24 de maio de 2012

quase tudo de volta ao rei

peter o.sagae


Um dos mais importantes livros ilustrados da história da literatura infantil brasileira está de volta – O REI DE QUASE-TUDO (1974) que marcou a estreia de Eliardo França no campo da autoria palavra & imagem, após alguns anos unicamente como ilustrador de cores vibrantes e traços de sincera comunicação com as crianças. A obra havia conquistado Menção Honrosa no Concurso Paz na Terra, promovido pela FNLIJ em 1972 e, uma vez publicada, viajaria à Eslováquia onde conquistou Menção Honrosa na Bienal de Ilustração de Bratislava – BIB 1975 e, no ano seguinte, em um pouso na Grécia, receberia nova Menção Honrosa durante o Congresso do IBBY em Atenas; esteve presente na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1978; veio-lhe o reconhecimento da Unesco, em 1979, primeiro lugar na categoria “Livro para um Mundo Melhor”, além de festejado com vários selos de ‘Altamente Recomendável’ e quatro vezes eleito como O Melhor para Criança – FNLIJ 1974, 1979, 1985 e 1986.

Os prêmios, em uma lista assim, dão conta de evidenciar como a força de um livro ilustrado para crianças vem de sua simplicidade combinada à exatidão do projeto gráfico, da escolha das palavras e das ilustrações focadas em transmitir sensações e mensagem. Em quase quarenta anos de caminho, absolutamente nada se alterou no texto, nas imagens ou na concepção original do livro.


Eliardo França criou uma breve parábola sobre um rei que tinha terras, exército e muito ouro, mas isso não era tudo para quem desejava todas as terras, todos os exércitos e todo ouro que houvesse no mundo. Porém, tudo isso ainda era pouco e o Rei de Quase-Tudo desejou tomar as flores, os frutos, os pássaros, as estrelas, o sol... Nada apaziguou seu coração ambicioso sempre triste, até tardiamente descobrir que as coisas mais importantes não são as coisas, nem nas coisas estão, como o brilho das estrelas, o canto dos pássaros, o perfume das flores, o sabor vivo dos frutos.


É bonito ver como as ilustrações e o projeto gráfico conversam com a narrativa. Enquanto manda tomar tudo o que pode e não pode, mas quer, a figura do Rei de Quase-Tudo apresenta-se nas páginas pares, com o dedo em riste, apontando para a esquerda e para a direita, como quem anda para cá e para lá. Até que, nas páginas centrais, o reizinho aponta o próprio nariz em diálogo, mascarada ou espelho com a ilustração da página impar. Este encontro consigo coincide com o início da tomada de consciência do personagem: tudo o que fez, logo verá, não lhe trouxe descanso ou alegria. Do meio para o final do livro, nas páginas que apresentam o texto, o Rei de Quase-Tudo caminha, para lá e para cá, numa figura cabisbaixa.

Ora, o leitor deve saber que o livro termina em um momento de paz! A narrativa verbal não sofreu a alteração de uma vírgula sequer, as imagens em quadros e diálogo com o leitor estão todas lá. No livro.


As diferenças que encontro entre a edição de 2004, realizada por Mary e Eliardo França Produções, em parceira com a Zit Editora, e a 15a. edição publicada pela Global, em 2011, dizem respeito às características do produto: o tamanho do livro, 25 x 25 cm agora, a encadernação com lombada quadrada em vez de grampos metálicos, a localização do logotipo da editora em frente à capa, mais outros elementos que alteram o que os olhos lentamente vão lendo: uma tipologia mais dura, sem as velhas serifas reais; as capitulares rubras fora de lugar, os quadros um tanto mais comprimidos na linha horizontal, as cores saturadas da impressão cobrindo os melhores efeitos da aquarela... Talvez não importe, o livro está de volta. Quase-todo.

10 de maio de 2012

a outra cartilha da ervilha

peter o’sagae


Conta Maria Amália Camargo que “ela nem precisou de muito mais tempo para perceber que, vivendo naquele castelo, passaria o resto dos dias como naquela noite: em maus lençóis!” Tudo por causa de um grãozinho de ervilha e um príncipe que não tinha nada de grã-fino!



Cada um imagine a confusão que aconteceu com esta moça chamada Emília Ercília que lá chegou, debaixo de um toró, toda maltrapilha... Ou leia o livro para saber como ela mesma decidiu e enfiou-se pelo mundo afora até encontrar seu verdadeiro amor: alguém que realmente a ajudasse a encontrar o caminho para casa debaixo de tempo ruim.

Faça chuva, faça vento, com ilustrações de Ionit Zilberman a saltarilhar sempre bom humor, o texto de Maria “Emília” Camargo vira-mexe e palavras empilha para entortar, ops, recontar Andersen: A ERVILHA QUE NÃO ERA TORTA... MAS DEIXOU UMA PRINCESA ASSIM  (Caramelo, 2012).

vamos à feira passear

peter o’sagae*


Antes que eu tire a mesa, diga logo o que pensou: laranja pêra couve manteiga... porque é assim: com pressa, leveza e graça que Maria Amália nos conta um dia de feira, terça-feira, para esvaziar os bolsos e encher a geladeira! Neste livro, tem muito freguês bacana querendo chuchu a preço de banana! Vamos à rua feirar com o pão-duro, o diplomata, a metereologista, o médico, a veterinária e o economista — e bisbilhotar cada pechincha, sacola, dieta e cozinha ;-)

Do som ao sentido, vemos aqui simples listas de frutas, legumes, hortaliças e quejandos transfigurando-se em poesia com ritmo e ironia. Cada personagem tem hábitos bem particulares a nos preparar a curiosidade e o apetite. O pão-duro não aceita nada muito esnobe como uva rubi ou abacaxi pérola, açúcar cristal nem pensar; em sua casa, só entra mesmo comida estranha, sem riqueza: quer saber, a ameixa é seca; a alface, crespa, e a ervilha, torta! Já o economista tem por dieta ideal frutas e verduras de nome composto, como banana-maçã ou tomate cereja. O que vai na cesta básica do médico? A metereologista prefere bolinhos de chuva e acepipes do gênero... É uma viagem a seleção do diplomata, você pode imaginar quantos pratos e vegetais tem nome de cidade, país ou capital? Comida com nome de bicho é bem coisa da veterinária!


Por fim, uma breve confissão: tive o prazer de saborear toda essa brincadeira LARANJA PÊRA COUVE MANTEIGA, de Maria Amália Camargo (Girafinha, 2006), meses antes do texto virar livro. Tão logo li, vi que seu trabalho vai além de uma simples enumeração. Sua proposta não é fortuita, investe de humor o jogo que joga nossa própria língua. Metonímias à parte, catacreses de montão, no cardápio de uma clientela tão eclética mas... Quanto tempo ela levou para recolher e arranjar tantos nomes esdrúxulos do dia-a-dia? Não sei, não importa. A ilustração de André Neves, como sempre, com bons enquadramentos, cores fortes, recortes, texturas curiosas. Fica para nós-leitores, com certeza, a bela sobremesa de um projeto bem casado!


* Extraído de Dobras da Leitura 37: setembro de 2006.