26 de novembro de 2014

olhe o céu encarneirado

Peter O'Sagae, hoje


No cenário dos livros para crianças, quando muito se pensa e discute a respeito de ilustração, textos ilustrados e narrativas visuais (conceitos que se esbarram um tanto, sem contornos), acabamos nos esquecendo de que a imagem não é algo externo aos variados processos criativos e que ela – A IMAGEM – é um elemento constituinte da linguagem literária, independente do código e das relações entre os signos sonoros, visuais e verbais. Repenso e brevemente apresento a questão pois existe um sem-número de autores que reclama a originalidade de suas obras, acreditando estarem eles desobrigados da intertextualidade.

Ora, a Natureza recortada pela linguagem popular costuma oferecer ótimas imagens literárias para a criação de poesia, narrativas e ilustração. Acaso hoje, limpando as estantes, encontrei ovelhas e carneiros nos lençóis de nuvens brancas e cinzentas, criando massas redondas como flocos de algodão, com suas próprias sombras para o olhar mais imaginoso, ainda que esses rebanhos de água sejam cientificamente chamados altos-cúmulos. Então, trouxe para a mesa três livros que se nutrem da mesma imagem, porém motivando narrativas bem diferentes quanto à mensagem que reside ao fundo. O exemplo é didático.


Ana Maria Machado começa a história de BETO, O CARNEIRO (1977) exatamente com um sentimento de insatisfação, o desejo de liberdade do personagem. Cansado de uma vida de carneirices, Bebeto foge do cercado e sobe uma montanha calma e, apenas com um pensamento, resolve virar nuvem. E vira. No entanto, ele se apercebe que as nuvens respondem à vontade dos ventos, como qualquer rebanho às ordens do pastor. Bebeto, então, vira espuma das ondas do mar, na terceira vez em que o tema é apresentado aos leitores.

Originalmente lançado com o título CARNEIRINHO, CARNEIRÃO, o texto pertence a uma categoria de histórias mais conformadoras, fazendo com que Bebeto abandone suas fantasias, compreendendo quanto a liberdade está em aceitar e obedecer sua própria natureza. O encontro com a ovelha Memélia torna ambíguo o final do percurso narrativo, com a introdução de outros temas e valores que não ousam ir além de limites previamente estabelecidos, ao mesmo tempo que marca o não-lugar de todo artista, nem livre, nem preso às convenções, em seu destino itinerante.


A prosa de Ana Maria Machado já contou com ilustrações de Alberto Llinares (1977), Fernando Nunes (1993), como vemos nas fotografias, e mais recentemente Jean-Claude R. Alphen (Salamandra, 2010).


Comparando textos, Sylvia Orthof com sua MARIA-VAI-COM-AS-OUTRAS (Ática, 1982) busca demonstrar os perigos de seguir o rebanho de olhos fechados, sem qualquer lampejo de consciência. Liberdade é pensamento. No livro de imagem BRANCA, criado por Rosinha (Paulinas, 2004), a imagem literária, condensada na ilustração de uma ovelha que deseja ser nuvem, conduz o leitor a um importante enigma. No dizer de Angela Lago: “A história da ovelha Branca não nos ajuda a dormir, mas a acordar. Um belo livro que nos deixa, crianças e adultos, um pouco mais altos: sabedores que a vida – e a morte – é tudo sonho.”


A partir da mesma imagem, diferentes textos revelam camadas do discurso eufórico, crítico ou emancipatório, marcando a posição dos autores frente às crianças. Leia outros comentários sobre os livros de Sylvia Orthof e Rosinha, abaixo, na sequência.

por onde Maria vai

Dobras da Leitura 49, outubro de 2007


O que é necessário para alguém dar uma ‘requebrada’ na vida e modificar todo o seu caminho? Dos textos mais bem comportados de Sylvia Orthof, esta história é uma das primeiras delícias que conheci: MARIA-VAI-COM-AS-OUTRAS, com desenhos da própria autora (Ática, 1982), uma fábula risonha, cheia de rimas e arejada com a precisão da lengalenga, com um bordão marcando um ritmo e o final de cada cena: Maria ia sempre com as outras.

E ela ia mesmo: pra baixo, pra cima. Ia pro deserto, pro polo sul. Enquanto o rebanho seguia com um sorriso de aceitação e as pestanas fechadas, Maria surge na ilustração de olhos abertos, insatisfeita, constrangida, mesmo assim Maria ia sempre com as outras... No meio da alvura azulada de suas irmãs, Maria era bem parecida com a maioria. Porém, sofria, como sofria. Pegava gripe e insolação.


Até que foram todas comer jiló (e Maria detestava jiló), mas como as outras ovelhas comiam, Maria comia também. Ora, é neste instante que o narrador se manifesta com uma simples e enfática exclamação: “Que horror!” E Maria pensa pela primeira vez. Pensa em si. Bastou? Que nada, Maria continuou seguindo o rebanho... E vão as ovelhas parar no alto do morro do Corcovado e, fofinhas e faceiras, vão saltando pra lagoa abaixo, muito abaixo. Conseguiram? Que nada! E Maria?


Sylvia Orthof dá um desfecho simples à história com seu recado inteligente, leve, gracejando com os leitores, com as ovelhas e com o narrador. Agora, méée, leia você este livro e descubra como caminhar por onde manda o seu pé!


* * *



no rebanho do céu

Dobras da Leitura 55, maio de 2008


Na ponta da pedra, a ovelha — e assim começamos a ler BRANCA, o livro de imagem de Rosinha (Paulinas, 2004). O lugar deve ser alto, muito alto, tamanha a concentração da personagem: os olhinhos quase envesgando para baixo. Será que ela pretende pular? Por quê?

Os leitores devem estar lembrados daquela outra ovelha que se chamava Maria e se meteu numa enrascada, no tempo em que não seguia o que queria o seu pé... Porém aqui os caminhos são outros, logo veremos.


A interna da capa e a primeira página são ambas magenta. De um lado, nuvens; do outro, Branca aconchegada em cima da dedicatória do livro. As volutas de nuvem e o emaranhado de lã alinhavam a comparação — ovelhas se parecem com nuvens na terra, nuvens são ovelhas no rebanho do céu. Cabe ao leitor predizer a história, o desejo de Branca voar!

 Pois bem: virando a página, vemos pássaros que atravessam a folha de rosto — e continuam voando, vão passando por Branca sozinha no chão... Descobrimos, nesta pequena fábula visual, como a consecutividade vai sendo construída por aparentes saltos no fio da narrativa e no modo como ler as páginas.


Quase sempre, a paisagem é uma só. O tempo é um ou dois, três, vários, encapsulados pela imagem apresentada em página dupla. Rosinha brinca com a ilusão de movimento pela repetição da figura da personagem: em suas tentativas de voar, muita vezes, podemos ver Branca lançando-se para o alto à esquerda das páginas abertas e... bem à direita, a ovelha estatelada no chão! Assim, o trajeto do olhar deve coincidir, recuperar e completar o rastro invisível que Branca desenhou pelo ar. Três efeitos do tempo – ritmo, velocidade e duração – dependem do jogo entre o desenho e apreensão sensorial da criança.


Rosinha passa a preencher a paisagem com muitas figuras de Branca, representando as emoções da ovelha e tirando proveito, ora do humor, ora da desolação de cada cena. E veremos a danada tentando de tudo para voar, voando por um instante... contudo, nem é preciso completar as imagens ou dizer que ela, muitas vezes, vai voltar ao chão.

Branca é uma história de persistência —
e existe uma poesia sugerida no ar...
O leitor há de encontrar novamente a cena da capa. A ovelha, na ponta da pedra. O que acontecerá depois, seria magia, sonho ou realidade?