29 de julho de 2020

a ema e outras cabeças de pássaros

Há duas semanas uma ave marrom-acinzentada, a ema – também chamada nandu ou xuri – tornou-se o símbolo de nossa brasilidade reprimida. Foi na tarde de 13 de julho: rejeitando agrados, a Rhea americana bicou o homem que ninguém (com um mínimo de discernimento) já não engole mais. Bicou, bicou bonito.

De outro lado, quarentenava comigo outra linha de pensamento a respeito dos gêneros narrativos mais apropriados para o ambiente emocional em que vivemos – uma reflexão incerta que nasceu após tomar parte do júri de um concurso literário. Que histórias desejamos retirar do passado, quais outras propor no presente e, afinal, o que esperamos lembrar no futuro? Temos agora necessidade de realismo ou visões românticas, contos curtos ou novelas que nos enredem, anedotas ou ditirambos? Ainda que não seja minha intenção compartilhar as breves escolhas a que cheguei intimamente, digo que a fábula aparenta ser um dos gêneros mais fortalecidos e favoráveis para o momento.


Arrisco-me a pensar como a fábula foi um gênero que nasceu letrado e fortuitamente imiscuiu-se às tradições orais e anônimas, talvez porque simplesmente um ouvido e outro mais capturaram a breve forma de narração e sem dificuldades a transmitiram de viva voz e orelhadas a outrem... Gênero narrativo em que a linguagem se dobra sobre si mesma, articulando divertimento e uso prático, elementos da ficção e a autenticação de conselhos sobre a experiência e o previsível, a fábula exige, graças às vozes de animais em seu discurso, ler a aparência e a essência, o dito e o não-dito, a intenção e o que denominamos acaso, a perda e o ganho. É tanto um gênero verbal quanto visual que administra a fala e o gesto; a autoridade de uma fábula se dilui em fabliaux, uma forma da poesia narrativa francesa medieval que escapa ao didático-moralizante, mas jamais menos moral ou instrutivo! Mas a fábula também é tableau, uma alegoria, uma imagem do pensamento. O espírito da coisa, eu dizia nas aulas, é mesclar em seu genes o que é da crônica e da fotografia como nós conhecemos talvez com maior proximidade.


Podemos sempre discutir o que é a verdade ao longo da história da evolução humana, desde a mais alta antiguidade, presos que estamos nas múltiplas malhas de fazer corresponder os fatos e o discurso sobre os fatos. Este é o problema comum a muitas tradições filosóficas que fizeram uso do conceito travestido em imagem. Veja só, mesmo a identidade de um dos mais importantes sábios e sacerdotes no Egito, tal era Thoth, vivendo por volta de 2,500 a.C. não escaparia, após a morte, à confabulação de seu legado em uma divina imagem animal.

Eterno escriba dos deuses, portador da verdade, Thoth mostra-se com cabeça de íbis no panteão do tempo dos faraós. A ele eram atribuídas as invenções da geometria e da astronomia, e particularmente o poder de cura. Às ciências abstratas e às ciências da observação, entre os filósofos do passado, ligava-se o domínio da medicina. Todas essas matérias pertenciam a Thoth e ele teria afirmado: “O homem nada sabe, mas é chamado a tudo conhecer.”

Da cabeça de Thoth, nossa memória pode carregar séculos e repensar se um signo religioso ou filosófico pode ou não estar na remota raiz das fábulas, convertendo-se em usos novos, signo político, signo estético e finalmente signo utilitário em diferentes épocas.

Vejamos isto: as colagens de Max Ernst.


A vida de um artista equivale à sua obra, como um recorte de seu sistema de pensamento, uma dobra de fala e imagens na ilusão de que podemos “abocanhar” o todo por uma parte? Ora, ora, se abrirmos a Wikipédia, nos deparamos com dados biográficos do autor de UNE SEMAINE DE BONTÉ (1934).

Max Ernst, aos 25 anos, fora convocado para lutar na Primeira Guerra Mundial pelo serviço militar alemão. O horror à guerra faria o artista escrever: “Max Ernst morreu em 1º de agosto de 1914. Ressuscitou em 11 de novembro de 1918, na forma de um rapaz que queria ser mágico e pretendia descobrir os mitos de seu tempo”. Torna-se assim curioso seu processo de despersonalização através do discurso, colocando-se na terceira pessoa, deslocando a si mesmo para o campo das coisas-que-se-vê: é impossível ao homem reconhecer-se como sujeito em uma realidade caótica. Esta é sua crítica.

Também através da arte, Ernst tornou intenso o seu fascínio por pássaros. Em algumas pinturas, ele apresenta um alter ego sob o nome LopLop e chegou mesmo a sugerir que este personagem pictográfico era uma extensão de si mesmo, a partir de uma confusão entre aves e humanos em sua infância: Max Ernst conta que, numa noite, acordou e descobriu que seu querido pássaro havia morrido; alguns minutos depois, seu pai anunciava que sua irmã havia nascido! Afinal, onde nos encontramos e encontramos nossos rostos?


Voei livremente dos livros para crianças para o surrealismo prenhe de dadá e ao passado que invento para as fábulas como fórmulas mágicas de cura. E tenho em mãos um poema de Maria Elena Walsh (1964), com boa tradução de Gláucia de Souza e as iluminações de Angela Lago, em ZOO LOUCO (Projeto, 2011)
Caso as Cobras fossem tão gabolas,
se usassem calças, luvas, cartolas
e lenços de seda feitos
não haveria jeito:
ficariam tão feias como outrora.

A redução da fábula à forma do limerique não diminui o desnudamento do homem sob a máscara animal. Ao virar a página, encontro um comentário visual sobre nossos hábitos que extrapola em alguns decibéis a escuta do poema. A narrativa é clara; a crítica necessária é nutritiva de leituras como a gema de um ovo, uma novidade renovada.


Em outro livro, as contradições humanas são evitadas desde o ninho. Com o texto verbal de Ana Rosa Costa e as ilustrações de Odilon Moraes, CASA DE PASSARINHO (Positivo, 2018) promove um reforço à vida organizada e amena, por todos os cômodos da imaginação.



Da provocação da arte ao signo utilitário da literatura em prosa e imagens, a realidade da fábula permite pequenos reflexos, grandes reflexões. E o acaso-sem-esforço me traz um parágrafo do manifesto dadá 1918
*** Toda obra de pintura ou plástica é inútil; que ela seja um monstro que faça medo aos espíritos servis, e não adocicada para adornar os refeitórios dos animais com roupas humanas, ilustrações desta triste fábula da humanidade.
Fragmento extraído do livro organizado por Gilberto Mendonça Teles: VANGUARDA EUROPEIA E MODERNISMO BRASILEIRO (1975, 17.ed. Vozes, 2002) p. 140 e destas e outras cabeças de aves e pássaros, eu volto a ema e a memefacção da fábula.



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