19 de agosto de 2009

Um parafuso a mais para a literatura




Tino Freitas
il. Mariana Massarani
CADÊ O JUIZO DO MENINO?
Manati, 2009
ISBN 9788586218590
21 x 21 cm 24p.


Tino, substantivo masculino, um quê de instinto, certo discernimento: juízo natural. É isso o que ensina o dicionário. Um menino sem tino é um menino sem juízo, sem o senso do perigo, com um parafuso a menos: assim dizem as pessoas. Quando acorda esse menino, o dia todo se entorta com ele: do quarto bagunçado ao banheiro, onde está o juízo do menino que contente, contente, penteia os cabelos com uma escova de dente?

Tino também é um tipo de roedor. Em especial, um roedor de livros ;-) um menino sem juízo, naturalmente. Aí se escreve o nome dele com letra maiúscula: Tino. E um Tino sem tino é o mesmo que um menino sem parafuso? Ou um parafuso sem menino? Porque, neste livro em que o Tino Freitas poetou, Mariana Massarani afrouxou parafusos por todas as páginas para o leitor encontrar. Está dentro do armário, no frio da geladeira ou guardado na mochila? Por onde o menino passa, vai deixando sua marca, sua idiossincrasia, sua mania de fazer as coisas a seu modo... Podem falar à vontade, comentar, reclamar, criticar, chiar: o menino passa. Passa adiante.

Quando chega a noitinha, o menino — que é míope para a ordem ordinária do mundo — aventura-se. Num livro... E a ilustração abre o diálogo do presente com os textos da tradição literária para crianças e jovens, desparafusando mais horizontes para a leitura de O gênio do crime, de João Carlos Marinho, Pluf, o fantasminha, de Maria Clara Machado, Drácula, de Bram Stoker, O patinho feio, de Andersen, Robson Crusoé, de Daniel Defoe, Alice no país das maravilhas, de Carroll, obras de Monteiro Lobato e Júlio Verne.

Em seu livro de estreia, Tino Freitas compõe trovas bem quadradinhas para cantar a história de um menino sem juízo — e aparece ele próprio, Tino, todo colorido com seu violão, ajuizando o parafuso da leitura bem lá no final do texto. A voz narrativa cede lugar à mensagem do autor, transformando o livro em uma peça de atividade leitora: é necessário recomeçar e procurar os parafusos soltos na ilustração. Mas, será que a gente não tinha visto, não?



Com os Roedores de Livros: sacola e juízo.

18 de agosto de 2009

Um livro para fisgar poesia


De Lalau e Laurabeatriz, HIPOPÓTAMO, BATATA FRITA, NARIZ: tudo deixa um poeta feliz! (DCL, 2009)

Poesia sobre quase tudo: bicho, planta, gente: o que deixa um leitor feliz? Uma aliteração alinhavando Lalau e Laurabeatriz, ou a rima do nome dela com seu nariz? É divertido e oportuno começar a trocar as coisas de lugares, desde a capa do livro. Então, veja bem: as imagens aí se espalham num bailado — ou, num diagrama coreográfico, em que a relação palavra&imagem começa a movimentar a atenção do leitor. Tem hipopótamo, claro que tem — e batata frita também? O que evoca uma cor e lembra certa forma são analogias tantas! Vamos buscando elos de sentido aqui e acolá, compondo pares, comparando elementos, uma palavra, um desenho, outro desenho — e uma ideia qualquer, gaiata e ligeira, surge. De repente, vai embora...

Um processar de descobertas acontece igualmente antes de o poema bater no papel — é preciso um fisgar raio-como-quê para dar palavra a um alumbramento. E bem assim, ou quase assim, saem estes poemas de Lalau, sortidos e livres, brincando num vai-bem de semelhanças: sono é nuvem de mel, chuva são guizos, criança não tem diferença de uma estrela-do-mar, cobra fica igual à mola, quando se enrola e prepara o bote...

Mas, muito mais que comparações inusitadas ou feitas a partir do perfil de um triângulo ou de um círculo, Lalau se divertiu com outros lances de relação. Veja só que o livro tem um poema para o que tem embaixo das coisas, um poema para o que tem dentro das coisas e outro poema para o que tem fora das coisas — textos que jogam com o óbvio e o inesperado, nalguns versos a mostrar que “Embaixo do pinguim, / Tem gelo. / Embaixo do beduíno, / Tem camelo.”, “Fora do tatu, / Tem buraco”, ou “Fora da lâmpada, / Tem Aladim.”, lembrando letra de canções de Nando Reis e a simplicidade bem humorada de José Paulo Paes, dando voz de criança à esperteza que existe/resiste em todos nós. É muito saboroso também “Um poema para os professores” que encerra o percurso de treze textos desenhando ideias e ideais de um mundo melhor rimado.

E os desenhos de Laurabeatriz? Indefectíveis, mantendo a sobreposição de seres viventes, voadores, caminhantes, com pétalas, bico, olhos e rabo de cometa.

17 de agosto de 2009

roseana nas alturas


Roseana Murray
il. Mari Ines Piekas
POEMAS DE CÉU
Paulinas, 2009

ISBN 9788535623888
20 x 28 cm 24p.


Dizem que os poetas habitam o céu. Não sei... O que me dão por verdade é que, durante séculos, tiveram olhos para as estrelas e outros astros, fazendo versos sentimentais de toda métrica. Apenas um Manuel Bandeira, certo dia, teria decidido demissionar a lua de atribuições (e atribulações) românticas. No entanto, parece que nem todos estiveram de acordo para abandonar a mansidão escura e imensa da noite — e por lá ficaram muitos: como Roseana Murray.

Parece também que o céu tem funduras e Roseana continua pescando versos com a mesma linha com quê imaginou o cais de outros amores, desertos, jardins e madrugadas. Neste livro, o eu-lírico salta ao quintal do céu para colher uma estrela cadente — no entanto, numa insistente e curtida solidão como se fosse apenas possível o mergulho para dentro de si. Ora, direi efeito fazer soar na voz de poeta uma voz que adolesce, sentindo “essa coisa esquisita” que é como um pedaço faltando, um buraco negro dentro da alma... Assim, contrariando a própria ciência que lança sondas aos confins e encanta-se, nem mesmo o cosmos é percebido e explorado por um olhar poético que extravaga por espaços de belezas astronômicas e siderais.

Poemas de céu é uma coletânea que traz auroras, sinos de vento e prata, crepúsculo, via Láctea, sonho, arco-íris, força da gravidade, extraterrestres, constelações distantes, caminho de estrelas — tudo que atravessa e habita o céu, impondo unidade temática. Porém, a janela desses versos não é aberta unicamente para o leitor juvenil, como seria de suspeitar. Alguns poemas são destinados a crianças menores; embora poucos, são eles que deram o tom para o projeto gráfico e a ilustração de Mari Ines Piekas: sem mistério e didaticamente diagramado.



7 de agosto de 2009

Carinho também é uma forma de obediência



Elias José 
AS HORROROSAS MARAVILHOSAS
l. Rosinha, bordados de Iane Costa
DCL, 2009

ISBN 9788536802435
20,6 x 27,5 cm 40p.


Haveria ela de casar, um dia, tanto que rezava e pedia para Santo Antonio. Contudo, parecia mesmo que o santinho propositalmente deixava para atender seus pedidos depois. Por isso, a moça chorava. E chorava... E a mãe resolveu ajudar. Ajudou? Pôs olho no mundo, procurando moço bonito e trabalhador, encontrou Tonico, dono da loja do lugarejo e pôs-se, então, a prosear com o escolhido para genro. Porém, saiba já, mãe que fala demais atrai pra filha muitos ais... E deu no que deu: a mulher alardeou que não havia quem bordasse tão perfeito e tão rapidamente como sua filha — e isso chamou a atenção do rapaz que ofereceu para ela o melhor linho e meadas de cor variada. Mas, a moça!

A moça não sabia nada. Tentou, bem que tentou. Furou os dedos inutilmente. Mal aprendeu a enfiar a linha na agulha e a dar um nó. Deu pontos grandes, desajeitados, e acabou sujando o linho com tanta lágrima. Correu, enfim, para pedir ajudar a três velhinhas horrorosas, bordadeiras maravilhosas...

Elias José empresta seu jeito de minerar histórias a um velho conto da tradição européia que aqui chegou nalguma caravela portuguesa, tendo sido também compilado nas coletâneas feitas por Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso. Classificado como um conto de exemplo, pelo folclorista Câmara Cascudo, esta é a mesma história das três fiandeiras que ajudam uma mocinha em troca de um favor: um convite para o casamento que irá ser celebrado proximamente e ser recebida como tias da noiva. O que parece apenas uma prova ingênua acaba transformando a sorte da jovem, pela magia do reconhecimento do favor prestado e pelo fervor de uma obediência carinhosa.

Nas ilustrações, obediente à temática, Rosinha Campos divide o traço de seus desenhos com retalhos de linho colorido e os bordados de Iane Costa. O livro transforma-se quase todo numa toalha de cenas e florzinhas emoldurando o texto com delicadeza.

Desenrolando diferentes histórias



Linho: a viúva deseja o melhor para a filha bordar, na perspectiva de Rosinha para o reconto de Elias José, As Horrorosas Maravilhosas (2009) [saiba+]. Seda tecida por Lúcia Hiratsuka em duas versões de O Passáro do Poente (1993 e 2007).

Em silêncio e seda


Lúcia Hiratsuka
HISTÓRIAS TECIDAS EM SEDA
(Cortez, 2007)

ISBN 9788524912870
18 x 28 cm 48p.


Como tecidas em silêncio e seda, três belas jovens atravessam a paisagem de antigas narrativas japonesas. São três histórias de segredos que começam quando uma moça vestida de quimono branco surge inesperadamente através dos campos de neve, uma princesa com o rosto escondido por um vaso foge pelos jardins de um palácio e uma tennin celestial vem banhar-se em um lago na terra...

Na lenda d' O Pássaro do Poente, Otsû é a moça misteriosa que pede pousada à casa de um aldeão. Parecia perdida por aqueles caminhos que a neve apagou e Yosaku aceitou sua companhia, por uma noite... Mais outra... E outra mais — até que um tempo melhor viesse e ela pudesse prosseguir. Mas não foi bem assim que a trama da convivência envolveu os dois, quando abriram as flores da primavera e do casamento feliz que tiveram. Para ajudar o marido, Otsû pediu um quarto com um tear e, durante três dias, ali permanecia tecendo fios e desenhos em seda — e Yosaku deveria esperar, sem procurá-la ou espiar seu trabalho...

A segunda história do livro de Lúcia Hiratsuka é um conto mágico, semelhante em estrutura e sonho à ventura das donzelas obrigadas ao trabalho e ao borralho. Hachikazuki é uma princesa que recebe a benção materna na forma de um estranho vaso posto sobre sua cabeça. Todavia, aos olhos do príncipe, não passarão despercebidas sua delicadeza, inteligência e sensibilidade.

A história de Tanabata possui diferentes versões que, muitas vezes, aproximam o conto e a lenda, em um só texto, e que se ligam intimamente ao Festival das Estrelas. É bem assim o comecinho: preso aos galhos de um pinheiro, Mikeran encontra o raro e leve manto de uma tennin e, cautelosamente, o recolhe e esconde. Mesmo quando a bela jovem, mergulhada nas águas do lago cristalino, pergunta-lhe se vira seu manto mágico, contando que não poderá voar, sem ele, de volta ao reino acima das nuvens, Mikeran faz segredo, oferecendo sua casa e companhia. Porém, tudo o que se guarda, um dia, é encontrado — e Tanabata recupera seu precioso hagoromo e o desejo urgente de voltar.

Estas três histórias tecidas em seda já haviam sido compiladas pela autora em diferentes volumes (Estação Liberdade, 1993 e 1995) de uma coleção, esgotada há um bom tempo. Reunidas em um só livro, as narrativas receberam novas roupagens em texto e ilustrações, compondo também nova unidade: em todas as três, é sempre uma promessa e a necessidade de perseverança que enredam os personagens, seus segredos e destino.


« Um dia, ao limpar a casinha dos fundos onde se guardavam objetos em desuso, Hachikazuki encontrou um velho koto. "Ah, que saudades da mamãe. Sempre tocávamos juntas." Dedilhou as treze cordas, fazendo soar o delicado som daquele instrumento. Logo, seus dedos pareciam se mover por conta própria, relembrando as melodias que tocava junto com a mãe. O príncipe ouviu aquelas notas. "Que linda música... Quem será que toca tão bem?" »