Talvez devesse buscar o Uruguai nas enciclopédias ou nos guias turísticos, pegando o jeito e o signo pronto de um país. Talvez. Mas gosto da leitura oblíqua, evitando os símbolos que me asfixiam com ideias rígidas. Prefiro os índices que oferecem pistas ou pontes, andaimes movediços ao redor de algo à minha frente — um jogo entre o aqui e o ali, o que se vê e o que tenta não revelar... Será que o Uruguai existe na literatura, na pintura, na piscadela do olho? Talvez não seja um país exato, é apenas uma invenção de autores irrequietos!
Passeio por A CIDADE SEM NOME DE TORRES-GARCÍA, de Gustavo Piqueira @lote42 (2021), uma monografia palavra-imagem que conduz nossa atenção-observação ao imbricamento da caligrafia e do desenho num livro do artista uruguaio. Para adentrarmos “La ciudad sin nombre” (1941), Piqueira traça rápidas notas sobre o divórcio que a prensa produziria sobre a escrita e a noção de que é um código visual; então, recupera os percursos biográficos do andarilho que foi Joaquín Torres-García; e finalmente vamos nos deparar com algumas páginas que exibem como o autor alinhou e alternou o desenho de pessoas, carros, casas, prédios, letreiros às palavras.
Assim resenhando ou descrevendo, até se pode imaginar o quanto de carta-enigmática Torres-García encerrou em seu trabalho. A linguagem do rébus é uma aparente chave de acesso às invenções do artista que se dedicou ao Abstracionismo, um pouco ao lado de Mondrian e Arp, e as afinidades entre o neoplasticismo europeu e o grafismo dos artefatos pré-colombianos. Torres-García propõe uma sintaxe espacial que acomoda muito bem o moderno e a criança, elementos figurativos, geométricos e perspectivas afetivas planas. A cidade sem nome já me parece de todos os homens, de todas as idades. Montevidéu, Nova Iorque ou São Paulo. Em todas as ruas somos primitivos observadores? Ora, Torres-García também fora professor em uma escola infantil e produziu inúmeros brinquedos de madeira, após o nascimento dos filhos. Ao homem intelectual e prático, é digna e é signo a sua obsessão pela tríade vida-obra-cosmos, ou seja, a gênese de novas formas organizadas. E existirá algo mais belo e infantil do que isso?
14 de setembro de 2021
9 de setembro de 2021
uns versos felinos e uma citação de pouco visgo
Um livro me leva sempre a outros livros e encontrei nos andaimes da memória do personagem de Mario Benedetti, uns versos felinos de Juan Cunha e uma citação de pouco visgo a Constancio Vigil. Fui às páginas do Gran Diccionario de Autores Latinoamericanos de LIJ (2010), editado em Madrid com a colaboração de estudiosos do lado de cá do oceano. Das origens da literatura infantil no Uruguai, Sylvia Puentes Oyenard dá notícias de um tardio desenvolvimento por transculturação de fontes clássicas, espanholas e francesas, escassas influências negra e ameríndia, o folclore infantil compartilhado com outros povos, um lugar de conforto na ociosa voz do gaúcho improvisador de redondilhas e repetentes, por onde se mesclam baladas e rimances medievais em novos tons.
Porém me inquietou saber da outra literatura, aquela feita em livros. Tropeço numa trova que fala de índios puros (sic) abaixo do cielito, ensinando a rima que não se troca mate por chocolate! Adiante há de sabermos que o clima de lutas pela independência não poderia favorecer a criação de textos para crianças. No entanto, um colega de escola do bravo José Artigas viria a dedicar à sua sobrinha o ditado de fábulas e apólogos em versos, publicados na imprensa pouco a pouco nos idos de 1826. Trata-se de Antonio Larrañaga e quem se interessar poderia estender a pesquisa sobre Petrona Rosende, ambos fundamentalmente imbuídos de visões morais e patrióticas (em todas as literaturas se passou algo assim, não?). Com o dedo no índice onomástico, corro o nome de 63 autores de literatura para crianças no Uruguai. Conheço três? Que nome você poderia me recomendar?
Sigo equilibrando-me nos andaimes do romance de Benedetti. “Javier havia se convertido em um devoto de [Juan] Cunha, ainda que este não tivesse escrito rondas infantis. A poesia especialmente escrita para crianças lhe produzia alergia, ou melhor, um tédio insuportável. Estes autores devem crer que as crianças são idiotas, murmurava, que só entendem os diminutivos. E dá-lhe com o cachorrinho, o gatinho, o lourinho, a menininha, o papaizinho. Juan Cunha não, escrevia sério e sem diminutivos.”
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AUTORES DE LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS DO URUGUAI
Adela Marziali, Adolfo Montiel Ballesteros, Aida Marcuse, Alicia Alonso, Álvaro Figueredo, Ana Amalia Clulow, Antonio Soto (Boy), Armando Quintero Laplume, Carmen Posadas, Celestina Andrade de Ramos, Constancio Vigil, Daniel Baldi, Elena Pesce, Eloísa Pérez de Pastorini, Elsa Lira Gaiero, Ernesto Pinto, Esteban Stancov, Federico Correa Pose, Federico Ivanier Barreix, Fernán Silva Valdés, Fernando González, Francisco Espínola, Gabriel Eduardo Aznárez Morelli, Gabriela Armand Ugon, Gastón Figueira, Graciela Burger Fernández, Graciela Genta Horgales, Héctor Balsas, Helen Velando, Horacio Quiroga, Hyalmar Blixen, Ignacio Martínez, Isabel Amorín, Jesualdo Sosa, José María Obaldía Lago, José Pedro Bellán, Jovita de Almeida, Juan Burghi, Juan José Morosoli, Juan Zorrilla de San Martín, Juana de Ibarbourou, Julián Luis Murguía Azpíroz, Julio C. da Rosa, Julio Fernández, Kitita Guerendiaín, Lía Schenck, Luis Ramón Igarzábal, Magadalena Helguera, María Carmen Izcua Barbat de Muñoz, Marissa Arroyal Ordeix, Marita de Tutté, Mauricio Rosencof, Michel Visillac, Otilia Fontanals, Pedro Leandro Ipuche, Raquel Martínez Martínez, Ricardo Alcántara Sgarbi, Roberto Bertolino, Roy Berocay, Serafín José García, Sergio López Suárez, Susana Olaondo e Sylvia Puentes de Oyenard.
Porém me inquietou saber da outra literatura, aquela feita em livros. Tropeço numa trova que fala de índios puros (sic) abaixo do cielito, ensinando a rima que não se troca mate por chocolate! Adiante há de sabermos que o clima de lutas pela independência não poderia favorecer a criação de textos para crianças. No entanto, um colega de escola do bravo José Artigas viria a dedicar à sua sobrinha o ditado de fábulas e apólogos em versos, publicados na imprensa pouco a pouco nos idos de 1826. Trata-se de Antonio Larrañaga e quem se interessar poderia estender a pesquisa sobre Petrona Rosende, ambos fundamentalmente imbuídos de visões morais e patrióticas (em todas as literaturas se passou algo assim, não?). Com o dedo no índice onomástico, corro o nome de 63 autores de literatura para crianças no Uruguai. Conheço três? Que nome você poderia me recomendar?
Sigo equilibrando-me nos andaimes do romance de Benedetti. “Javier havia se convertido em um devoto de [Juan] Cunha, ainda que este não tivesse escrito rondas infantis. A poesia especialmente escrita para crianças lhe produzia alergia, ou melhor, um tédio insuportável. Estes autores devem crer que as crianças são idiotas, murmurava, que só entendem os diminutivos. E dá-lhe com o cachorrinho, o gatinho, o lourinho, a menininha, o papaizinho. Juan Cunha não, escrevia sério e sem diminutivos.”
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Un gato por la azotea.Versos de JUAN CUNHA que descobri após conhecer o Javier, personagem de Mario Benedetti no livro ANDAIMES (1996) que li no final de agosto. Digo que, em fevereiro mesmo deste ano, escrevi um poema onde digo: olhe, que mal há / a sombra de um familiar / ali se levantou /... / olhe, não um porém três.
La noche, parda también.
Um gato por el pretil:
Con su sombra, ya eran dos;
Y, cantándole la cola,
Podia passar por três.
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AUTORES DE LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS DO URUGUAI
Adela Marziali, Adolfo Montiel Ballesteros, Aida Marcuse, Alicia Alonso, Álvaro Figueredo, Ana Amalia Clulow, Antonio Soto (Boy), Armando Quintero Laplume, Carmen Posadas, Celestina Andrade de Ramos, Constancio Vigil, Daniel Baldi, Elena Pesce, Eloísa Pérez de Pastorini, Elsa Lira Gaiero, Ernesto Pinto, Esteban Stancov, Federico Correa Pose, Federico Ivanier Barreix, Fernán Silva Valdés, Fernando González, Francisco Espínola, Gabriel Eduardo Aznárez Morelli, Gabriela Armand Ugon, Gastón Figueira, Graciela Burger Fernández, Graciela Genta Horgales, Héctor Balsas, Helen Velando, Horacio Quiroga, Hyalmar Blixen, Ignacio Martínez, Isabel Amorín, Jesualdo Sosa, José María Obaldía Lago, José Pedro Bellán, Jovita de Almeida, Juan Burghi, Juan José Morosoli, Juan Zorrilla de San Martín, Juana de Ibarbourou, Julián Luis Murguía Azpíroz, Julio C. da Rosa, Julio Fernández, Kitita Guerendiaín, Lía Schenck, Luis Ramón Igarzábal, Magadalena Helguera, María Carmen Izcua Barbat de Muñoz, Marissa Arroyal Ordeix, Marita de Tutté, Mauricio Rosencof, Michel Visillac, Otilia Fontanals, Pedro Leandro Ipuche, Raquel Martínez Martínez, Ricardo Alcántara Sgarbi, Roberto Bertolino, Roy Berocay, Serafín José García, Sergio López Suárez, Susana Olaondo e Sylvia Puentes de Oyenard.
8 de setembro de 2021
o acúmulo de certa curiosidade
Lemos por impulso, o que pareceria acaso não é senão o acúmulo de certa curiosidade, como agora, meu avanço de beija-flor rumo ao Uruguai que vem se sobrepondo à mesa de trabalho, ao desktop do computador, e busco na revista PUÑADO @editoraincompleta a escrita feminina na literatura contemporânea mais atual.
Vera Giaconi nasceu em Montevidéu e vive na Argentina, participando da #revistapuñado N.º 3 com o conto “Água gelada” — um precioso thriller de 2011 a respeito de Amanda e as duas filhas pequenas que deliberadamente se isolam no silêncio ruidoso de um canal de notícias na TV e nas conversas num idioma estrangeiro o qual a mãe não domina. História tensa e surpreendente (contudo, aqui me desvio sobre um arranjo de coisas que rapidamente particularizam o cotidiano e a própria personagem, ao mesmo tempo em que mentalmente confiro o que tenho em minha cozinha) —
Vera Giaconi nasceu em Montevidéu e vive na Argentina, participando da #revistapuñado N.º 3 com o conto “Água gelada” — um precioso thriller de 2011 a respeito de Amanda e as duas filhas pequenas que deliberadamente se isolam no silêncio ruidoso de um canal de notícias na TV e nas conversas num idioma estrangeiro o qual a mãe não domina. História tensa e surpreendente (contudo, aqui me desvio sobre um arranjo de coisas que rapidamente particularizam o cotidiano e a própria personagem, ao mesmo tempo em que mentalmente confiro o que tenho em minha cozinha) —
“Amanda sorriu e olhou ao redor. A mesa estava cheia de vasilhas limpas e empilhadas. Havia formas de alumínio, um saco de confeiteiro, frascos de especiarias, colheres reluzentes. Também havia um medidor e uma fruteira com pêssegos, peras, morangos e cerejas que perfumavam o ar. Sobre a bancada, oito pratos de sobremesa, seis xícaras, o liquidificador, a batedeira, o pote de açúcar, a essência de baunilha, as ramas de canela, o chocolate e o queijo. Em quinze minutos tudo estaria no seu lugar. Em mais quinze minutos tudo começaria de novo: a hora do jantar se aproximava.”Dentro da #revistapuñado N.º 6-B, encontro um relato de viagem de Gabriela Aguerre, escritora também nascida em Montevidéu que se fez brasileira desde a infância. No inédito “Once upon in a blue moon” (2019), o deslocamento da narradora pelo constante anacoluto das frases e pelo intrincado mapa de Israel onde se pode ter a dupla sensação que atravessamos fronteiras estrangeiras, de cidade em cidade, quanto levar consigo o deserto interior pelo deserto de imagens novas, medos, lugares que não deveríamos estar, outros lugares perdidos no tempo. Afinal, o conforto seria um conto maravilhoso sob uma lua azul? Muito raramente...
1 de setembro de 2021
as dobras de dentro pra fora
dobradaleitura | não é apenas um livro dentro do livro o que vemos na ilustração de Bernardo Carvalho: este telhado é exatamente O CADERNO VERMELHO DA MENINA KARATECA, nas mãos da protagonista deste romance pluridimensional de Ana Pessoa (2012) — posto que o livro é abrigo de suas diferentes emoções e textualidades, com todo o fetiche permitido sobre o objeto: um códice de folhas vincadas ao meio e costuradas ao longo da aresta: espelho da menina, espelho do leitor para si mesmo — nesta rápida série de quatro pequenas postagens quero rever o lugar da imagem, sua metamorfose pela palavra e o humor que o livro de papel impõe, são as dobras de dentro pra fora – I
dobradaleitura | há na história de Ana Pessoa um gato preto de coleira vermelha que desaparece pela vizinhança: muito antes que se conte onde N o encontrará, Bernardo Carvalho irrompe num salto gráfico dentro do livro: o animal, ainda sem participação definida ou definitiva no enredo, aparece caminhando no interior através das páginas e leva o leitor a uma sequência de imagens que não sabemos se ilustram o que se deseja ter e obter, se fazem avançar o tempo do romance ou apontam uma realidade sem leitura — o gato não é unicamente preto, seu corpo articula-se numa passagem por duas dimensões a que chamamos verso e o outro lado da página — são as dobras de dentro pra fora – II
dobradaleitura | gosto da ideia de que uma imagem nunca mente, uma vez que ela não pode(ria) mostrar o que ela não é, mas apenas o que é — e Bernardo Carvalho retratou aqui um caso óbvio: a verdadeira página de rosto para o romance de Ana Pessoa: página com rosto que deixa atrás, no verso, a orelha e a massa do cabelo, o contorno de um ombro, cuidadosamente tirando proveito do vértice do códice para alinhar o pescoço — e eu, que lancei mão do anagrama imagens/enigmas (2008), muito desejo afagar o ROSTO DA PÁGINA, por onde humor é tudo: o destino do que irei ler na bola da goma de mascar, feito um fotograma de filme de Kieślowski — são as dobras de dentro pra fora – III
enfim, aqui o último comentário à margem de O CADERNO VERMELHO DA MENINA KARATECA, de Ana Pessoa e Bernardo Carvalho (2012) — todo texto que tomamos verbalmente deveria corresponder a uma imagem de si mesmo e não seria à toa que o tema dos gêneros textuais trabalhem muito com o conceito de espelho, de tamanha sorte que a literatura é um fantasma: o fim de qualquer caderno é transformar-se em livro e imagine, pois, que isto tudo não é um mero diário nem novela: com que assombro a narrativa andará adiante e adiante, apresentando uma discussão sobre o significado da morte do autor, por revolta dos personagens — são as dobras de dentro pra fora – IV
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