9 de agosto de 2013

alguma coisa acontece...

* Peter O’Sagae


São poucos os livros de imagem que abrem os olhos do leitor para um sentimento ou uma tomada de posição, quando o que é visto nos conduz pelo pensamento além, bem além, de uma narrativa. É, pois, preciso estar atento – e uma das obras de Nelson Cruz, A ÁRVORE DO BRASIL (Peirópolis, 2011) pode servir de guia a certa reflexão... Se é possível crer no arranjo de um discurso visual através da imagem, já temos aí esboçado um engendramento verbal importantíssimo – como a inseminação de um tipo signo dentro de outro signo, ou seja, o sémen da palavra no interior da imagem e entre imagens, numa e noutra configuração, introduzindo não apenas uma narrativa, mas os outros dois modos do discurso: a descrição e a dissertação.

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A riqueza dos detalhes nos desenhos de Nelson Cruz e, ao mesmo tempo, a visão panorâmica da dupla página do livro logram oferecer um mágico registro de uma história que se transforma em História. A viagem visual principia por 1800, em meio a árvores frondosas e cipós da mata fechada, um manancial de água, aves terrestres, uma onça furtiva, índios, o terreiro varrido por uma folha de palmeira, a fogueira para cozer os alimentos e coser os hábitos nítidos da atividade ainda nômade...


Na virada de página, o tempo salta e já não temos o efeito de continuidade comum às narrativas em livro de imagem: a paisagem é a mesma, atravessada por caçadores de chapéu e armas, uma onça estendida no chão, viajantes a cavalo, naturalistas, um negro sem camisa puxando o muar carregado de tralha e trempe. No terceiro quadro, descobrimos os machados abrindo uma porção vasta do céu sobre a floresta, a madeira explorada, as mulheres, vestido arrastando, desfilando a bilha d’água no alto de suas cabeças, engenheiros ou construtores mais na sombra improvisada de uma cabana... Novos homens ali buscam a instalação de um povoado.

E vem o quarto quadro, o quarto tempo, e mais outro, e mais outros!



A leitura enumerativa constrói a descrição da cidade expandindo-se diante de nossos olhos. A investidura do tempo na paisagem – das habitações aos casarios, janelas e torres, teatro, cafés, indústria e comércio, dos ambulantes, transeuntes, manifestantes, trabalhadores, mulheres, crianças, perseguidos e perseguidores – disserta, então, a ordem e a desordem. Já não é uma cidade, é um país em progresso que se deixou narrar, no interior deste cenário carioca, rural, mineiro, paulista, cearense, urbano, nordestino, entre morro e areia, palmeiras e araucárias, pau-brasil, tenentes e militares, complexo no jogo de abertura política e referências. Que não dizem uma verdade, mas expõem um conceito: nosso Eisenstein, Nelson Cruz nos aporta nos fragmentos visuais metonímicos e aponta a metáfora de sua obra, A ÁRVORE DO BRASIL, percorrida de histórias da História que ainda existem por trás das estruturas de ferro, tijolos, vidro e concreto.


* Ilustrações extraídas de nelsoncruzilustrador.blogspot.com.br

7 de agosto de 2013

alimento e inteligência

O’ABRE ASPAS para uma árvore


“Talvez porque não tenham raízes para traduzir a linguagem do chão, nem folhas para transformar a luz do sol em alimento e inteligência, as pessoas vivem falando, sem parar, mas quase nunca se fazem entender. Na verdade, eu acho que é porque são umas criaturas que estão há muito pouco tempo no mundo. Quando apareceram por aqui, a maioria das plantas já tinha explorado todos os cantos e recantos da terra, já tinham ocupado os vales, as montanhas, os desertos, os pântanos, as planícies, as margens dos rios, as praias e até os mares sem fim. Por isso é que sabemos tanto e tentamos ensinar o que sabemos às outras criaturas, tão mais jovens do que nós.” (Marcos Bagno) AS MEMÓRIAS DE EUGÊNIA, 2011.

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Um dos destaques do ano passado, o livro de Marcos Bagno, com ilustração de capa e vinhetas de Miguel Bezerra (Positivo, 2011), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e um dos vencedores do Prêmio Jabuti – Melhor Livro Juvenil. Em torno da amizade e dos cento e cinquenta anos de Eugênia, uma árvore, a novela articula diferentes dobras ficcionais, como o desenvolvimento de uma cidade, junto à pequena muda de jambeiro transportada para uma terra nova, a primeira escola, as casas e os colonos, a praça, as ruas, já uma população anônima; a ventura familiar de Margarida, o nascimento de sua filha Violeta, e o segredo que passaria por seis gerações, seis histórias de mulheres daquela mesma casa; o amor perseverante de Rosa e Floriano; as voltas ao mundo e o lugar de cada um no mundo, como os frutos saborosos, na construção e a interação de caminhos entre a vida social e o universo particular.


“As pessoas se iludem tanto, Eugênia, achando que a felicidade é alguma coisa grandiosa, brilhante, infinita, inalcançável. Elas acham que a felicidade é o céu que, ele sim, é grandioso, brilhante, infinito e inalcançável... Eu sempre desconfiei que a felicidade é simples, valiosa justamente por sua humildade. A felicidade é isso aqui: um jambo maduro, cheio de perfume e de lembranças... Obrigado, Eugênia.”

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P.S. Contracenando com o livro sobre o centenário jambeiro (Eugenia malaccensis), os poros leitores da mesa de imbuia (Ocotea porosa) e as flores-cinderelas de cedro-branco (Cedrela fissilis).

6 de agosto de 2013

afronta de flores vermelhas

* Peter O. Sagae, revisto em 16 de set. 2024


Este é um apólogo: CASAL VERDE, da escritora Índigo e Mariana Zanetti (Hedra, 2009, 2.ed. Caramelo, 2013), a respeito de mais um desses casos de amor que poderíamos ver por aí. Começa com um sentimento no ar que talvez ninguém desconfia... Ninguém, não! Sabia muito bem um bem-te-vi chamado Benjamin que Sílvia, pequena, certinha, amava Walter, tão espalhafatoso e grandão. Esta é uma história de amor entre duas árvores.

Apesar do nome, Sílvia Pereira não dava peras, pois é uma fícus de copa redonda sempre aparada, sem uma folha que o vento pudesse desalinhar. Ela sonhava com uma vida selvagem, sem podas. Na calçada oposta, ela olhava Walter Nogueira que não dá nozes, porque era um senhor flamboyant que cresceu livre, deixando cair folhas, sementes e flores por cima das pessoas e dos carros. Desordenadamente.


Exposto o conflito de um amor (aparentemente) impossível, a narração entra numas de despistar o leitor sobre o que já está óbvio demais contar. Todos veremos como Benjamin e outros bem-te-vis muito fizeram para levar um pouco de Walter para os galhos de Sílvia. E ela, alegrinha – toda coberta de flores vermelhas – torna-se alvo da incompreensão e do preconceito fácil de pessoas (realmente) difíceis, como o síndico do shopping Plaza Center, o segurança e sua equipe, o paisagista soberbo. Todos, aponte bem-te-vendo minha resenha, dando ordens e mais ordens, mostram-se verdadeiros jardinheiros!

A narrativa vai chegando ao fim (quase-quase) previsto. Vence o amor, porém mantido no sigilo das aparências para não ofender aos circunstantes, neste apólogo apoplético de Índigo. Que a afronta seja vermelha. Com toda flor!

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@indigo_hoje
@mariana___zanetti

P.S. Eu descreveria com bastante gosto uma visão sobre as calçadas, nas ilustrações do livro, resgatando o mosaico português (data historicamente de 1842) e o icônico “piso paulista” da arquiteta Mirthes dos Santos Pinto (década de 1960) que as pessoas atualmente pintam cinza por cima, remontam tortos ou deixam estragar na cara dura.

Cf. www.instagram.com/dobrasdaleitura