Um cartaz, um livro e uma exposição. As imagens de BRASILEIRINHOS (2017) aqui me servem para pontuar o que vamos encontrar, entre diversas outras ilustrações de Laurabeatriz para os poemas de Lalau, na Galeria Página, em São Paulo. Com a curadoria de Renata Nakano, “Refloresta” nos aproxima dos originais, das cores e texturas fortes, permitindo ver o delicado movimento repetitivo do giz pastel na pelagem dos animais ou mesmo como a solução opaca da tinta guache permite acúmulos na sobreposição das pinceladas. A luz vem do contraste, vem também do fundo do papel escuro.
Dos artistas que a inspiraram, Laurabeatriz faz referências a Gauguin, Van Gogh, Degas, Modigliani. Modigliani? Além dos olhos redondos, pretos, castanhos, pupilas centralizadas de pássaros e peixes, olhos verdes ou amarelos filtrados por uma claridade saliente, quebrando a ilusão da quarta parede — há também uns olhos oblíquos ligeiramente deslocados. Olhos de apelo, dor e ternura. Olhos de distância e presença. Fato é, sempre me perguntei em que medida as ilustrações de Laurabeatriz, partindo de uma pesquisa fotográfica, não só descreveriam uma informação visual enciclopédica, mas poderiam narrar algo mais.
Nesse sentindo, a imagem se enovela em um discurso veemente, um emblema, uma fábula, resultando em um diálogo com o leitor-observador, via linguagem do afeto e das narrativas mais familiares. A raposa ali acuada; os três micos que parodiam a atitude sábia-não-sábia de nada-falar, nada-ver, nada-ouvir; o peixe-boi com olhos de sesta e preguiça (você perdoe meu francês e o brilho do papel, como direi, voulez vous couché avec moi?); o aturdido cachorro-do-mato de orelha-curta, tão curta, curta, quase escapuliu do poema de Lalau! Belezuras, focinhos, queixumes, crenças, animais protegidos pelo caipora.
A exposição estará aberta até 14 de junho,
visite @paginagaleriadeilustracao
@laurabeatrizarte
@lalausimoes
@renatanakano
@companhiadasletrinhas
#dobrasdapoesia
🧡 #quemtemquindimtem
5 de maio de 2025
28 de abril de 2025
agora, já imaginaram?
dobrasdaleitura | Tinta vinílica rosa ou dourada para serigrafar o domingo cinza paulistano, no espaço de leitura do Sesc Vila Mariana, onde, numa vivência gráfica, uma folha de papel transformou-se no livro ANATOMIA DO LIVRO, de João Varella em parceria(s) com La Bici Press e os próprios leitores que dobraram dobras, imprimiram a cor da capa e terminaram fazendo algumas intervenções com carimbos sobre as páginas.
Um livro que se apresenta em primeira pessoa, descrevendo-se desde os primeiros parágrafos em editor do texto e passar por várias mãos/mães, até se configurar como esse simpático objeto da cultura letrada... Brincalhão, mas sério, articulando forma e paratextos, também chamados indicadores de suporte (anos e anos atrás eu ensinando isso a professoras e às crianças para que pudessem dar coerência a uma leitura prospectiva). Que mais contar?
@labicipress
Este é o livro nº 57 da @lote42
Agora, já imaginaram o que aconteceria se
golfinhos saltassem, de dentro do livro?
Um livro que se apresenta em primeira pessoa, descrevendo-se desde os primeiros parágrafos em editor do texto e passar por várias mãos/mães, até se configurar como esse simpático objeto da cultura letrada... Brincalhão, mas sério, articulando forma e paratextos, também chamados indicadores de suporte (anos e anos atrás eu ensinando isso a professoras e às crianças para que pudessem dar coerência a uma leitura prospectiva). Que mais contar?
“Você sabia que antes era inconcebível um livro sem ilustrações? Pois é, mesmo depois da popularização da tipografia no Ocidente, os editores deixavam um generoso espaço ao redor do texto para que o livro pudesse ser arrematado com desenhos. Então fica o convite para você que me lê: quer me ilustrar? Vale lápis, tinta, carimbo, o que quiser, como você achar mais bonito.”@joaovarella
@labicipress
Este é o livro nº 57 da @lote42
Agora, já imaginaram o que aconteceria se
golfinhos saltassem, de dentro do livro?
2 de abril de 2025
a linguagem de imagens
Poema de Rian Visser, trad. peter O sagae*
O que podes desenhar
para as palavras,
para as coisas que digo?
Desenha então
o miolo vazio do dia,
frio,
vento,
o nó na garganta
ou a má sorte,
desenha o engasgo,
o suspiro,
o cheiro do pão quentinho,
o tempo,
um breve instante,
o comecinho ou o fim
de uma intenção,
desenha um lugar onde certa vez,
um lugar onde nunca,
um lugar onde logo
algo vai acontecer,
desenha a dor que impele,
o gosto do mar.
Tanto é ou será
talvez o amor
depois,
o tanto que há
que desejo mirar.
Cria imagens
para o meu poema,
e fica à vontade, por favor:
estas palavras
são tuas
embora venham de mim.
* * *
A mensagem do IBBY para celebrar o Dia Internacional do Livro Infantil (DILI 2025) veio da coletânea de poesia ilustrada Alle wens van de wereld (2021), de Rian Visser e Janneke Ipenburg, que conquistou o prêmio Zilveren Griffel, na Holanda, e a Gouden Poeziemedaille (Medalha de Ouro da Poesia) na Bélgica. O título do poema “beeldtaal” pode ser interpretado como uma linguagem visível apenas através das palavras (conceitos) ou mesmo “falar por imagens” porém naquilo que há de irredutível de uma linguagem para outra.
O que podes desenhar
para as palavras,
para as coisas que digo?
Desenha então
o miolo vazio do dia,
frio,
vento,
o nó na garganta
ou a má sorte,
desenha o engasgo,
o suspiro,
o cheiro do pão quentinho,
o tempo,
um breve instante,
o comecinho ou o fim
de uma intenção,
desenha um lugar onde certa vez,
um lugar onde nunca,
um lugar onde logo
algo vai acontecer,
desenha a dor que impele,
o gosto do mar.
Tanto é ou será
talvez o amor
depois,
o tanto que há
que desejo mirar.
Cria imagens
para o meu poema,
e fica à vontade, por favor:
estas palavras
são tuas
embora venham de mim.
* * *
A mensagem do IBBY para celebrar o Dia Internacional do Livro Infantil (DILI 2025) veio da coletânea de poesia ilustrada Alle wens van de wereld (2021), de Rian Visser e Janneke Ipenburg, que conquistou o prêmio Zilveren Griffel, na Holanda, e a Gouden Poeziemedaille (Medalha de Ouro da Poesia) na Bélgica. O título do poema “beeldtaal” pode ser interpretado como uma linguagem visível apenas através das palavras (conceitos) ou mesmo “falar por imagens” porém naquilo que há de irredutível de uma linguagem para outra.
21 de fevereiro de 2025
eu me sinto é que nem criança
dobrasdaleitura copiando Haroldo Bruno:
O dia emendava com a noite: era a hora do poente que se anunciava. Como quem não nada, o sol se despedia em clarão vermelhaço, a brisa amaciando o capim, o voo hesitante dos pássaros e os primeiros morcegos a se debaterem contra as copas. Um galo cantou — cocoricó! — julgando por certo fosse de madrugada. Aí Zé Grande sentiu um aperto danado no coração. Nada que pudesse definir, uma sensação de que boiava, como o próprio tempo que sobre as coisas se estendia.
Mas de repente, silêncio imenso baixou nas suas pálpebras. As árvores pareceram se iluminar por dentro, até as pedras ficarem transparentes. As poças d’água viraram espelhos, tudo que era sujo e feio ganhou estranha boniteza.
— Está sonhando, Zé? — escutou uma voz tão longe que podia vir de seu espírito ou dos confins do mundo.
Sonhando? — repetiu para si mesmo, num eco. E beliscou o rosto, os braços. Não é possível. Talvez esteja sonhando que sonho, e por esse descaminho de fantasia me perco. Uma sombra, um sonâmbulo entre coisas tão exatas. Finjo que sonho, melhor dizendo, para não me espantar com o que vejo. Deixo que sobre os meus cabelos, vinda das ramagens ou das estrelas, caia essa poeira luminosa, e meus ouvidos se encham de um silêncio que agora é a mais perfeita das músicas. Um simples olhar, a posição do corpo, um jeito que se dá nas lembranças e nas ideias — e despertamos para o encantamento. É a minha iniciação no mistério, no sonho acordado. Ou será que é fome?
Nisso, no justo momento, a Voz novamente:
— Não é fome nem nada, Zé. É a poesia. Ela só vem quando nos sentimos assim, como se nus estivéssemos diante das coisas, desligados das aparências do mundo. Mas sem esquecer o mundo, a gente que mora nele. Criando outros mundos. Leves. O coração sem ódio.
— Não vou encontrar o pífano de meu pai? Não terei mais Flor-do-Sereno?
Haroldo Bruno
O MISTERIOSO RAPTO DE FLOR-DO-SERENO
Capa: Joaquim Caetano Neto
(Salamandra, 1979) pp. 20-22.
Mas de repente, silêncio imenso baixou nas suas pálpebras. As árvores pareceram se iluminar por dentro, até as pedras ficarem transparentes. As poças d’água viraram espelhos, tudo que era sujo e feio ganhou estranha boniteza.
— Está sonhando, Zé? — escutou uma voz tão longe que podia vir de seu espírito ou dos confins do mundo.
Sonhando? — repetiu para si mesmo, num eco. E beliscou o rosto, os braços. Não é possível. Talvez esteja sonhando que sonho, e por esse descaminho de fantasia me perco. Uma sombra, um sonâmbulo entre coisas tão exatas. Finjo que sonho, melhor dizendo, para não me espantar com o que vejo. Deixo que sobre os meus cabelos, vinda das ramagens ou das estrelas, caia essa poeira luminosa, e meus ouvidos se encham de um silêncio que agora é a mais perfeita das músicas. Um simples olhar, a posição do corpo, um jeito que se dá nas lembranças e nas ideias — e despertamos para o encantamento. É a minha iniciação no mistério, no sonho acordado. Ou será que é fome?
Nisso, no justo momento, a Voz novamente:
— Não é fome nem nada, Zé. É a poesia. Ela só vem quando nos sentimos assim, como se nus estivéssemos diante das coisas, desligados das aparências do mundo. Mas sem esquecer o mundo, a gente que mora nele. Criando outros mundos. Leves. O coração sem ódio.
— Mas eu me sinto é que nem criança, imaginando os impossíveis — respondeu Zé Grande.Logo a Voz foi morrendo nas quebradas, se confundindo com os cochichos das plantas sonolentas. Tudo regressou à condição desencantada de antes, e a noite já era completamente. Zé Grande gritou com angústia, tentando agarrar a Voz que fugia:
— Isso mesmo. A poesia é um dom das crianças. Mas não há nada de impossível em tudo isto.
— Então é real cair chuva de luz nos cabelos da gente?
— Sim, Zé.
— E ver moças dançando? bailarinas vestidas de folhas e com lanternas na mão?
— Sim, Zé.
— E ouvir música sem saber donde vem?
— Sim, sim, Zé. Tudo é verdadeiro no reino em que você está. E lhe pergunto agora: sabe quem são estas moças?
— Não sei, mas me lembram alguém.
— Pois são Flor-do-Sereno.
— Como? Flor-do-Sereno é somente uma e mais ninguém.
— Ora, Zé. A poesia multiplica tudo. Na dança do sonho, Flor-do-Sereno é muitas e ela só.
— Não enxergo o rosto dela, os olhos, a cor da pele, o sorriso que me doma.
— Mania de que tudo seja certinho... Só porque as coisas às vezes não se apresentam inteiras, acabadas, não quer dizer que elas não existem. Vê aquele homem ali, trepado no galho maior?
— É meu pai. E aquilo que ele toca é o pífano perdido.
— Sem tirar nem botar.
— Não vou encontrar o pífano de meu pai? Não terei mais Flor-do-Sereno?
* * *
Haroldo Bruno
O MISTERIOSO RAPTO DE FLOR-DO-SERENO
Capa: Joaquim Caetano Neto
(Salamandra, 1979) pp. 20-22.
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