23 de abril de 2020

O LIVRO É NOSSO ABRIGO


Quando crianças, sonhamos ter uma banca de jornal para ter o colorido do mundo em primeira mão, através dos álbuns de figurinhas (essas pequenas e amplas janelas), com as histórias em quadrinhos, no recorte das manchetes, em meio a coleções de selos, fascículos de enciclopédia, partes e fatias da realidade, da natureza representada e da fantasia.

Quando crianças, sonhamos ainda ter uma casa repleta de livros e toda sorte de materiais impressos como passaportes para outras épocas, legiões e planetas, explorar o universo sem sairmos do lugar. Quem aí não suspirou e imaginou assim ó, pouco me basta -- uma cadeira, uma almofada, duas corcovas de camelo, um lugar onde esticar o corpo e puxar com as mãos informação e aventura? Água, comida, pés descalços, lua, escafandro e agasalho... ?

Muitos de nós foram crianças que sonharam e fizeram cabanas com o lençol, escondidos debaixo de um mistério ou outra sanha com a iluminação de uma lanterna ou um abajurzinho que devíamos desligar para não gastar a luz. Nem os olhos. Nem o sono, nem o tempo de descanso porque amanhã, você tem que levantar sem eu ficar gritando para ‘ti’ acordar!! Eu sempre ouvia dessas...

E muitos de nós éramos crianças tímidas com uma espécie de silêncio rebelde: fomos talvez a preocupação com que nosso pai ou a mãe ou avós e tios e até mesmo os vizinhos adivinhavam rumo à vida adulta numa sociedade que explode em estímulos enxames elétricos extroversão e... enganos! Porém hoje a nebulosa dessa vida nos deu uma vírgula, para nós e para eles todos igualmente, uma vírgula que diziam sempre que sempre funciona para dar uma pausa, no intuito de respirar e respeitar o sentido do texto e continuarmos depois mais seguros.

Então, está quase todo mundo no seu quadrado, pensando. Como será depois? O que fazer agora?

Quem pode fica em casa desenhando, escrevendo ou fazendo ‘lives’ carreando aquele vício de nos sentirmos produtivos a todo e qualquer instante. Ora vida, a life eu só ouço. Anotando as ideias dos outros, dos outros e dos outros. Sem lápis algum. Sem digitar nada. Mas construindo em minha mente a minha casa.

Porque nela posso receber o amigo que sou de mim mesmo -- e também receber o meu único inimigo meu. E logo me sinto ter nove anos. Seria trágico completar uma década? Era bom fazer vinte, depois trinta, quarenta já é demais, cinquenta estarei debaixo de terra, qual será meu recorde? E quantas vezes no meio das estações repetimos parem, parem o mundo que eu quero descer? Pois tudo parou (ou quase tudo) e desenhou-se a hora para decidirmos se vamos descer para o play ou planejaremos novas viagens.
 

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De algum modo, convidando-nos a participar de outras histórias, a BANCA TATUÍ busca incentivar a todo mundo ficar em casa acompanhados de livros e outros trabalhos criativos de autores independentes. São amigos reais e narradores virtuais que usam da palavra e da imagem para ampliar a sala de nossos pensamentos e espelhos.

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O LIVRO É NOSSO ABRIGO é essa campanha em que os artistas visuais recriam a mesma imagem de acolhimento com diferentes cores e técnicas, mas... podemos também desenhar com palavras?

18 de abril de 2020

se eu fosse uma fada


SE EU FOSSE UMA FADA
descalçava o sapato e a poesia
num reino desses que adoecia

e hoje não receitava pó de pirlimpimpim
pra ir à terra de fábulas reaças fedorentas
nem pro mato iria caçar onças
nem ditar regras de gramática
também não procurava nem vendia
mil poços de petróleo nem pré-sal
não ia bulir com as forças da natureza
diminuindo o tamanho da humanidade

ora, fada, quando uma poesia canta,
o mundo se agiganta e a gente toda deixa
de ser maria-vai-com-as-outras

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18 DE ABRIL e você fecha comigo?

Não fui dormir nem acordei lembrando de uma polêmica gostosa lá no doce de letra da rosa que ninguém é mais obrigado a dizer que é filho de apenas um pai só porque podemos ser IRMÃOS EM ORTHOF ‘inda mais nesses dias de mudanças no galinheiro: mudemos as coisas por inteiro pois o que era uma vez era ovo, uma ova!

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Card com a imagem da fada fofa, na ilustração de sylvia orthof, para o MANUAL DE BOAS MANEIRAS DAS FADAS (Ediouro, 1995? Nova Fronteira, 2009)

2 de abril de 2020

fome de palavras

* Peter Svetina (Eslovênia)


Na minha terra, os arbustos florescem pelo final de abril, início de maio, e logo se enchem de casulos de borboletas. Parecem bolas de algodão ou pedacinhos de algodão doce, mas as crisálidas que ali se desenvolvem devoram folha após folha, até os arbustos ficarem despidos. Quando as borboletas saem destes casulos, iniciam os seus voos delicados, entretanto os arbustos não são destruídos. Quando chega o Verão, tornam-se verdes novamente, e assim acontece ano após ano.

Este é o retrato de um escritor, o retrato de um poeta. São devorados, esvaziados pelas suas histórias ou poemas: quando estes já estão escritos, saem a voar para acabar nos livros e poderem encontrar os seus ouvintes ou leitores. E isto repete-se uma vez e outra mais.

O que acontece com os poemas e as histórias?

Conheço um menino que foi operado dos olhos. Depois da cirurgia, teve de ficar duas semanas apenas deitado sobre o lado direito. Durante um mês, não podia ler, não podia ler mesmo nada. Após um mês e meio, finalmente pegou num livro e pareceu que o livro era uma tigela onde apanhava palavras com a colher. Era como se o menino as comesse. Realmente ele as comia.

Conheço uma rapariga que cresceu e agora é professora. Disse-me: coitadas das crianças a quem os pais não leem livros.

As palavras nos poemas e nos contos são alimento. Não são comida para o corpo: ninguém pode encher o estômago com elas. São alimento para o espírito e para a alma.

Quando temos fome e sede, o estômago encolhe-se e a boca seca. Procuramos um pedaço de pão, um prato de arroz, de milho, um peixe ou uma banana. Quanto mais se tem fome, mais a atenção diminui, e já não se vê mais nada para lá do pedaço de comida que nos saciaria.

A fome de palavras não se manifesta deste modo, mas adquire a forma da melancolia, do esquecimento, da arrogância. As pessoas que sofrem este tipo de fome não percebem que as suas almas tremem de frio e passam ao largo sem nada notar. Uma parte do mundo foge-lhes das mãos sem que disso tenham consciência.

Esta fome pode ser saciada com contos e poemas.

Mas haverá esperança para aqueles que nunca se alimentaram de palavras para satisfazer sua fome?

Sim, há. O menino lê quase todos os dias. A menina que já cresceu e se tornou professora lê histórias aos seus alunos. Todas as sextas-feiras. Todas as semanas. Se um dia se esquecer, os alunos vão lembrá-la.

E quanto ao escritor e ao poeta? Quando chegar o Verão, ficarão novamente verdes. E mais uma vez serão devorados pelas histórias e pelos poemas que escrevem, que voarão em todas as direções, como borboletas. Uma vez e outra mais.

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Tradução: Maria Carlos Loureiro
Revisão e adapt. Dobras da Leitura
Cartaz de André Letria (Portugual)