28 de fevereiro de 2011

o silêncio acolhedor das histórias

por Peter O’Sagae


Com delicada e competente linguagem, Graziela Bozano Hetzel escreve uma narrativa que mistura fantasia, sonho, literatura ao desejo de superar os desapontamentos que a vida traz.
Com uma estrutura rarefeita em pequenos capítulos, inicia-se com a história de um menino que sai a galopar nas costas de um lobo cinzento de olhos coruscantes, em uma noite quieta cheia de estrelas, ar perfumado — uma história dentro da história, que o pai de Lília lê à menina. A leitura é, no entanto, interrompida por um inesperado acontecimento e a pequena Lília preenche-se de uma solidão imensa.

Durante o dia, Lília conversa com a figura do lobo nas páginas do livro; durante o sonho, o lobo vem buscá-la e, agarrada ao pelo macio do animal, ela sai à procura do pai. Os dias se passam iguais, diferentes só dentro dela; a raiva e a tristeza tomam profundamente o coração da menina e, mesmo em sonhos, o lobo já não lhe faz companhia... Toda afeto e imaginação, a pequena Lília mantém-se fiel à espera do pai. Quando ele voltará para terminar a história?

Do mesmo modo como há metalinguagem de uma história dentro da história, o projeto gráfico realiza, com ilustrações de Elisabeth Teixeira, um livro dentro do livro. Assim, temos aí a capa do livro como o livro que contém a história do menino que sai às costas do lobo e uma sobrecapa azul, azul, com a figura da menina cavalgando o animal, por um campo muito aberto e verde, abaixo de um céu de estrelas.

De Graziela Bozano Hetzel, il. Elisabeth Teixeira, O LOBO (Manati, 2009).

23 de fevereiro de 2011

um navio por muitas lendas

Dobras da Leitura recebeu...


«Partimos do porto de Balsora com vento favorável. O navio no qual embarcamos nos levaria para a Índia. Já havíamos navegado quinze dias pela rota habitual, quando o capitão pressentiu uma tempestade [...] De repente, passou muito perto da nossa embarcação...» O NAVIO FANTASMA, numa tríplice produção verbal: reconto de Wilhelm Hauff (1826), tradução de Maria Lucia Machens e adaptação de Ana Maria Machado; ilustrações de Michelle Iacocca (Global, 2010). «O capitão, que estava ao meu lado, ficou branco de medo. — Meu navio está perdido — exclamou ele. — Ali viaja a morte!» Uma aventura entre espíritos condenados que apenas desejam descanso, pois há mais cinquenta anos reanimam os próprios cadávares... Que Alá nos proteja!

O NAVIO FANTASMA E OUTROS CONTOS, em adaptações de Fernando Alves (DeLeitura, 2009), traz lendas e relatos vikings. Da Islândia, terra do gelo, fantasmas e versos para jamais esquecer:
Inútil jaz nosso barco vazio!
Profunda é a vermelha escuridão sem fim,
Bem fez o sujeito atiçando seu cavalo
em disparada.
Poucos são amigos dos mortos.
Poucos são amigos dos mortos.

21 de fevereiro de 2011

“remover céu e terra para encontrar um só livro”

por Peter O'Sagae

Em 2083. David, 16 anos, e seu pai, em casa.
Em frente a um aparelho telessensor.
A notícia: o contexto.

Membros do Serviço Arqueológico encontraram, no interior de uma escavação um depósito de livros de papel, em excelente estado de conservação. Quase todos datam do princípio deste século, mas alguns são anteriores. O achado é muito importante para os historiadores, que agora têm diante de si a tarefa de catalogá-los e comprovar se há exemplares dos mesmos nos vastos galpões da Docuteca Nacional. É bom lembrar que os primeiros livros eram copiados à mão. A imprensa, que foi inventada na China, chegou à Europa no século XV. Os livros de papel deixaram de ser comercializados a partir de 2050, isto é, há pouco mais de 30 anos. Não se explorou completamente toda a escavação, pois seu acesso é difícil, o que significa que novas descobertas podem ser feitas.


Do escritor espanhol Vicente Muñoz Puelles, 2083, com tradução de América Marinho e Sandra Nunes, tratamento literário de Jorge Miguel Marinho, publicado pela Editora Biruta. Em 2010. Nesta obra, descortina-se um mundo sem livros de papel. Tampouco os livros digitais circulam pelo futuro. Teremos cópias em pontos longínquos da Cosmonet. Mas, raros acessos, prazos que caducam e a disponibilidade dos arquivos nem sempre é, ou será verdadeira. Títulos desapareceram no esquecimento...

O que acontecerá aos textos que ainda hoje nos emocionam?

Por sorte — e que sorte! — o pai de David trabalha em uma agência de viagens ao interior dos livros, a Bibliotravel. Com um sofisticado amplificador de inteligência, qualquer um pode adentrar um sistema ficcional a fim de acompanhar ou mesmo ocupar o lugar de protagonista nas aventuras ou no drama de heróis e heroínas. Regressando à realidade cotidiana, a lembrança vívida de pessoas e dos cenários. No modo interativo, é possível alterar detalhes da narrativa. E todas as situações passam a seguir o script de um desejo. Extremamente tentador! O único cuidado é que todas as viagens, como sonhos, podem se transformar em pesadelos...

David reviverá Davi, no passado bíblico, na luta contra Golias. Mas a ele valeria a pena decapitar o gigante? Em frente às muralhas de Troia, será o jovem Sinon escolhido por Ulisses para convencer os inimigos a conduzirem o genial cavalo de madeira ao templo de Atenas. Dará personalidade a obscuro moço de campo e praça que, após salvar alguns livros do fogo, acaba por tomar o lugar de Sancho na companhia de Quixote! David sentirá voltar no próprio tempo de menino como David Copperfield. E descobrirá o amor — e o ciúme por Zenaide, sob a aparência de Voldemar. Bem se diz que a literatura é o outro nome da perdição. Como reinventar O Primeiro amor, numa ilha de livros e promessas de felicidade, como se novelista russo Ivan Turguêniev jamais o tivesse escrito?

Talvez este seja o último livro de papel que você realmente leia. Talvez, o primeiro de outros mais. Ou apenas um link entre leituras futuras e as histórias do passado.

18 de fevereiro de 2011

goshu e os visitantes noturnos

por Peter O’Sagae


Um conto de Kenji Miyazawa, Sero Hiki no Goshu O VIOLONCELISTA, com tradução e ilustrações de Lúcia Hiratsuka (Edições SM, 2009). O jovem Goshu participava da orquestra do cinema. Sim, as antigas projeções de filmes mudos eram acompanhadas por música ao vivo! E era preciso ensaiar muito ou, pelo menos, o suficiente para não chamar a atenção demais do maestro. Goshu tocava violoncelo, “mas sua reputação não era das melhores. Não, não era. Diziam que, entre os colegas, era o que pior tocava...” Sempre atrasava a entrada. Ou atravessava o andamento. O que ele poderia fazer se muito brevemente aconteceria o festival de música da cidade e o maestro já estava às turras com ele e o velho violoncelo?

Noite, noite, noite, na pobre cabana de um moinho construído à beira do rio, onde morava, o impaciente Goshu recebe estranhos visitantes:




Kenji Miyazawa possui “um olhar intenso para os seres solitários” e seus processos íntimos de aprendizagem, mesclando uma pitada de magia a toda necessidade. Assim, cada pequeno animal vai trazendo ao jovem Goshu uma tarefa aparentemente irritante e sem propósitos que, no entanto, é uma oportunidade excelente de afinar e sintonizar o que há de melhor dentro de si. É preciso dar o máximo, aprender e sonhar!

Sforzando, aprendendo a sonhar...

15 de fevereiro de 2011

azul de mergulhos em ritmo brando

por Peter O’Sagae


Brancas letras e bolhas d’água vêm do fundo à superfície. Do mar e do papel, através da narração e das imagens de Denyse Cantuária: O VENDEDOR DE PÉROLAS (Sete Luas, 2010).

Das histórias de pescadores, com certeza, nossos sonhos já foram embalados. Ora, se não ali onde o mar vira renda, pés descalços na areia, ao menos num mergulho pela literatura. Neste livro, o que se conta navega por muitas vozes: do narrador, do pescador que trouxe uma pesada concha e os segredos do mar nela guardados, do menino Miraldo que os quer descobrir e de um peixe de olhos amarronzados. Um peixe encantado — como encantado fica o leitor por ouvir maravilhas que fluem neste bonito e boníssimo conto. Miraldo sonha com um par de sapatos, com peixes para alimentar a família, com pérolas que possam ajudar a muita gente com o dinheiro, mas o menino também deseja jamais esquecer e proteger os encantos do fundo do mar... Narrativa com poesia para quem gosta de procurar novidades, olhos acesos no que existe mais fundo em nós de humano e coragem ética.


“Quanto tempo se passou era uma dúvida. Muitas pessoas enchiam o cais, enquanto a vida deixava de ser vivida, para se preocuparem com o menino desaparecido entre as ondas do mar. Ao sair completamente das águas, viu que a noite começava a cair e, para quem vinha de tanta claridade, o cair da tarde era como um colo de mãe para se descansar.”


10 de fevereiro de 2011

é a lua análoga na água

Dobras da Leitura recebeu...


“Quando ouviu pela primeira vez a história de um macaquinho que queria pegar a lua, o mineiro Sérgio Capparelli não imaginava que estava para perder o sossego. O tempo passou. E pela segunda vez ouviu a antiga história. Havia se aposentado e morava na China. Explicaram-lhe que se tratava de uma lenda chinesa. Não se importou com a explicação, porque Minas Gerais e a China são o mesmo lugar, com nomes diferentes. De passagem por São Paulo, decidiu escrever em versos a história. Tempos depois, morando numa cidadezinha no norte da Itália, chamada San Vito al Tagliamento, quando no fim da tarde saía de bicicleta pelo campo, avistava a lua no alto da montanha. Ele então ficava perplexo, observando a lua de sempre.” Da apresentação do livro A LUA DENTRO DO COCO, de Sérgio Capparelli e Guazzelli (Editora Projeto, 2010).


Onde a reina a brincadeira, macacos e uma farra de signos: como toda fábula permanece aberta a interpretações morais, semioticamente ;-) a narrativa milenar revela o incansável esforço de alcançar a lua, alhures, objeto primeiro das representações vindouras, enquanto resta-nos a alegria de suas imagens icônicas e simbólicas: é a lua análoga na água dentro do coco que é céu doce e estrelado.


Ó lua cheia que nos ronda!

8 de fevereiro de 2011

bleu pour les garçons

comentários de peter o'sagae

Charles e Benjamin são vizinhos, porém não costumam ir juntos à escola. Aliás, estudando na mesma sala, Charles senta-se exatamente a frente de Benjamin. “Conheço de cor suas orelhas, grandes orelhas de abano, suas largas costas curvadas e seus cabelos tão curtinhos que ele até parece careca.” Não fosse isso, ou uma borracha ou um lápis emprestados, ninguém mais ali notaria sua presença. Qual seria mesmo a cor de seus olhos? Charles é daquelas pessoas que se não existissem, não faria falta. É o que podemos pensar até que um acidente faz o menino ficar preso à cama e sua ausência começa a chamar a atenção... E Benjamin recebe a incômoda tarefa de levar as lições de classe para o colega!

Novas situações irão desvendar uma legítima amizade entre eles, durante três meses, correndo o tempo, uma vez à esquerda, duas vezes à direita, entrando na rua que sobe e depois na que desce: a rua por onde se vê o canal, no verão, cheio de barcos. Como a vida. SE LIGA, CHARLES! de Vincent Cuvellier é uma pequena novela com muito bom ritmo no texto e nas ilustrações de Charles Dutertre (Edições SM, 2007).

Quem nunca viveu ou viverá um amor impossível, tanto mais próximo mais amoroso e difícil? “Então é isso, estou apaixonado. E ela está aqui, bem na minha frente, aos meus pés. Por alguns segundos a Terra pára de girar e eu perco a respiração. Aos meus pés, sim, ela está aos meus pés: a vendedora de sapatos da loja do shopping perto de casa... É ela.” E nada seria tão complicado se Gregório não fosse apenas um pirralho de nove anos e Leonor, vinte e dois... TODO MUNDO NAMORA MENOS EU, de Alex Cousseau com ilustrações de Nathalie Choux (Edições SM, 2005).

Estas são duas histórias da coleção Barco a Vapor, série Azul, que vieram da França. Com a tradução de Heitor Ferraz Mello, narram, com humor inteligente e delicadeza, dilemas contemporâneos, a solidão, o isolamento, a amizade e as mudanças que se processam no interior de cada menino, seja daquele que vive a separação dos pais, como Benjamin, ou a convivência com pais idosos, como Charles, ou ainda em busca do primeiro grande amor, como Gregório. As ilustrações de Charles Dutertre e de Nathalie Choux, semelhantes a vinhetas, espalham-se profusamente numa diagramação distributiva pelas duplas páginas.

7 de fevereiro de 2011

e a chave caiu-lhe das mãos...

por Peter O'Sagae



“Tingindo de azul a barba do protagonista, Perrault intensificou o horror provocado por sua aparência. Barba Azul é representado como um homem contrário à natureza, seja quando sua barba se tinge como a de um luxurioso oriental, ou quando ganha um volume monstruoso sem que ele recorra a artifícios. A cor azul, a cor da profundeza ambígua, ao mesmo tempo do céu e do abismo, codifica o caráter terrível de Barba Azul, de sua casa e de seus atos.” Escreve Marina Warner: DA FERA À LOIRA (1999: 276).


Moças graciosas motejam de Barba-Azul, que tem olhos de desejo e tristeza, na perspectiva do ilustrador polonês Janusz Grabianski. Dupla página do livro CONTOS DE PERRAULT, trad. Maria José U. Alves de Lima (Melhoramentos, 1970).



Oito dias de festa, passeios, caçadas e pescaria, danças e boa comida... Ninguém lá dormia, e as noites todas transcorriam entre brincadeiras. Aos olhos da jovem, a barba do homem já não parecia tão azul — a convivência é uma chave igualmente. Traços ligeiros a nanquim, cores empastadas, fortes, como manchas indeléveis sobre o papel. Arte de Zaü para O BARBA-AZUL, de Charles Perrault, com tradução de Hildegard Feist (Companhia das Letrinhas, 2009).




Por que há sangue nesta chave? Sob o olhar cortante de Barba Azul, a jovem perde suas cores no emaranhado de não ter uma resposta para dar. Formas exuberantes, tons saturados, rosto pálido, o antagonismo representado pelos personagens ocupando páginas opostas: detalhe da ilustração de Claudia Scatamacchia para O BARBA AZUL, traduzido do original francês por Tatiana Belinky (Kuarup, 1987).