16 de janeiro de 2018

de volta ao buraco


Com uma pergunta – Para onde vamos? Regina Zilberman descerra o último capítulo de COMO E POR QUE LER A LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA (2005) e produz um ânimo de tristeza e insatisfação, ao verificarmos que nem os escritores, nem a crítica talvez possam responder por onde os livros devem caminhar, quando é preciso considerar as dificuldades de criação dos autores que nada mais têm a nos contar... afinal, todas as histórias já foram algum dia recitadas ou escritas! Como construir um personagem sempre presente igual àqueles advindos com a tradição e a repetição de suas tramas? como encontrar um conflito instigante? como dar voz à solução do enredo e da própria redação? Enfim, como libertar a inventividade da mente para o papel?

Partindo de algumas obras dos anos 1980, 90, a professora da UFRGS faz entrar em cena o autor-personagem, evocando o emblemático UM HOMEM NO SOTÃO, retratado por Ricardo Azevedo (1982, reformulado em 2001). Narra-se aí, em terceira pessoa, a desventura de um autor de contos para crianças. Em seu processo, obsessivo, circular, ele esbraveja consigo mesmo. “Chega de inventar histórias que, mesmo sem ler, todos já sabem o que vai acontecer e como vão terminar. Chega de só inventar pessoas e coisas que nem existiram nem poderiam existir.” O que o escritor deseja é ocupar-se de gente de carne e osso como ele... e começa, então, pelo começo que muitos autores se esforçariam por esconder – a teimosia na falta crônica de inspiração.


Zilberman traz à luz outras narrativas que se aventuraram pela intertextualidade, quando o autor contemporâneo enfrenta o fantasma dos personagens da literatura de tradição, em especial contos de fadas, ou já tradicionais, como no caso dos habitantes do sítio de Monteiro Lobato. A intertextualidade, representada de diferentes modos pela paródia, inscreve-se em questões mais amplas de metalinguagem e, nesse aspecto, frente aos leitores, o ser de ficção que é o autor-personagem pode confundir-se com o sujeito empírico, o escritor que é “gente de carne e osso”, pois toma-lhe de empréstimo o nome, a aparência ou seu lugar.


Na literatura portuguesa, é flagrante que assim faz certo Saramago, pouco modesto, em A MAIOR FLOR DO MUNDO, de José Saramago (2001). Lembre-se: o narrador não é o autor empírico, mas é um personagem que, neste mise-en-scène, se desdobra em culpas e desculpas por não possuir doçuras, nem palavras ou talhe para contar histórias às crianças!

Na literatura infantil brasileira, o jogo com os personagens de uma história bem conhecida dentro de uma nova aventura aparece desde o movimento modernista. Já o questionamento sobre as figuras do narrador e do autor-personagem talvez venha de um influxo estruturalista nos estudos literários universitários, pela década de 1970. Essa regressão toda é necessária quando tomo uma publicação como ALICE NO TELHADO, de Nelson Cruz (Edições SM, 2010) e repenso os impasses dos últimos 40 anos, ou mais, na produção destinada a pequenos e jovens leitores.


Ainda que trabalhando como escritor e como ilustrador, Ricardo Azevedo caraminholou a saída dos personagens da cabeça ou da imaginação do autor e, assim, muitos outros igualmente fizeram. Por sua vez, em seu duplo ficcional, Nelson Cruz escreve que
“Certa vez, tarde da noite, quis escrever uma história. Sobre a mesa, várias folhas de papel desafiavam minha intenção. Pela janela aberta entravam os sons dos grilos nas sombras das árvores. O pensamento perambulou por alguns temas e nenhuma ideia me veio à mente. Cansado de tentar escrever, apanhei um pincel e desenhei um círculo no meio de uma folha. E fiquei ali, imaginando se, a partir daquele desenho despretensioso, uma história poderia ter início. Mas nada.”
O que se pode adivinhar é que, em meio ao entorpecimento do cricrilar madrugada afora, o Nelson-personagem ouvirá vozes e não será um sussurro, mas o espichado grito chamando COEEEELHOOOO! Do círculo, vicioso círculo, sairão o Coelho Branco, a menina Alice de cabelos escuros, o pequeno Chapeleiro, o rei, a rainha gorda e três soldados, em uma lengalenga sucessiva que traz os personagens do país das maravilhas correndo em cima de papéis na mesa do escritor-ilustrador. Eles estacam, todos, no limite... de uma ilustração ou de um telhado à borda de uma imensa favela no morro.


Nelson Cruz já havia trabalhado com tamanho contraste entre as realidades das pessoas de ficção e das pessoas de carne e osso, em 2004, com O CASO DO SACI, fazendo dialogar o mano velho Zé Preto, um Gepeto às avessas, com a obra de Carlo Collodi. De seus projetos intertextuais, permanece oportuno para a leitura OS HERDEIROS DO LOBO, tour de force empreendida em 2009, entre narrativa, ritmo, imagens literárias, pintura e os contos da tradição popular.


No livro de 2010, ALICE NO TELHADO, os desenhos revelam um mundo coberto de ocre e pobreza pouco afeito à fantasia, uma favela de parabólicas e tiroteios onde nem os personagens mais cativantes ou absurdos da literatura para crianças ousam entrar. Ali, a infância é outra – e este recado, um tanto pessimista (leitor! insista) nos faz refletir... A saída para Alice é voltar ao buraco traçado pelo pincel do autor, um buraco de onde nem deveria ter saído? Talvez.





2 de janeiro de 2018

inúmeros olhos para ver o mundo

peter O sagae


O sentido de um livro vai além dos fatos que ele vem contar, o sentido de um livro lá está no arrazoado de ideias novas que dá ao leitor para encontrar e colher. Assim é a narrativa de Afonso Cruz a respeito de um pintor que iremos ver, como antecipa o título, debaixo da pia, em algum momento da trama... As hipóteses de leitura a serem talhadas mentalmente talvez me fossem duas: um artista que se esconde dentro de um homem comum, fosse ele um encanador, ou realmente um homem extraordinário, um artista a esconder-se do mundo e doutros homens que lhe acossam o viver.

Claro está que o autor não desejou trabalhar com a dúvida e, na Introdução para O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS (Editorial Caminho, 2011; Peirópolis, 2016), já o leitor é arremessado a um quadro pintado em 1940 por um Josef Sors, cujo olhos intrigantes para a vida abriram-se em 23 de novembro de 1895, filho da engomadeira e do mordomo de um coronel Möller, em uma cidade que ainda não se chamava Bratislava às margens do Danúbio, na Eslováquia. Ora, mais importante que nomes e datas, apontamentos corretos, é a certeza de que “todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso”. E o quadro que o narrador diz resistir em um pequeno recinto de entrada de uma casa na Figueira da Foz, esse quadro, nós leitores não o vemos nem temos pistas sobre o que nele se deveria ver!


Habilmente escrito no ritmo de capítulos curtos, a obra divide-se em duas partes – O LIVRO DOS OLHOS ACESOS e O LIVRO DOS OLHOS APAGADOS, nomes que fazem referência aos pequenos cadernos de desenho que Josef Sors levava sempre consigo. A primeira parte corresponde a dois terços da obra e pode, estruturalmente, ser dividida em duas seções: 1) aquela que se conta da infância, os anos de instrução ao lado de Wilhelm, a peculiar rotina familiar, a primeira impressão do amor como um infinito fora do alcance das mãos, a imagem de Františka a voar em um balanço no quintal contra o céu, e 2) os acontecimentos posteriores a vinte e oito de junho de mil novecentos e catorze, as muitas paisagens que Josef poderia pintar do mundo. Deste modo, 3) a última parte trata da esperança oculta às escuras, dos olhos que não podem, não querem enxergar os traços de luz nem o sol à sua volta. É uma novela em três atos, três movimentos, muito precisos – e preciosos – porque trata da dialética existencial: estar em si mesmo e sair de si para reencontrar-se.

* * *

Para quem aprecia colecionar frases, Afonso Cruz oferece uma narrativa plena de motivos para refletir – ao brincar com temas, como o amor, a guerra, a cultura, os enfrentamentos pessoais, as desventuras humanas, as palavras – e sorrir o sorriso discreto dos filósofos. Ou dos poetas. Porque já sabemos que a travessia pela primeira metade do século XX fez do homem, qualquer homem de qualquer idade e qualquer lugar, um projeto perante a existência. Sim, é necessário lançar-se ao mundo para conhecer-se. Todo homem é um viajante.


O'ABRE ASPAS 

“Wilhelm reparava que Havel Kopecky costumava acender um cigarro no outro. É como eu com os livros, pensava ele. Há pessoas que julgam que podem ler um livro do princípio ao fim, mas isso não é possível. A última página de um livro é a primeira do próximo, dizia Wilhelm, como os cigarros de Kopecky. Jozef Sors encolhia os ombros. Quando Jozef era mais novo e tinha dificuldade em sentar-se à mesa confortavelmente, a sua mãe punha-lhe uma almofada debaixo do rabo. A Wilhelm, a ama punha um ou dois livros, conforme o número de páginas. Ainda não sabia ler e já pedia concretamente este ou aquele livro para se sentar em cima dele. Mais tarde haveria de dizer que a altura de um homem depende dos livros que lhe serviram de base.” Afonso Cruz: O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS (2011) #afonsocruz Editora Peirópolis (2016, p. 38)