31 de maio de 2011

distraídos, como quem olha e não vê

peter fios & pensamentos

“Ando com vontade de vir ficar para sempre aqui com você [...] Para sempre. Feliz para sempre. Que nem nas histórias. Aqui é que eu faço tudo o que eu quero.” É o que falou Lucas, O MENINO QUE ESPIAVA PARA DENTRO, no conto de Ana Maria Machado de 1983, agora com ilustrações de Alê Abreu (Global, 2008). “Pelo tempo que Tata levou para responder, parecia que estava era procurando e ainda não tinha achado nada.

Mas, finalmente, disse:
— Eu acho que para sempre é demais.”

“Lucas acabou concordando:
— É... passar o resto da vida espiando pra dentro pode não ser uma boa.
Mas eu podia fazer isso, digamos, durante uns cem anos.
Feito a Bela Adormecida.”


Meninos que brincam e sonham.
Um nó, quando acontece sonho ruim.

“Você aparece com um fio escapando de dentro de ti. Pede pra eu puxar a ponta. Eu tento, mas quando vou pegar a ponta do fio, minhas mãos viram pedra. Eu viro todo pedra.” Pois é um só O EMARANHADO DA MAÇAROCA, livro-situação de Hermes Bernardi Jr. com imagens de Renan Santos (Larousse, 2009). “Paulo estende suas mãos em concha para mim.

— Põe o pé aqui e sobe, Pedro.
Vamos ouvir o mundo lá em cima da árvore?”

Depois, bem depois.
Numa tarde de sol de um dia
qualquer, Pedro e Paulo.

[...] puxei um fio escapado teu e tem coisa escrita nele.
— O que é?
— Que você nunca teve um amigo como eu.

25 de maio de 2011

D é para Dudu e sua decisão

peter o'sagae

O início dos anos 2000 na literatura para crianças é assinalado por uma obra pioneira na abordagem das relações de identidade, gênero e suas representações: O MENINO QUE BRINCAVA DE SER, de Georgina Martins, com ilustrações de Pinky Wainer (3.ed. DCL, 2005), inaugura nova fase para o debate sobre os preconceitos e a tolerância dentro e fora de casa.


Dudu é o bom menino que o pai espera ver jogando futebol como um campeão. E Dudu vai e faz um gol, depois outro e mais outro para seu time. Contudo, compreenda você, sua vitória será outra e se chama decisão, pois não já precisa mais provar nada, nem enganar a ninguém porque não gosta de bola. O pai poderia até bater nele, colocar de castigo... Mas ele não iria mais jogar.

Das escolhas, Dudu tem pela frente a mais árdua: ser como se é, sem sofrer consigo ou com as provocações do mundo à volta. Desde sempre, o menino gostava de uma só brincadeira: a brincadeira de ser o que a imaginação permite, ora fada, ora bruxa, e até mesmo princesa... Meninas não podem ser príncipes, guerreiros e outros personagens valentes? Podem, mas quem vai entender o que na telha dá? A família é toda precaução e preocupações, a professora diz apenas que isso passa, Dudu tem apenas seis anos, e o endocrinologista nada encontra nele fora do normal, mas recomenda outro médico. Que sabe cuidar de pai e de mãe.

Apresentando assim os múltiplos pontos de vista, na interação personagem a personagem, Georgina Martins constrói um discurso narrativo que não receita nem doutrina comportamentos: deixa a história ser seu próprio caminho. Dudu irá emancipar-se dos sofrimentos que lhe vestem, escolhendo ser o menino de sempre — mesmo quando tem a chance, a seus pés, de passar três vezes debaixo de um brilhante e verdadeiro arco-íris.

Na quarta de capa, João Silvério Trevisan comenta como «o livro é lindamente ilustrado e coloca muitíssimo bem a questão da viagem identitária que provoca tanto exílio em crianças consideradas diferentes». As ilustrações de Pinky Wainer acomodam-se em um inteligente e sensível projeto gráfico que permite o livro brincar de ser flip-book! Passando rapidamente as páginas, Dudu parece voar, bailando entre estrelas, brincos, colares, vestindo as próprias fantasias sem jamais perder a si mesmo.

* Extraído de Dobras da Leitura 38, outubro de 2006.



Georgina Martins visita também os sonhos de um pai que deseja um filho valentão, enquanto o menino quer apenas ser bailarino... TAL PAI, TAL FIHO? foi publicado pela Scipione, com ilustrações de Sergio Serrano (2010).

23 de maio de 2011

quando dois é bom demais

peter o.o’sagae


— Você não vai me ajudar a guardar essa bagunça, papai? Você também brincou, agora precisa arrumar junto comigo! — ela reclamou.
— Da próxima vez, eu não vou mais cair na sua conversa, ouviu, dona Olívia mandona? — o pai alertou...

Porém, todas as tardes, era assim: a menina vinha dizer só uma coisinha e terminava enrolando papai Raul com brincadeiras e aquela bagunça, as bonecas espalhadas pelo tapete da sala, para guardar. Papai Raul é pintor, papai Luís vive ligado ao computador. E Olívia tinha prometido não atrapalhar seu trabalho a não ser que algo muito grave viesse acontecer, como... uma filha quase “desfalecendo” de fome? Papai Luís segura o riso, mas não resiste!

Na trama afetiva do cotidiano, OLÍVIA TEM DOIS PAPAIS, de Márcia Leite com ilustrações de Taline Schubach (Companhia das Letrinhas, 2010), põe foco nas alegrias e nos desafios da pequena e esperta Olívia para conseguir ganhar um estojo de maquiagem e perfume “de verdade”, tendo evidentemente, ao fundo, a estabilidade do casal. Uma família que se aconchega pelos laços do amor para ninguém encontrar defeito.


— Sabia que você é um pai encantador? [...] “Encantador” era uma palavra que Olívia guardava para usar em situações muito especiais, principalmente quando tinha planos...

16 de maio de 2011

ideia ou imagem, um pê de pai

p.o'sagae

À primeira vista, PÊ DE PAI, uma pequena e singela obra de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho (Cosac Naify, 2009), pode parecer um livro de palavras, desde o título escrito em estilo cursivo como “letra de professora” à relação de contiguidade entre o nome da letra e um substantivo comum, como fazem as crianças quando aprendem a escrever. Porém, tem um outro feitio a obra dos autores portugueses: é todo ele um poema transformado em livro...


O texto brinca com expressivas metáforas e antíteses que estabelecem um lúdico trânsito de significados, enquanto um inteligente projeto gráfico dispõe suas rimas a cada quatro páginas. Vale a pena conferir como são construídas curiosas relações, numa sequência como esta:

pai guindaste / pai trator
pai sofá / pai motor

É pois, a partir de ideias aparentemente disparatadas, que o leitor descortina um jogo afetivo igualmente encenado pelas ilustrações esquemáticas, em cores chapadas, tornando semelhantes pai e filho em suas silhuetas. Nesse brincar, temos poesia que se manifesta em diferentes níveis: da palavra à imagem ilustrada e desta para a imagem evocada pela palavra, uma obra para leitores de qualquer idade com mente produtiva e criadora.


 
P.S. Num lance só, entrando ou saindo pelas páginas de guarda, a lembrança sem esforço das palavras de Wordsworth, o poeta pescado por Brás Cubas, entre magnólias e gatos ;-) uma ideia entrevista, imagens que se fazem diagramar tal como “o menino é o pai do homem”.

12 de maio de 2011

silente visão, lírica viagem

Um poema de García Lorca, escrito em 1918, em um livro para crianças: SANTIAGO, com tradução de William Agel de Melo e ilustrações de Javier Zabala (WMF Martins Fontes, 2009). Comentários de Peter O’Sagae.



Ao título, o autor acrescenta uma pista quanto ao gênero de sua composição: trata-se de uma balada ingênua e bem assim soarão os versos aos ouvidos de quem se fizer pequenino e souber perfurar com risos o vento, conforme repete o estribilho na primeira parte do texto. Temos aí a evocação de uma atmosfera lendária a respeito da passagem do santo por uma aldeia e o que dizem a respeito as muitas vozes que se perdem em coro de homens e meninos.



Resgatando a tradição medieval dos relatos de vida de santos, García Lorca inicialmente descreve Tiago como um guerreiro a frente de um tropel de duzentos cavalos,
“a cabeça cheia de plumagens
e de pérolas mui finas o corpo,
com a lua rendida a seus pés,
com o sol escondido no peito”.



Na segunda parte do poema, menos que a narração de fatos, o texto evoca beleza e mistério suscitados ante a visão do apóstolo, de acordo com a lembrança de uma velha aldeã que tece à roca efeitos de puro encantamento sobre os ouvintes. Todos pedem a ela uma prova de que tenha recebido o milagre da santa visita em sua casa..., mas, dentro dela, resistem apenas a bondade, um sentimento de gratidão e o sorriso fulgurante de uma estrela no céu.



Imagens, sonoridades, magia e ritmo: elementos particulares do texto de García Lorca, uma ótima sugestão para leitura em voz alta. Poesia para todas as idades.