2 de outubro de 2009

naquela floresta de abraços

por Peter O'Sagae


Taisa Borges, no livro de imagem A BELA ADORMECIDA (Peirópolis, 2007), remonta a versão de Charles Perrault, em meio à estamparia floral que evoca os longos braços de folhas e espinhos que circundaram o velho castelo.

São finíssimos os traços que detalhadamente desenham rostos e vão contornando os volumes todo-brancos do cenário e do rico figurino. Como que assinalando faltas e ausências, as imagens surgem tingidas por um vazio de cores — um amarelo apenas esmaece ao fundo do casal real; um vermelho pouco rubro mancha a toalha da mesa, onde se reúnem sete fadas elegantes, durante a celebração do nascimento da princesa; mais adiante, existe um verde que a esperança do príncipe exige sobre seu manto... E branca será a floresta por onde o amado há de passar. Somente o vestido de Bela tem sempre cores, da ansiedade juvenil ao sono irrevogável: vermelho, azul, amarelo, o corpete, o recortado das mangas, a saia, a floração que ali se insinua em giros e onde mesmo há de brotar um novo matiz para a sua história.

Pois bem: ao escolher a versão francesa do conto, Taisa Borges reserva as páginas centrais para uma seqüência, por vezes, desconhecida dos pequenos leitores. Sob a proteção do castelo, no aconchego da floresta de abraços, Bela e o príncipe tiveram dois filhos — e é mais do que chegado o momento dele apresentar a nova família, em outro reino, perante seus pais. E as cores, as vestes escuras, o rosto mal iluminado da Rainha-Mãe antecipam o destino sombrio que está para acontecer!

Neste trabalho, que encerra uma trilogia de homenagens aos contos de fadas, Taisa Borges enfrenta o desafio de cenas mais estáticas e estancadas, principalmente na primeira parte do livro, como se os personagens estivessem posando para um quadro ou parados à beira de um palco. As páginas são verdadeiramente rememorativas, exibindo certos momentos do conto, sem encadeamento de ações, o que exige conhecimento e esforço da memória para o leitor completar a narração.

cores e ambientes instintivos

por Peter O'Sagae


Da voz à palavra escrita, os contos tradicionais guardaram imagens sabiamente mágicas na medida em que libertam a mente para o sonho. Mesmo um conto que se inicia tristemente e desperta sentimentos de desamparo, possui nuances de força, brilho e otimismo. Assim, para escapar da floresta, João e Maria ludibriam a má sorte com pedrinhas brancas cor de lua e encontram o caminho de volta para a casa. No entanto, ao marcarem a trilha com pedacinhos de pão, as crianças são conduzidas à ventura em bico de passarinho...

Inspirado no conto registrado pelos Irmãos Grimm e nas pinturas de Kirchner, o segundo livro de imagem de Taisa Borges: JOÃO E MARIA (Peirópolis, 2006) parte do Romantismo no início do XIX para refugiar-se nas cores e nas formas do Expressionismo, às vésperas da Primeira Guerra. A autora adivinha e alinhava tradições pictóricas e literárias num gesto particular de contigüidade. Entre a angústia e a pobreza, existe, pois, um mal estar social representado “nas formas quase sempre pontiagudas e nas cores, às vezes sombrias, e outras puras e quase sem nuances, criando ambientes instintivos e, em certos momentos, agressivos”, de acordo com Taisa.

Ao instinto, então. Que o leitor se deixe capturar — e, mais que compreender com a razão, sinta o efeito das cores em sua sensibilidade. Desde as paredes internas da casa, tingidas de vermelho intenso e dramático, à noite sem fim através da floresta, a trama visual evoca o estado de abandono das personagens. E João e Maria têm figuração em branco e preto, alheios às cores, de fato, às outras dores.

o silêncio e canto inestimável

por Peter O'Sagae


Um livro de imagem nem sempre narra uma história; poderá ser um portfolio de ilustrações, tal como mostra Taisa Borges ao rememorar um velho conto de H.C. Andersen: O ROUXINOL E O IMPERADOR (Peirópolis, 2005). Suas experiências, nas artes plásticas e na criação de estamparia têxtil, habilitam-na a sugerir cenas com riqueza de padrões coloridos, decoração farta e elementos figurativos sobrepostos, auxiliada pelos recursos e recortes da computação gráfica. Contudo, as cenas que Taisa ilustra pedem que o leitor tenha conhecimento prévio da história sobre um imperador, donos de largas terras e um imenso jardim que se confundia com as florestas e chegava até as franjas do mar. Longe de seus olhos e de seu coração, apenas os mais simples pescadores conheciam o canto de um inestimável pássaro, um pardacento rouxinol.

Nesse livro, notas e claves musicais são projetados do bico do pássaro por todos os quadros, atravessando páginas e transformando-se em flutuantes mensagens escritas na forma de ideogramas. O texto de Andersen revela que, somente através de notícias do estrangeiro, o poderoso imperador tomou conhecimento da existência do sonoro rouxinol e fortemente o desejou para si. Contudo, ninguém em seu palácio, fosse nobre, fosse conselheiro, ou qualquer outro cortesão, sabia de seu paradeiro. Apenas uma simples e jovem cozinheira o ouvira cantar...


Para os pequenos leitores talvez seja impossível adivinhar a trama que une o verdadeiro pássaro ao rouxinol mecânico, com penas de ouro e cravejado de pedrarias que o imperador recebe de presente — pois o livro de imagem de Taisa Borges não apresenta a continuidade de uma ação à outra; entre os quadros, um intervalo extenso se interpõe. O livro assemelha-se ao tradicional ‘kamishibai’, uma modalidade de entretenimento em que contadores profissionais ou missionários budistas narravam histórias e fábulas a partir de desenhos, previamente feitos, apresentados em pranchas com o texto escrito no verso, a uma platéia de populares, entre adultos e crianças. Depois da década de 1920, as folhas ilustradas do ‘kamishibai’ foram recuperadas por vendedores ambulantes de doces e também por agentes de ensino, como estratégia para garantir-lhes a venda e a atenção do público infantil. Para nós, a relação palavra&imagem, aí perpassada da voz aos ouvidos e dos desenhos aos olhos, caracteriza O rouxinol e o imperador como um livro de ilustrações que procede do texto verbalmente escrito e a ele retorna.