30 de setembro de 2010

nas dobras do hipertempo

por Peter O'Sagae
 

Infinitas são as explicações. Porém, continuamos submetidos à dinâmica estranha da quarta-dimensão: o tempo. Assim, também os moradores da intrigante cidade de Cobra Norato construída ao longo de apenas uma avenida que se contorce morro acima e abaixo — e não é à toa que a imensa via pública se chama Oroboro. Exatamente lá, uma sexta-feira 13 de julho volta-se num looping, arremessando as pessoas ao reinício das mesmas ações: é o tempo que se repete; apenas a memória o repele... O tempo percebido de forma instintiva por todos nós como movimento mecânico e o mundo inteiro preso a sua repetição encadeada. De um incerto déjà vu à viva lembrança dos acontecimentos, sete pessoas tornam-se a esperança de parar o círculo vicioso — e precisarão correr com toda velocidade e inteligência que puderem!


Heitor, Paula, Estela, Ulisses, Flávio, Tigre e Rhana estão presos nesta obra finalista do Prêmio Jabuti: BABEL HOTEL, de Luiz Bras, aka Nelson de Oliveira (Scipione, 2009). Para cada personagem, um capítulo firmado sob o seu ponto de vista e uma explicação para a estranha ocorrência — porém, o autor não impõe o leitor à mesma história através de sete perspectivas diferentes! Começando como uma novela de mistério, suspense, ação e ficção científica, a narrativa juvenil avança com a ruptura das repetições, a cada vez que os personagens aprendem a corrigir seus passos e introduzir fatos novos no decurso da eterna sexta-feira.

“Cansado, arqueado, olho para a avenida e vejo que toda a cidade está paralisada. Lá fora nada se mexe: a copa das árvores, os carros, as pessoas, os cães, os gatos, a fumaça, o vento. No momento em que mergulhava em direção a um ipê-amarelo uma delicada esquadrilha de andorinhas foi pega e transformada num móbile imóvel. Por um minuto eu tenho a impressão de estar dentro de um imenso holograma.”
(Flávio)

em vermelho, azul ao fundo

Dobras da Leitura recebeu...


E está agora a ler TROCA DE PELE, de Tereza Yamashita (Hedra, 2008), e A ÚLTIMA GUERRA, de Luiz Bras & Tereza Yamashita (Biruta, 2008). Alguém quer comentar?

16 de setembro de 2010

meu reino por uma palavra

nas dobras do tempo, por peter o’sagae


Em 1974, Eliardo França abriria páginas e portas para uma tendência na literatura infantil brasileira: a recusa aos despropósitos de quem está no poder, ao escrever e ilustrar O REI DE QUASE-TUDO, obra que se consagrou como “O Melhor para a Criança”, conquistando o Prêmio Ofélia Fontes da FNLIJ, além das inúmeras menções honrosas em concursos dentro e fora do país (saiba mais). Conquanto a denúncia talvez seja o efeito de sentido para alguns, podemos sentir poesia nas antíteses que tratam da impossibilidade de possuir o inefável que mais nos causa prazer. Escreve assim Eliardo: “Porque tendo as flores, não lhes podia prender a beleza e o perfume. Tendo os pássaros, não lhes podia prender o cantar. Tendo as estrelas, não lhes podia prender o brilho. E tendo o sol, não lhe podia prender a luz. O Rei era ainda o Rei de quase tudo. E ficou triste.” Mas, ademais, sob o manto da figura do rei, a crítica especializada encontrou o tema de sua predileção: o desejo de liberdade contra qualquer forma de poder ditatorial e injusta.

E houve também por aqui, em nosso reino de letras e política, certo REIZINHO MANDÃO, na parceria de Ruth Rocha e Walter Ono (1978). Láureas da época, o selo “Altamente Recomendável para Crianças” e participação na Lista de Honra do IBBY. Uma fábula sobre o poder absurdo (e mesmo ingênuo, digo eu) de um pequeno déspota que silencia a todos — e acabaria a história com dor no coração e na consciência, não fosse uma menininha quebrar o feitiço com um estrondoso “Cala a boca já morreu! Quem manda na minha boca sou eu!” Sob a figura de uma criança, o brado e o tema do velho conto de Andersen, As roupas novas do rei (1837), né mesmo?

Arguta, Angela-Lago sabe como destronar um rei mandão, contorcendo exclusivamente UMA PALAVRA SÓ (Moderna, 1996), selo “Altamente Recomendável” concedido pela FNLIJ e menção honrosa no Prêmio Bloch Educação, no mesmo ano de seu lançamento. Em diálogo com o passado, a denúncia passa a vez para o lúdico, numa obra, ora, ora, ora, pra lá de shakespeareana, com a condenação do príncipe às ordens reais de seu pai! O menino não poderia mais falar tudo o que pensava, mas pensava tudo falando intimamente consigo: “Se ao menos eu pudesse ler e escrever”. ((saiba mais))


E relendo e escrevendo histórias de reis, a literatura para crianças tem se ocupado em mostrar como as coisas podem ser realmente diferentes. “Utopia, delírio, realismo fantástico ou ficção, não importa. Essa combinação de leituras não teria sentido se ela não tivesse anexado o perdão como elemento de continuidade da história”, escreve Nelson Cruz, no “pós-fácil” do livro O DIA EM QUE TODOS DISSERAM NÃO (Global, 2009), entre os finalistas do Prêmio Jabuti – Melhor Livro Infantil. Somando a inspiração via Jorge Luis Borges e Vinícius de Moraes, a obra de Nelson Cruz alinha-se ao ideário mais amplo e fraterno de democracia contra a prepotência dos mais fortes ou das formas autoritárias de governo. Ao atualizar o tema, o grito de liberdade faz-se imenso como o silêncio, quando o rei conclama o povo e demanda guerra aos países vizinhos. Mas ele há de cair do cavalo... Temos direito à escolha pela própria ordem e paz!

15 de setembro de 2010

do lúdico e do (fr)ágil na literatura

comentários de peter o'sagae



Ninfa Parreiras
O BRINQUEDO NA LITERATURA INFANTIL: uma leitura psicanalítica (Biruta, 2008) 200 p.

Ninfa Parreiras conjuga literatura infantil com um olhar todo carinhoso sobre a criança e o brinquedo, mostrando-nos como se modificaram historicamente conceitos e costumes... Pois, se como a literatura, o brinquedo é uma invenção do adulto, de tempos quase imemoriais rumo à atualidade, tais objetos (ou todos os objetos?) materiais e imateriais vieram se tornando posse e reinvenção da criança. Com esta certeza íntima, a autora adentra os diferentes gêneros da literatura infantil, como a poesia, a narrativa em prosa, a narrativa visual no livro ilustrado e no livro-imagem, refletindo sobre a presença (e também a ausência) do brinquedo em textos que fazem referência e reverência a diferentes jeitos de conhecer e viver a infância.

O que se busca enfatizar é o efeito indissociavelmente lúdico e terapêutico que a literatura e a brincadeira possuem contra um cotidiano triste, cinza, muitas vezes perverso e fechado ao consumo sem consciência e a negação. Ainda que privilegie a representação e o jogo simbólico da leitura, Ninfa Parreiras vai concluindo em uma geometria de relações: “A literatura pode ser uma ponte entre a criança e a subjetividade. O livro pode ser uma ponte entre a criança e o brinquedo. O brinquedo é a ponte entre a criança e o mundo”.


Ninfa Parreiras
CONFUSÃO DE LÍNGUAS NA LITERATURA:  o que o adulto escreve, a criança lê (RHJ, 2009) 184 p.

Cada capítulo aborda um tema ou aspecto diferente: livros-imagem, poesia, contos de fadas; ilustração; o exílio, a diversidade cultural; obras com temáticas africana e indígena, textos clássicos ou canônicos da literatura nacional e estrangeira... Num apanhado generalíssimo de ideias literárias, vem Ninfa Parreiras conversando sobre os labirintos que uma obra cria em sala de aula, afiançando que “o professor não deve ficar receoso de levar um livro que trabalhe com as fragilidades humanas” para junto das crianças e jovens (2009:159). Afinal, é necessário deixarmos o lugar de nossa acomodação — e a literatura poderá ser um caminho.

Com um jeito breve de contextualizar os assuntos, nomes e títulos de importância, a autora evidencia que tipos de conflitos apresentam-se nos textos, pontua aplicações pedagógicas e não lhe escapa nem mesmo uma sugestão terapêutica, tendo a leitura como processo de conhecimento do mundo e de si mesmo. É seu conselho-convite: “Entre fundo numa produção, porque superficialidade não combina com literatura.” (2009:11). Assim, com bem raras pinceladas de teoria literária e psicologia, Ninfa Parreiras procura dar lugar aos desterrados, seja na geografia de cidades e países, seja no mapa das afeições.

9 de setembro de 2010

ricamente, a palavra dura

por Peter O’Sagae


Memória e infância podem ser dois ingredientes de difícil combinação, coisas incompatíveis uma com a outra, na hora de escrever para crianças. Teria que deixar de lado qualquer apelo de saudade, artifício que muitas vezes não cola aos ouvidos de um leitor com poucas “experiências idas”, nem muito responde a um leitor ávido por experiências novas. Ao escrever sua história, um autor talvez necessitasse bem mais que representar o que já foi, mas apresentar o passado como quem sabe fazer presente um tal instante ainda vivo. Pois assim Ignácio de Loyola Brandão escreve, enredando-nos pela lembrança literária de um acontecimento singular de sua infância. Com ilustrações de Mariana Newlands, a história d’O MENINO QUE VENDIA PALAVRAS (Objetiva, 2007).

À conquista de suas riquezas pessoais, um menino (que bem poderia ser qualquer criança, ou personagem de um conto imaginativo e afetuoso) entrega-se ao orgulho de ter o pai mais inteligente do bairro, da cidade... talvez do mundo! De nenhuma palavra, o pai ignora o significado. Incompatível fora a primeira palavra e depois vieram: lunático, degringolada, matula, alforje... O pequeno descobre o poder fascinar outros meninos e, daí, para estabelecer um comércio de palavras, o caminho é mais curto e certo que um traço e ponto —. Ora, como pagamento vale uma bolinha americana colorida, um sorvete ou chiclete, fotografia de navio de guerra... E a barganha foi a primeira e promissora atividade deste menino porque, quanto mais complicada a palavra, mais alto era o preço. Contudo, não é bem de uma riqueza material ou monetária de que o livro trata e retrata.

Ignácio de Loyola Brandão combina a beleza sonora das palavras com o elogio à leitura e aos mundos que ela descortina. Do espírito lúdico que investe nos fatos corriqueiros, o autor, com a mais imensa alegria, revela a generosidade do pai ao fazer o menino compreender que não se negocia o talento alheio, nem as palavras — afinal, o que ele tem praticado é trapaça. E a verdade de fazer literatura parece ser essa mesma: não condescender. Nem na forma, nem nos sentimentos: a lição mais dura é aquela que dura — e é preciso salvar o texto para também salvar os leitores.

Nas ilustrações e no projeto gráfico do livro, Mariana Newlands convoca o vermelho e o preto para as figuras, mais o tamanho e o peso diferente para as letras, palavras e frases que tomam movimento de tanto em tanto, explorando a mancha tipográfica em jogos diversos, tocando em soluções próprias da publicidade e o uso do branco da página como faz a mais séria poesia concreta. Estas composições visuais correspondem a diagramas distributivos, quando analisamos as relações espaciais ou sintáticas palavra=imagem.



O MENINO QUE VENDIA PALAVRAS, de Ignácio de Loyola Brandão e Mariana Newlands, além de ter conquistado o segundo lugar de Melhor Livro Infantil do Prêmio Jabuti, foi escolhido como o Livro do Ano - Ficção 2008, pela Câmara Brasileira do Livro, o que suscitou dúvidas frente aos critérios adotados para a escolha dos jurados da categoria livro infantil e a escolha máxima dos profissionais do mercado editorial!

nenhuma palavra vale a pena, mas voa!

Dobras da Leitura recebeu...

 
De Edith Derdyk, O COLECIONADOR DE PALAVRAS (Editora 34, 2009), original de 1986; O HOMEM QUE PUNHA PALAVRAS NOS PÁSSAROS, de Julian Borra, trad. Patrícia Levy Simões (Biruta, 2008); e MENINA PALAVRA, de Lúcia Fidalgo com ilustrações de Elma (Paulus, 2007).

3 de setembro de 2010

as 3 cores da teoria

flashes & notas da Vitrine Express


Para começar a pintar a paisagem da literatura para crianças e jovens, as cores básicas: conhecer a história da literatura e da produção editorial; as práticas sociais de leitura nos circuitos de recepção e valoração dos textos; não temer as tensões palavra&imagem, nem o caminho da obra em seus leitores.

De vermelho, vivo com a Literatura infantil brasileira: história e histórias, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (Ática, 1984). Cadê a continuação de nossa história? Azul é Zohar Shavit, na Poética da literatura para crianças (Editorial Caminho, 2003): estudo que trata de questões, processos históricos e estruturas textuais, o que nos leva a compreender que a literatura para crianças não é um gênero, pois já configura um sistema literário (ainda que estratificado: ambivalente, em função de seus leitores "grandes e pequenos") imerso em um sistema literário canonizado. Amarelo, post-it: "a literatura infantil também é um campo que abarca quase todos os gêneros literários". Ideias para grifar no livro de Peter Hunt: Crítica, teoria e literatura infantil (Cosac Naify, 2010: 27). Que outros matizes sejam conquistados com misturas e acidentes na paleta.