30 de agosto de 2015

eu sonho

peter o'sagae


Um velho com guarda-chuva e gaivotas numa ilha deserta.
Um velho com guarda-chuva, gaivotas e inventos numa ilha deserta. Um velho com guarda-chuva, gaivotas, inventos e uma casa numa ilha deserta. Um velho com guarda-chuva, gaivotas, inventos e uma casa cheia de tralhas e histórias numa ilha deserta, talvez não tão deserta assim, num ponto distante do oceano... Como vou para lá? Com um mapa sem estradas, com um piscar de olhos, com a memória ou com um livro de imagem? Pois agora, último domingo de agosto, viajo com O BARCO DOS SONHOS, de Rogério Coelho (Positivo, 2015).

Primeiramente, um pressuposto teórico. Um livro de imagem é um texto visual com uma possibilidade de se multiplicar em dobras, viagens, leituras, acréscimos, interpretações, reticências... cheios e vazios, vazados e significados, preenchimentos. E como o mar tem vagas, foi voga a partir da década de 1980 as ideias e a distinção de Denise Escarpit a respeito da leitura enumerativa e a leitura de construção. O leitor e a leitura se reconhecem e, abraçados, caminham juntamente a partir da percepção e da investigação de elementos isolados de um texto, passando, por exemplo, a recuperarem cooperativamente os nexos lógicos-causais, até o estabelecimento de elos inferenciais mais sutis, memórias e aprendizagens outras que pertencem ao tecido vivido pela criança e pelo adulto que, enfim, se mesclam ao ato de ler entre o que está aparente (matéria sensível) e o que lhe é ausente (inteligível), mas presentes. Em outras palavras, frente a um texto verbal, livro ilustrado ou texto visual, gradativamente, eu-leitor me constituo ao construir a história narrada e, simultaneamente, reconstruindo a viagem posta.

Por isso, é tão fácil resumir um livro de imagem. Por isso também, é pessoal (e intransferível) a leitura mais ampla que um livro de imagem possa desdobrar. Por isso ainda, diria que a leitura é uma aventura perigosa. O leitor pode jamais retornar...


Dentro da casa da ilha distante que Rogério Coelho mostra, um velho dorme em um quarto atulhado de coisas. O sol da manhã vara a veneziana fechada e no parapeito, no lado de dentro da janela, uma inesperada gaivota vejo dormindo. A ave acorda. O velho acorda. O velho tem aspecto de histórias como se fosse Dom Quixote ou Santos-Dumont, não sei se são seus olhos, ou são seus óculos. Algo é. Figura magra, elegante, cabelos brancos, bigodes, casaco e chapéu entre uma gaiola sem pássaro e um ventilador desligado. Depois de pronto, ele abre a porta... e ali está o mundo na borda da ilha entre voos e ventos.

Deixemos a riqueza dos detalhes da ilustração, para seguir um fio de história. Ao longe, ele descobre uma mensagem dentro de uma garrafa que se agita e se agiganta nas ondas do mar através da sua luneta. Como sabemos, a mensagem de algum náufrago. Ou não. Era apenas uma folha de papel em branco, onde ele desenhará um antigo galeão, o barco dos sonhos de qualquer menino. Trabalho concluído, o velho arremessa de volta a garrafa para o mar, para um destino desconhecido. Anoitece na ilha.


Para onde eu-leitor vai na próxima virada de página? Segundo pressuposto da viagem: atenção ao tempo-espaço, à nova cor dominante, à geometria do cenário, ao clima atmosférico, aos prédios, aos telhados, às antenas de televisão debaixo da chuva fria, à quantidade de janelas, à única casa da vizinhança, ao personagem que na soleira da porta encontra uma carta, ao próprio requadro branco...


O jogo da narrativa não é apenas encontrá-la no emaranhado de códigos e linguagens, mas decifrar o sentido do discurso entre figuras e ações. Uma história, pensamos, caminha sempre para frente. Porém, a montagem às vezes nos engana.


É fácil acreditar que o desenho do velho alcançou o menino – mas o que pensar se a narração adiante nos levou para trás? Ah, pobre cronotopo bem comportado! Como na poesia, os valores do tempo e do espaço podem ser repropostos em novos vetores. Desse modo, o tempo se espacializa e é, então, fragmentado; o espaço é trabalhado como matéria elástica e começa a sofrer uma deformação, uma curva talvez.

É difícil acreditar?
Eu acho que esse velho tem um pouco de Einstein, ou Fernando Pessoa.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ver quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou [...]

24 de agosto de 2015

histórias navegam na voz

peter O.o.O.o...


Comece procurando uma sereia nos livros, pois ler não é somente uma viagem a outras eras, outras terras, mas igualmente a outras histórias e textos, mitos revisitados e travestidos em imagens que fascinam o leitor curioso. Comece encontrando um homem, velho talvez, que deite palavras ao vento... Tem esse homem que mora no banco da praça, aponta Luiz Bras, esse homem feito de sonhos, risadas, primaveras e ideias engraçadas. 
De onde ele veio?
De outro país? De outro planeta?
Semana passada foi aniversário dele.
— Hoje eu faço mil anos — ele disse muito sério, mas também muito feliz.
Não estava brincando, não.

O compromisso com a leveza é algo para nós muitas vezes estranho, não é mesmo? Quem lê, ouve e compartilha histórias corre sempre o risco de parecer o habitante de um lugar estrangeiro, alguém que sempre desperta alguma desconfiança, alguém sem juízo, um louco, sempre. Experimente você subir com os pés no banco da praça e confessar que tem mil anos de idade e venturas para contar... Pois era um homem de roupa surrada, voz áspera, de barbas brancas, encurvado sobre o próprio coração maltrapilho que Aline viu e ouviu contar façanhas de outras vidas, outros mares, outros amores...


No livro PROCURA-SE UMA SEREIA, com ilustrações de Alexandre Camanho (SESI-SP Editora, 2014), Luiz Bras faz da voz uma onda gigante empurrada pelo vento e, assim, vai mesclando, através do discurso, a realidade do mundo narrado pelo velho da praça às possibilidades do mundo vivido de todos nós. É doce saber que o leitor/ouvinte habituando-se à imaginação, um dia, poderá dizer – chovia demais dentro da gente, ventava demais dentro da gente... e descobrir muito mais coisas. Para sonhar, correr o risco. De viver.


 E amanhã será o aniversário de um velho amigo, voz que retumbava trovões, sem barbas brancas, mas poeta e prosador de muita imaginação, dialogando entre gentes de muitas idades. Entrava mês, saía mês e a nossa cidade era a mesma, sem novidade alguma, começa escrevendo Elias José no livro que voa da estante, agorinha, A CIDADE QUE PERDEU O SEU MAR, com ilustrações de Marilda Castanha (Paulus, 1998). Entrava ano, saía ano, já não éramos crianças pequenas, nem éramos moços ainda. 
Já queríamos ser gente séria, sem esquecer as bolas de meia, as pipas e os brinquedos de pique. Meio escondidos, fazíamos a infância voltar e era bom segurar o tempo [...] Em nossa cidade, todos eram mais ou menos iguais. Ninguém muito rico nem muito pobre.

E do tempo que se plantava serviço com os pés de café e as casas recebiam visita de parentes para os festejos do padroeiro, a quermesse de São Francisco, desse tempo quando as noites se enchiam com bandeirolas, sons de banda e a música de antigos discos girando na agulha até os alto-falantes, Elias José trouxe o estranho encantado da memória, com palavras que ondejam em nossos ouvidos. Em uma praça, encontramos a figura de Manuelão Marinheiro com irrevogáveis olhos de céu e rugas multiplicadas por todo rosto. São suas histórias o vasto mar às vezes manso, às vezes raivoso, tomando conta das ruas e das pessoas...


Ambos os textos atestam o amor sobre as coisas um mar que desejamos fiquem dentro de nós, enquanto o sonho for mistério e imensidão e venha contar e recontar as suas histórias.

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Outras sereias n'O Blog:
[+] mar de sons de cores
[+] imagens de mar e ar
[+] deram os homens a sonhar
[+] caiu na rede, é sonho

21 de agosto de 2015

sobre a alma brasileira

O’ABRE ASPAS em 1 parágrafo e 12 cliques


“Há uma realidade nossa que de tão volátil quase nos escapa. Essa realidade nasce de entre as lendas como se erguessem gigantes, delfins e duendes de dentre névoas. Mas o que se ergue na verdade representa o que há de fantástico, sumarento e rico no País” (Clarice Lispector)*








* O’ABRE ASPAS em 1 parágrafo e 12 cliques: fragmento do texto escrito por Clarice Lispector em dezembro de 1976 que serve de prefácio a recente edição de sua obra DOZE LENDAS BRASILEIRAS: COMO NASCERAM AS ESTRELAS, e as ilustrações de Suryara (Rocco, 2014). Um Brasil para você lembrar todos os meses do ano entre imagens, aliterações e a doce voz literária que canta suave a sua vitória.

12 de agosto de 2015

na hora que a gataria souber cantar... e contar

peter o,sagae


Hora boa
para contar e imaginar gatos com a parlenda DOIS GATOS FAZENDO HORA, de Guilherme Mansur, com as ilustrações em colagens de Sônia Magalhães (SESI-SP Editora, 2013). Porém, não pense que temos aqui só uma mnemonia, não... O poeta vai aos números e às palavras, saltando entre os minutos de dez para daqui a pouco, dez em ponto, dez e um, dez e dois...


... até dez e lá vai pedrada, com um refinado e fácil senso de humor, contando como dois gatos brincam alternadamente em seu ritmo particular.


Por isso, não é à toa que a ilustração alterna formas cheias e vazadas, preto e branco, página adentro, página afora, com dois gatos que às vezes parecem muitos, às vezes enroscam-se e são um só, vejam só.


E os gatos da Sônia me fazem saltar para o passado – ou o presente. Hora boa para contar a “História de uma gata” e pensar por que, de noite, não podíamos cantar assim, imitando miados. Gato não serve apenas para aprender os números, as horas. Gato também ajuda a contar história, ou História, entenderam?


Do livro Os saltimbancos que a Sônia Magalhães também ilustrou...

Veja também a postagem anterior ☺ [aqui]

9 de agosto de 2015

hora de largar a pata!

peter o'sagae


Quantas vezes sinto que não é preciso dizer nada, mas saber ouvir… Já disseram por aí que um conto é a poesia da alma popular; quando ela se faz voz, forma e força, a sabedoria então se revela. E hoje, domingo bom, recorto quadrados de uma história para compartilhar com a família – e suas crianças também.
Au, au, au, hi-ho, hi-ho
Miau, miau, miau, cocorocó

Essa história é mais velha que a história
Dos tempos de glória do velho barão
Quem não sabe de cor essa história
Refresque a memória e me preste atenção
Não sou eu quem repete essa história
É a história que adora uma repetição
Uma repetição [+]

Das recolhas dos irmãos Grimm,
você pode abrir estrada com OS MÚSICOS DE BREMEN, na tradução de Fernando Klabin, acompanhando as ilustrações muito vivas de Claudia Scatamacchia (Global, 2008).


Ou ainda ouvir  Os quatro heróis, uma breve adaptação com melodias de Braguinha para a coleção Disquinho (1961), ou Os saltimbancos, musical infantil composto por Luiz Enriquez, libreto de Sergio Bardotti com tradução de Chico Buarque (Polygram, 1977), em afinadas [e atualizadas] montagens, cujo texto chegou em um livro com projeto gráfico e colagens de Sônia Magalhães (Global, 1999); ou assistir o filme Os saltimbancos Trapalhões (1981), a partir do musical – porém, com algumas novas canções de Chico Buarque para a trilha sonora.


Ora, entre a letra e a voz, livro ilustrado, disco, disquinho, filme, espetáculo – a imagem que o conto dos quatros amigos representa tem permanecido intacta! Ao longo do tempo, sinto que o significado tem sido um só, em busca de alimento, agasalho, abrigo e inteligência. Como diz Paul Zumthor
... o que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz "moderniza‐se" pouco a pouco: ela atestará um dia, em plena "sociedade do ter", a permanência de uma "sociedade do ser".
Todos juntos! Era ainda num certo país…


Quem me dera, dera um dia, arriscar uma adaptação.
E saber, de tudo isso, como está e o que pensa você...


* Imagens adicionais: Town Musicians, estátua de bronze confeccionada por Gerhard Marcks e instalada na cidade Bremen em 1953, fotografia: Torsten Krüger / BTZ Bremer Touristik-Zentrale; Embroidery Library; e Arthur Rackham (1909).

6 de agosto de 2015

a narração sucessiva e um tipo de lógica verbal nos livros de imagem

peter o'sagae


Existe uma pedagogia do pensamento e dos afetos nos livros de imagem?

É muito extensa a produção de livros de imagem. Conforme o olhar teórico, podemos considerá-los em uma variedade que se inicia com os imagiários ou coleções de figuras com que se ensina o nome de objetos, das cores, das formas – e, bem parece, os franceses foram mestres em fazer-ensinar também os verbos e as locuções adverbiais, as preposições e outras classes de palavras gramaticais... Ora, livros de imagem têm sido tradicionalmente confundidos com álbuns de figurinhas – e por que não seriam agora postos mais próximos dos livros ou cadernos de colorir?

Contudo, os livros de imagem que mais chamam a atenção dos interessados em literatura são ou deveriam ser aqueles que, unidos à palavra, resultam na construção de um texto narrativo ou poético. Palavra que está no título, palavra que germina da imagem, palavra que se abre na mente que lê. E gosto da ideia de uma palavra intransferível que não precisasse sofrer o concurso de vir alinhada em uma frase, pois aponta (ou brilha) em várias direções (ou dimensões).


Ao comentar literatura e livros de imagem, diversas vezes tenho privilegiado as três modalidades da arte narrativa: a narração espacial, a narração sucessiva e a narração causal. A primeira categoria mais próxima dos caracteres visuais e poéticos, enquanto a terceira se entrelaça com fios e acontecimentos subordinados uns aos outros, constituindo uma trama. No entanto, é a narração sucessiva que nos dá exemplos mais numerosos – como a coleção Histórias do Coração, com roteiro de Sonia Junqueira e os desenhos coloridos muito fluidos de Mariângela Haddad (Autêntica, 2008-2013).

São sete livros que trabalham rumo a uma tomada de consciência e a mudança de comportamentos. A imagem torna-se suporte para os valores que se quer transmitir às crianças, mostrando-nos como um argumento orientado para o convencimento do leitor resultará em histórias caracterizadas pela enumeração de cenas que se juntam por um expediente de coordenação verbal. Como isso funciona?


Cada página ou cena ilustra uma situação particular; o conjunto das ações acaba por explicitar um conceito maior. Pensemos na sequência de um desses livros: um grupo de crianças captura um pássaro vermelho em uma arapuca e o prendem numa gaiola para alegria de amigos e vizinhos; ato contínuo, ao caminhar pela rua, um desses meninos vai passando por uma menina que brinca atrás das grades do jardim de sua casa, uma senhora que brinca com seu gato atrás da janela gradeada, outra menina “presa” em uma cadeira de rodas, vários animais “presos” em uma vitrine, um senhor que caminha “preso” a sua bengala, mais um leão, um tigre e um macaco, todos em jaulas puxadas pelo caminhão de um circo... O tema principal mostra-se pela repetição, até que o menino que passeava, entristecido, senta-se no banco da praça – e, como o leitor deve fazer, alcança a ideia maior de liberdade – disparando de volta para soltar o pássaro vermelho.

Este é todo o enredo e também a estrutura do pensamento configurados em O MENINO E A GAIOLA que abre a primeira fase da coleção juntamente aos títulos A VELHINHA NA JANELA e O GATO E A MENINA, todos de 2008. Um texto visual regido pela linearidade do discurso verbal, em que o acúmulo de cenas busca apresentar e despertar uma verdade (ou conceito de liberdade, justiça, solidariedade, etc.) à criança, empregando e exercitando um raciocínio indutivo em sua construção. Obviamente há de ficar visível, no conjunto de histórias, uma preocupação das autoras em apresentar o mais diversificado tecido social – pessoas de várias idades e fisionomias convivendo nos espaços da cidade, casas e apartamentos, ruas e veículos, escolas e praças – com que a intencionalidade não se descose de um contexto urbano, emergente, atual...


Por sua vez, os livros lançados em 2009, ainda condicionados à sucessividade e ao ambiente cotidiano, operam com a quebra de expectativa do leitor, ou seja, lançam mão de um elemento surpresa. OS FEITIÇOS DO VIZINHO envolve uma figura retórica como a gradação, através da estranheza, da curiosidade e da bisbilhotice das pessoas na vida alheia, deflagrando o tema da narrativa: o preconceito que desemboca e desembesta na fofoca. Tal tese ou entrecho remete ao livro de Ricardo Azevedo, Tá vendo uma velhota de óculos, chinelo e vestido azul de bolinha branca, no portão daquela casa? (FTD, 1987, Companhia das Letras, 1998). Porém, o vizinho não era nenhum feiticeiro, mas... um mediador de leitura!


A MENINA E O TAMBOR é o título que melhor traduz o nome da coleção Histórias do Coração; após sucessivas tentativas para animar e alegrar as pessoas que encontra nas ruas, uma menina de tranças descobre de onde tirar toda a força e o ritmo para a vida...


Enquanto linguagem, ambos os títulos começam a utilizar mais explicitamente recursos próprios das histórias em quadrinhos, com ênfase nos balões de fala para representar visualmente o discurso citado e uma série de onomatopeias. Daí que sempre pergunto: e livro de imagem é livro sem palavras?


Por fim, A ÁRVORE DE DINHEIRO, mais O MENINO E O PEIXINHO, lançamentos de 2013, ambicionam contar histórias que revelam os desejos e a psicologia dos personagens. Os conflitos são um pouco mais imediatos ou pontuais – um menino que planta uma moeda no quintal de sua casa e outro que adota um peixinho que ninguém queria por achá-lo feio. Contudo e desnecessariamente, esses dois volumes apresentam nas últimas páginas “a história em palavras” – talvez para não deixar escapar a intencionalidade ou mensagem moral, alinhavando significados na primeira pessoa do discurso, expediente verbal que a imagem, por si só, jamais alcançaria. Vale indagar – um livro de imagem é, ou não, uma narrativa encenada diante dos olhos do leitor?