29 de março de 2012

se a bondade cultivar

peter o ;-)sagae


Muitos autores de literatura infantil ainda buscam definir seus personagens pela ação direta e inúmeros diálogos, ao recriarem o que acreditam ser o modo e o mundo da criança. Nada disso, porém, é necessário a Biagio D’Angelo que dá vida calma a um menino que já não podia jogar futebol, polícia e ladrão, nem pular carnaval... Com paz e canções de berço, ele mesmo parece viver somente lá, entre as palavras, onde o leitor é obrigado a adivinhar desenhos e música, espera de fazer adulto, escola, terremotos, serenidade...

Narrado em primeira pessoa, o escritor e seu personagem (con)fundem-se poeticamente. Afinal, quem é o autor dessas memórias ou invenções? É Benjamin, ou um menino que não se chama Benjamin e, um dia, descobriu “as chuvas que estavam atrás de poucas letras” de seu nome? Biagio, Bóris, Bernardo, Baltazar, Bento... Quem é este menino de estranhas estações, quando o vento traz aulas, já entrando abril e professoras: umas velhas são quase sempre, têm olhos de alguém que nunca dormiu, nem sonhou: trocam o nome dos meninos e jamais se importam... outras, o menino ainda não conheceu.

No ritmo das palavras que tocam as coisas, as pessoas, as distâncias, o mundo do menino é todo feito de colecionar sentimentos, pressentimentos. Um dia, uma catástrofe longe trouxe para perto Rosália, um presente de gente, a sobrinha de um pintor famoso, só podia ser, ela também sabia desenhar e sabia explicar como fazer. E o que o menino gostava era fazer barcos por onde mares e histórias Rosália inventava. E como os desenhos, a vida revela coisas novas e inesperadas, separações, certas revelações. Quando é mesmo que uma imagem esconde um som?


BENJAMIN, POEMA COM DESENHOS E MÚSICAS, de Biagio D’Angelo, é uma narrativa ilustrada por Thais Beltrame (Melhoramentos, 2011). Delicados traços, brancos amplos para respirar, bico de pena fazendo poesia sobre o que há de mais invisível e seus devaneios: peixinhos pelas páginas, pequenos, em passeio, passarinhando. No ar, no chão. Do conforto do piano, da ponte que extrema as saudades, do alçapão que se abre não se sabe para onde... E, constante, o vermelho dentro do contorno preciso. Uma beleza comandada pela confissão do narrador, em toda a sua pertinência palavra&imagem: “O meu irmão, ainda um pouco sem juízo, esparramava, por brincadeira, nos meus desenhos a geleia de morango de que ele (e eu também) tanto gostava. Era um toque escarlate no desenho. Bem, na verdade, eu não gostava, mas era o meu irmão menor, me fazia rir com aquilo, e, portanto, o que fazer?”

15 de março de 2012

a beleza doce e branca não hesita

peter o'sagae*


Quando decidiram abrir as tumbas da família Medici, em 1857, em meio aos sepulcros da Capela dos Príncipes, na rica cidade de Florença, ninguém certamente esperava encontrar o corpo intacto de uma bela jovem. O ar imóvel preencheu-se com uma deliciosa fragrância, o chamado ‘perfume dos santos’ e, aos pés da moça, outro corpo diminuto e branco dormia: um arminho. No entanto, em um rápido piscar de olhos, essa mágica visão transformou-se inteira em pó...

Este é somente o prólogo de um delicado romance a respeito de Bianca, filha do amor ilegítimo do grão-duque Cósimo I e uma aldeã. Com extrema acuidade para combinar História e fantasia, o estilo da crônica e do diário pessoal, poemas e adágios de inspiração popular, o escritor galego Xosé Neira cria o retrato vivo de uma personagem que poderia passar praticamente despercebida no rol dos grandes feitos renascentistas do século XVI, permanecendo para sempre no silêncio das antigas pinturas expostas na Sala della Tribuna da Galeria della Uffizi.

Contudo, a Literatura quis dar outro destino a essa jovem.

O enredo conta que, após a morte de sua mãe, Bianca passou a conviver mais proximamente com a figura distante do pai, a frivolidade austera de sua madrasta, irmãos e amas com quem aprendeu a relacionar-se e descobrir seu próprio enigma. Por que ela nutria tamanha afeição pelas coisas macias e selvagens, enfrentando, com os olhos corajosos que não se inibem, a fraqueza de caráter e ambições humanas, sem jamais desistir de sua própria liberdade? Em meio às intrigas familiares e às raras oportunidades de gestos generosos, a doce Bianca encontra conforto nos símbolos revelados pelo pintor da corte, mestre Bronzino, nas histórias que escapam na voz das amas, nos festejos de Carnaval...

Revelando um mundo de convenções e contraordens, beleza e lógica, coragem e vilanias, O ARMINHO DORME, de Xosé A. Neira Cruz com tradução de Nilma Lacerda (Edições SM, 2009), foi considerado uma dos dez melhores livros juvenis do mundo pelo Banco do Livro da Venezuela, em 2006, conquistou o prêmio Raíña Lupa e integra honrosamente a lista White Ravens, mantida pela Biblioteca de Munique.

* Para a Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil 2009, produzida pela BIJ Monteiro Lobato de SP.

1 de março de 2012

invenções da mente e dos sonhos

peter o’sagae *


Todos os relógios da velha estação de trem de Paris jamais param ou atrasam à chegada e partida dos passageiros. As pessoas que ali transitam não desconfiam, no entanto, que a sincronia mágica dos ponteiros seja mantida por um garoto, apenas um garoto — Hugo Cabret. Diariamente, ele percorre passagens quase secretas e corredores mal iluminados por trás das paredes da estação e verifica silenciosamente o mecanismo de cobre de cada relógio. Diligentemente, ele inclina a cabeça para ouvir as batidas, pinga gotas de óleo nas engrenagens e, seguro da cadência regular, segue adiante sem perder um segundo, um minuto... apressadamente!

Com olhos claros e cabelos revoltos, Hugo entra e sai pelos dutos de ventilação, como se fosse invisível. Ninguém o vê, ninguém mesmo perguntaria como é possível a exatidão dos relógios — mas o velho da loja de brinquedos parece mesmo andar a certas desconfianças. Afinal, alma nenhuma de outro mundo viria tão sistematicamente roubar-lhe os pequenos e engenhosos bonecos de corda, graça e movimento...

Pois é Hugo o pequeno ladrão. Ele sempre traz em seus bolsos dezenas de pecinhas de metal que retira dos brinquedos e um pequeno caderno de capa puída, cheio de esquemas, desenhos e estranhas invenções — como a máquina de aparência humana que o menino esconde num dos cômodos secretos da estação! À noite, Cabret se esmera em reconstruir o misterioso autômato, na esperança de revelar a mensagem guardada entre seus mecanismos. No entanto, não sabe por quanto tempo conseguirá manter seus planos... O velho da loja de brinquedos está a espreita, fingindo dormir.


Ambientada na cidade luz de 1931, A INVENÇÃO DE HUGO CABRET, de Brian Selznick, com ilustrações do próprio autor (Edições SM, 2007), é uma homenagem aos primeiros anos do cinema, na articulação original entre a trama narrativa e sua apresentação gráfica. Em páginas tintadas de preto, os para-textos do livro são dispostos como antigos cartazes emoldurados de filmes mudos e, após uma breve introdução, subscrita pelo estranho nome do professor H. Alcofrisbas, os leitores são convidados a imaginarem-se sentados em uma sala escura. A primeira sequência da história projeta-se inteiramente nas imagens abertas em dupla página e o olhar compreende os movimentos da câmera, desliza sorrateiramente através do zoom que entra pelos cenários parisienses, fecha closes, foca inserts, justapõe cenas pelas viradas no eixo da câmera. Com estratégias de montagem cinematográfica, o quadro seguinte é tão somente uma página imprensa convencionalmente como qualquer romance ou novela.

 Mais do que códigos, Brian Selznick opera com duas expressivas linguagens: é preciso estar atento para o fato de a imagem não se comportar meramente como ilustração, pois suas sequências funcionam como texto visual, justapostas aos entrechos verbalmente escritos, e assume diferentes funções narrativas independentes, desde a descrição vertida em informações visuais à dilatação do tempo e da atmosfera da história. Com uma feitura intricada, a obra tem sido apresentada ao público como “graphic novel”, ou uma mistura bem sucedida de romance com story-board e picture book. No entanto, não é bem história em quadrinhos, nem livro de imagem com que nos habituamos, e faltam termos claros para definir o mundo inventado no livro de Hugo Cabret.

 Lançado nos Estados Unidos pela Scholastic Press, o livro conquistou o Quill Award 2007, na categoria literatura para crianças e jovens, com aplausos da crítica e o reconhecimento de uma obra-prima que restaura o glamour da sétima arte em suas páginas. Curioso e emocionante em seu próprio enredo, a narração verbal é conduzida por uma sintaxe muito fácil e fluente, permitindo-nos apostar em leitores a partir dos dez anos: sem qualquer limite de idade, o encantamento dessas invenções e seus ritmos heroicos resultam em um “bom filme” para todos.

 * Extraído de Dobras da Leitura 49: Vitrina Mundi, outubro de 2007. 
  ** Três capítulos podem ser lidos integralmente na [página promocional] do livro.  


P.S. Quando escrevi a resenha, cinco anos atrás, foi intencional esconder o nome de alguns personagens. Não gostaria de tirar a surpresa de descobrir a assinatura abaixo do desenho realizado por um autômato. Adivinhar ou prever acontecimentos é parte do jogo que a leitura oferece e, nesta obra, um coadjuvante necessário para fazer avançar as páginas sob nosso olhar, revelando sua própria fantasmagoria: voltamos ao tempo de mágicos espetaculares, ilusionismo, técnica e arte, o cinema nascente. Creio que o livro tenha mais ritmo, o ritmo da emoção que o leitor imprime, suporta ou exige. O filme carrega o tempo de um terceiro, o seu diretor, mas encanta pela invenção singular do movimento colorido, das imagens que brotam de outras imagens, do profundo tiquetaquear das máquinas.