, assim que se deu o término do curso Escrever para Crianças na @salatatui e fui retomando uma colaboração para o @clubequindim — dois para lá, dois pra cá, retomando quatro dos cinco primeiros títulos da autora. E a gente começa a ter algumas ideias abotoadas com lembranças e sugestões...
Por exemplo, ANGÉLICA (1975) é uma história de animais em diálogo com a tradição das fábulas e com um Brasil que ainda não concluiu as mudanças que tantas e tantas vezes sonhou. Na trama, há um porco que troca uma letra do nome para virar Porto e um elefante velho e sozinho cujo nome é Canarinho, ambos às voltas com a falta danada de emprego e inventando dias melhores pra todo mundo, afinal ninguém merece perder um pedaço de si mesmo (como fez o Jota), nem ninguém (como temos feito, ainda) para poder sobreviver. Do jogo literário, me encanta o encaixe de haver uma peça de teatro chamada ANGÉLICA que os personagens escrevem e encenam dentro do romance que se chama ANGÉLICA, história que abre e esconde outra história, e ocorre parecer estranho não ter lido até hoje uma comparação da obra de Lygia Bojunga com o musical de Sergio Bardotti e Luiz Enríquez Bacalov, OS SALTIMBANCOS que Chico Buarque traduziu em 1977. E, neste um ano e tralalá em que me ocupei a pensar os gêneros narrativos que me nutrem durante o isolamento social, recorto falas da página 86 que não devem ficar caladas:
ANGÉLICA — Mas se a gente sabe que é mentira, como é que a gente vive espalhando essa ideia? Como é que a gente tem até bandeira bordada com cegonha carregando bebê?
LUTERO — Porque é por causa dessa mentira que a gente vive bem, que a gente ganha presente, que todo mundo nos respeita, que...
ANGÉLICA — Mas se a gente sabe que é mentira, a gente não pode passar a mentira pros outros! A gente tem que parar e dizer: é mentira! essa ideia não vale!
LUTERO — Ah, pera lá, Angélica, e como é que a gente fica?
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