24 de novembro de 2012

boreais, coração dentro dos livros

Peter O. Sagae*


Alguns livros são feitos de 
pura emoção, acrescentando, aos poucos, ao discurso, em fogo brando, um suspiro e mais outro, descobertas boreais e úmido sangue correndo esperançoso às veias do leitor.
 E o primeiro título juvenil de Eloí Elisabet Bocheco, BEATRIZ EM TRÂNSITO, vencedor da terceira edição do Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana
 (Porto Alegre, 2005), assim se entrega: sem medo de invadir a distância, tocar os afetos, tomar nossa respiração (meu coração viu tudo, alerta a narradora) e você — você vai se emocionar!


Beatriz e seus parentes vivem de muitas mudanças pela vida, de cidade em cidade. Por isso, tem sempre casa nova pelo caminho e a necessidade maior de se desacostumar do costume dos mesmos lugares. E das paisagens internas que só para quem não quer ver parecem quase sempre iguais, mas movendo se vão com o talismã do tempo e da compreensão, ao vento do próprio destino. Ora, essa coisa de mudar é gosto que nasce dentro de certas pessoas. O avô curtia viagens e, de silêncio bem curtido, virou tropeiro de bois celestiais.
 A família, a família estacionou em Santo Antônio dos Campos e, desde então, a avó cuida da menina como se criança sem mãe fosse de vidro. Moravam juntos e juntos mudavam, de tanto em tanto, a tia Leonor, tia Rosana, tio Pedro, Eduardo, Lia...

Numa das escolas que conheceu, Biazinha (detesto que me chamem de Biazinha) ficou de olho assim grudado no armário bege de livros guardados de Guiomar, uma professora que sabia 
misturar aula e vida. Foi quando conheceu Samuel, um menino
 em trânsito sobre sua cadeira de rodas com jeitão de quem havia lido montanhas de livros, tantas paisagens ele conhecia! Depois, será Samuel seu melhor amigo correspondente. Melhor não fosse, nós até poderíamos pensar. Melhor seria não tê-lo conhecido, Beatriz até poderia pensar. Porque a saudade também existe para doer. E perdoar. Em outra escola, chegará Mariana de longe, com 
medo trancado que não pode abrir feito pote de barro que “dentro tinha coisa que chacoalhava, tilintava, farfalhava”.

Capítulo a capítulo, a história de Beatriz se descobre em um verdadeiro ‘livro de admirações’ por outro livres, como inventaram a menina e seu grande amigo, e coube à Autora realizar, obediente ao desejo dos personagens, através da urdidura da palavra. Tem momentos para suspirar um jardim inteiro (Sento na escada da varanda pra esperar a boca da noite soltar os pirilampos.) No entanto, melhor que contar o segredo dessas pessoas, é contar que essas pessoas todas têm segredos: vivos, dentro e fora da ficção. BEATRIZ EM TRÂNSITO encerra-se com um aceno
 de adeus e amizade, texto de encantos e asperezas em equilíbrio, denso e leve como a vida, mais uma pitada de umas coisas que se repetem e outras que nunca mais acontecerão.


« Devagarinho fomos saindo. Decerto a alma de minha mãe ficou contente com tanta flor bonita
 só pra ela. Me deu medo que as outras almas ficassem com ciúme porque não ganharam flor e viessem me pegar no meio da noite pra reclamar. Tinha tanta alma ali que era preciso um campo inteiro de flor. Nem olhei pra trás de medo desse pensamento não me largar mais até em casa e depois de chegar em casa também. Acho que a minha mãe me protegeu porque,
 dum ponto em diante da estrada, o pensamento se foi não sei pra onde. » 


* Resenha extraída do site Dobras da Leitura, por ocasião da publicação do texto pela editora Nova Prova, 2005, com a capa de Thanara Schonardie. A obra foi reeditada com ilustrações de João Lin (Dimensão, 2007).

22 de novembro de 2012

numa atitude comum ainda hoje

O'ABRE ASPAS para Edmir Perrotti


"O discurso utilitário procurou sempre oferecer a crianças e jovens atitudes morais e padrões de conduta a serem seguidos, ordenando os elementos narrativos em função de tal finalidade exterior [...] era de se esperar que autores da 'nova' literatura questionassem tal atitude também a nível da organização do discurso, uma vez que questionaram sempre os valores que sustentavam tal ordem: sexismo, preconceito racial, etnocentrismo, antropocentrismo, vida afetiva meramente formal, saber como instrumento de poder, individualismo etc. Todavia, não foi isso, muitas vezes, o que se viu [...] Vários autores da 'geração 70', em muitos momentos ficaram presos a esse impasse, numa atitude comum ainda hoje, sobretudo em trabalhos de iniciantes bem intencionados, mas poucos atentos às peculiaridades do discurso estético que [...] requer um leitor participante." (Edmir Perrotti) O texto sedutor na literatura infantil, 1986.

20 de novembro de 2012

o abraço dos orixás

Temporada de contos e recontos, 10


Pierre Fatumbi Verger abre o volume de LENDAS AFRICANAS DOS ORIXÁS (Corrupio, 1997) com as belas palavras de um babalaô: “Antigamente, os orixás eram homens.” – que, por seus poderes, sua sabedoria, força e virtudes, tornaram-se dignos de jamais serem esquecidos. Consequentemente, é a homenagem à memória de um ancestral que movimenta o culto aos orixás, de geração em geração, até os dias de hoje... Com base nas narrativas da tradição ioruba compiladas pelo Fatumbi, destacamos três recontos.


OXALUFÃ, com aquarelas de Edsoleda Santos e texto de Renato da Silveira (Solisluna, 2010), narra a longa viagem que o muito-velho orixá empreende rumo ao norte, para as terras de Xangô. Um adivinho da corte havia advertido Oxalufã de que não seguisse caminho; porém, o obstinado ancião decide ir, ainda que a passos lentos, apoiado sobre o cajado enfeitado por um pássaro de metal branco. Atravessando desertos, savanas e florestas, Oxalufã se depara com três exus zombeteiros que muito aprontam para por à prova a virtude de sua paciência... Consciente do poder da própria paz, o velho orixá chegará ao reino vizinho, exatamente onde começarão os sete piores anos de sua existência!


OXUM foi escrito e ilustrado unicamente por Edsoleda Santos (Solisluna, 2011), iniciando com a saga de um povo contra a falta de água e de alimentos, contra os animais ferozes e as paisagens áridas. É uma história de esperança e da conquista da uberdade da vida, representadas primeiramente pela busca de um lugar para estabelecer uma nova cidade e pela espera confiante do rei Larô pelo retorno da filha desaparecida. Pois a menina fora convidada a visitar o reino de Oxum, submerso nas águas doces do rio, onde conheceu a intimidade e as três lições mais importantes da natureza: o poder, o tempo e o ritmo da gestação; o aroma dos condimentos e o sabor das iguarias que nutrem e conservam a vida; o remédio para aliviar e curar o corpo com ervas e plantas. O mito de Oxum ensina-nos que ninguém é inimigo da água.


IBEJIS, de Edsoleda Santos (Solisluna, 2011), igualmente transporta o leitor para o tempo mágico dos reinos nigerianos, onde viviam os encantados orixás. Como muitas histórias a respeito do nascimento festivo de gêmeos, por toda costa e o interior do continente africano, e também pelo mundo afora, a lenda dos filhos de Xangô e Iansã faz reverberar a consciência ancestral de todos os povos, na tentativa de responder às perguntas de onde viemos, quem nos criou, quem são nossos pais. Aqui está mais um relato de um casal divinamente ligado aos fenômenos do céu, Xangô, deus do trovão, e Iansã, deusa de raios e tempestades, cuja força, som e brilho anunciam a descida da água à terra, fertilizando-a. Em meio ao mito da mãe que lutará bravamente contra a separação momentânea da morte de um de seus queridos filhos, encontramos a história de nossa divindade resguardada pelos símbolos totêmicos da fé.

19 de novembro de 2012

um abraço Brasil-Angola

Temporada de contos e recontos, 9


Jô Oliveira ilustrou A ÁRVORE DOS GINGONGOS, da escritora angolana Maria Celestina Fernandes (DCL, 2009) com os tons mais vibrantes de cobalto, violeta, magenta, os vermelhões muitos e um amarelo bastante ensolarado, para nos fazer sentir o calor e a língua portuguesa que entrelaça gentes, sabores, memórias à sombra querida de uma frondosa mangueira.


Ou, pelo menos, tal poderia ser o desejo de fazer qualquer criança estender o braço para pegar uma fruta madura e gostosa da árvore... Mas, não! Os gingongos caçulês não vão deixar.


Porque é assim: onde nascem gêmeos, vira toda a vida da casa para satisfazer as vontades dessas crianças. Que caprichosas, crescem, que danadas, mandam e determinam como as coisas devem ser! Pois, apesar dos outros sete filhos, Nga Maria e Papá Policarpo tinham grande adoração pelos mais pequeninos, uma menina chamada Eva e um menino chamado Adão, mimados e temidos pela vizinhança porque trariam azar para as pessoas, se tristes ou contrariados. É pra ter muitos cuidados, ehn!


Nascida em Lubango, Maria Celestina originalmente publicou o texto em 1993 (Portugal: Edições Margens) e dá testemunho do sincretismo que faz Angola orgulhar-se de suas tradições. A história atualiza a mitologia dos quimbundos a respeito dos gingongos ou jingongos Mpèmba e Ndèle que remotamente povoou o país. Em especial, em Luanda, onde a autora viveu grande parte de sua vida, os gêmeos são tratados com deferência, como portadores de boa sorte para as famílias, ainda que os velhos afirmem que eles possam ser potencialmente malignos, pois seus espíritos têm origens entre os antepassados ou as sereias... Ora, o nascimento duplo é uma reminiscência das antigas histórias ou real intrusão dos poderes superiores na vida cotidiana, às vezes, uma benção, d’outras, uma maldição. E a escritora revive as marcas ambíguas perante o divino, multiplicando-o com nomes bíblicos, – e fazendo surgir uma velha curandeira com amuletos, rezas, incenso, roupas de pano cru com símbolos azuis e vermelhos para Eva e Adão crescerem com paz e saúde; – e dando também às crianças o sacramento do batismo, quando receberam novos nomes, Manuel e Manuela, para homenagear, no papel, o padrinho branco.

A coesão social aí ainda advém da oralidade. Através dos pedidos, promessas e outras formas da palavra falada, os antigos mitos fazem despertar alguma razão sobre as emoções e os medos: vai um dia, os caçulês exigem a posse da mangueira do quintal e os pais, para evitar maka, birra e choro, acabam concordando. No entanto, quando as flores se transformaram em frutos... nenhum dos irmãos mais velhos, ninguém dos vizinhos, quis saber das proibições – e tempestivamente os gêmeos temperamentais adoeceram. Ah, se morrem, azar, muito azar para todos! Mas é neste ponto que uma nova acústica de consciência ilumina o respeito que os gingongos devem ter frente à própria comunidade, fazendo-os vencer o egoísmo tão infantil com que eles mesmos foram nutridos.