24 de novembro de 2012

boreais, coração dentro dos livros

Peter O. Sagae*


Alguns livros são feitos de 
pura emoção, acrescentando, aos poucos, ao discurso, em fogo brando, um suspiro e mais outro, descobertas boreais e úmido sangue correndo esperançoso às veias do leitor.
 E o primeiro título juvenil de Eloí Elisabet Bocheco, BEATRIZ EM TRÂNSITO, vencedor da terceira edição do Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana
 (Porto Alegre, 2005), assim se entrega: sem medo de invadir a distância, tocar os afetos, tomar nossa respiração (meu coração viu tudo, alerta a narradora) e você — você vai se emocionar!


Beatriz e seus parentes vivem de muitas mudanças pela vida, de cidade em cidade. Por isso, tem sempre casa nova pelo caminho e a necessidade maior de se desacostumar do costume dos mesmos lugares. E das paisagens internas que só para quem não quer ver parecem quase sempre iguais, mas movendo se vão com o talismã do tempo e da compreensão, ao vento do próprio destino. Ora, essa coisa de mudar é gosto que nasce dentro de certas pessoas. O avô curtia viagens e, de silêncio bem curtido, virou tropeiro de bois celestiais.
 A família, a família estacionou em Santo Antônio dos Campos e, desde então, a avó cuida da menina como se criança sem mãe fosse de vidro. Moravam juntos e juntos mudavam, de tanto em tanto, a tia Leonor, tia Rosana, tio Pedro, Eduardo, Lia...

Numa das escolas que conheceu, Biazinha (detesto que me chamem de Biazinha) ficou de olho assim grudado no armário bege de livros guardados de Guiomar, uma professora que sabia 
misturar aula e vida. Foi quando conheceu Samuel, um menino
 em trânsito sobre sua cadeira de rodas com jeitão de quem havia lido montanhas de livros, tantas paisagens ele conhecia! Depois, será Samuel seu melhor amigo correspondente. Melhor não fosse, nós até poderíamos pensar. Melhor seria não tê-lo conhecido, Beatriz até poderia pensar. Porque a saudade também existe para doer. E perdoar. Em outra escola, chegará Mariana de longe, com 
medo trancado que não pode abrir feito pote de barro que “dentro tinha coisa que chacoalhava, tilintava, farfalhava”.

Capítulo a capítulo, a história de Beatriz se descobre em um verdadeiro ‘livro de admirações’ por outro livres, como inventaram a menina e seu grande amigo, e coube à Autora realizar, obediente ao desejo dos personagens, através da urdidura da palavra. Tem momentos para suspirar um jardim inteiro (Sento na escada da varanda pra esperar a boca da noite soltar os pirilampos.) No entanto, melhor que contar o segredo dessas pessoas, é contar que essas pessoas todas têm segredos: vivos, dentro e fora da ficção. BEATRIZ EM TRÂNSITO encerra-se com um aceno
 de adeus e amizade, texto de encantos e asperezas em equilíbrio, denso e leve como a vida, mais uma pitada de umas coisas que se repetem e outras que nunca mais acontecerão.


« Devagarinho fomos saindo. Decerto a alma de minha mãe ficou contente com tanta flor bonita
 só pra ela. Me deu medo que as outras almas ficassem com ciúme porque não ganharam flor e viessem me pegar no meio da noite pra reclamar. Tinha tanta alma ali que era preciso um campo inteiro de flor. Nem olhei pra trás de medo desse pensamento não me largar mais até em casa e depois de chegar em casa também. Acho que a minha mãe me protegeu porque,
 dum ponto em diante da estrada, o pensamento se foi não sei pra onde. » 


* Resenha extraída do site Dobras da Leitura, por ocasião da publicação do texto pela editora Nova Prova, 2005, com a capa de Thanara Schonardie. A obra foi reeditada com ilustrações de João Lin (Dimensão, 2007).

22 de novembro de 2012

numa atitude comum ainda hoje

O'ABRE ASPAS para Edmir Perrotti


"O discurso utilitário procurou sempre oferecer a crianças e jovens atitudes morais e padrões de conduta a serem seguidos, ordenando os elementos narrativos em função de tal finalidade exterior [...] era de se esperar que autores da 'nova' literatura questionassem tal atitude também a nível da organização do discurso, uma vez que questionaram sempre os valores que sustentavam tal ordem: sexismo, preconceito racial, etnocentrismo, antropocentrismo, vida afetiva meramente formal, saber como instrumento de poder, individualismo etc. Todavia, não foi isso, muitas vezes, o que se viu [...] Vários autores da 'geração 70', em muitos momentos ficaram presos a esse impasse, numa atitude comum ainda hoje, sobretudo em trabalhos de iniciantes bem intencionados, mas poucos atentos às peculiaridades do discurso estético que [...] requer um leitor participante." (Edmir Perrotti) O texto sedutor na literatura infantil, 1986.

20 de novembro de 2012

o abraço dos orixás

Temporada de contos e recontos, 10


Pierre Fatumbi Verger abre o volume de LENDAS AFRICANAS DOS ORIXÁS (Corrupio, 1997) com as belas palavras de um babalaô: “Antigamente, os orixás eram homens.” – que, por seus poderes, sua sabedoria, força e virtudes, tornaram-se dignos de jamais serem esquecidos. Consequentemente, é a homenagem à memória de um ancestral que movimenta o culto aos orixás, de geração em geração, até os dias de hoje... Com base nas narrativas da tradição ioruba compiladas pelo Fatumbi, destacamos três recontos.


OXALUFÃ, com aquarelas de Edsoleda Santos e texto de Renato da Silveira (Solisluna, 2010), narra a longa viagem que o muito-velho orixá empreende rumo ao norte, para as terras de Xangô. Um adivinho da corte havia advertido Oxalufã de que não seguisse caminho; porém, o obstinado ancião decide ir, ainda que a passos lentos, apoiado sobre o cajado enfeitado por um pássaro de metal branco. Atravessando desertos, savanas e florestas, Oxalufã se depara com três exus zombeteiros que muito aprontam para por à prova a virtude de sua paciência... Consciente do poder da própria paz, o velho orixá chegará ao reino vizinho, exatamente onde começarão os sete piores anos de sua existência!


OXUM foi escrito e ilustrado unicamente por Edsoleda Santos (Solisluna, 2011), iniciando com a saga de um povo contra a falta de água e de alimentos, contra os animais ferozes e as paisagens áridas. É uma história de esperança e da conquista da uberdade da vida, representadas primeiramente pela busca de um lugar para estabelecer uma nova cidade e pela espera confiante do rei Larô pelo retorno da filha desaparecida. Pois a menina fora convidada a visitar o reino de Oxum, submerso nas águas doces do rio, onde conheceu a intimidade e as três lições mais importantes da natureza: o poder, o tempo e o ritmo da gestação; o aroma dos condimentos e o sabor das iguarias que nutrem e conservam a vida; o remédio para aliviar e curar o corpo com ervas e plantas. O mito de Oxum ensina-nos que ninguém é inimigo da água.


IBEJIS, de Edsoleda Santos (Solisluna, 2011), igualmente transporta o leitor para o tempo mágico dos reinos nigerianos, onde viviam os encantados orixás. Como muitas histórias a respeito do nascimento festivo de gêmeos, por toda costa e o interior do continente africano, e também pelo mundo afora, a lenda dos filhos de Xangô e Iansã faz reverberar a consciência ancestral de todos os povos, na tentativa de responder às perguntas de onde viemos, quem nos criou, quem são nossos pais. Aqui está mais um relato de um casal divinamente ligado aos fenômenos do céu, Xangô, deus do trovão, e Iansã, deusa de raios e tempestades, cuja força, som e brilho anunciam a descida da água à terra, fertilizando-a. Em meio ao mito da mãe que lutará bravamente contra a separação momentânea da morte de um de seus queridos filhos, encontramos a história de nossa divindade resguardada pelos símbolos totêmicos da fé.

19 de novembro de 2012

um abraço Brasil-Angola

Temporada de contos e recontos, 9


Jô Oliveira ilustrou A ÁRVORE DOS GINGONGOS, da escritora angolana Maria Celestina Fernandes (DCL, 2009) com os tons mais vibrantes de cobalto, violeta, magenta, os vermelhões muitos e um amarelo bastante ensolarado, para nos fazer sentir o calor e a língua portuguesa que entrelaça gentes, sabores, memórias à sombra querida de uma frondosa mangueira.


Ou, pelo menos, tal poderia ser o desejo de fazer qualquer criança estender o braço para pegar uma fruta madura e gostosa da árvore... Mas, não! Os gingongos caçulês não vão deixar.


Porque é assim: onde nascem gêmeos, vira toda a vida da casa para satisfazer as vontades dessas crianças. Que caprichosas, crescem, que danadas, mandam e determinam como as coisas devem ser! Pois, apesar dos outros sete filhos, Nga Maria e Papá Policarpo tinham grande adoração pelos mais pequeninos, uma menina chamada Eva e um menino chamado Adão, mimados e temidos pela vizinhança porque trariam azar para as pessoas, se tristes ou contrariados. É pra ter muitos cuidados, ehn!


Nascida em Lubango, Maria Celestina originalmente publicou o texto em 1993 (Portugal: Edições Margens) e dá testemunho do sincretismo que faz Angola orgulhar-se de suas tradições. A história atualiza a mitologia dos quimbundos a respeito dos gingongos ou jingongos Mpèmba e Ndèle que remotamente povoou o país. Em especial, em Luanda, onde a autora viveu grande parte de sua vida, os gêmeos são tratados com deferência, como portadores de boa sorte para as famílias, ainda que os velhos afirmem que eles possam ser potencialmente malignos, pois seus espíritos têm origens entre os antepassados ou as sereias... Ora, o nascimento duplo é uma reminiscência das antigas histórias ou real intrusão dos poderes superiores na vida cotidiana, às vezes, uma benção, d’outras, uma maldição. E a escritora revive as marcas ambíguas perante o divino, multiplicando-o com nomes bíblicos, – e fazendo surgir uma velha curandeira com amuletos, rezas, incenso, roupas de pano cru com símbolos azuis e vermelhos para Eva e Adão crescerem com paz e saúde; – e dando também às crianças o sacramento do batismo, quando receberam novos nomes, Manuel e Manuela, para homenagear, no papel, o padrinho branco.

A coesão social aí ainda advém da oralidade. Através dos pedidos, promessas e outras formas da palavra falada, os antigos mitos fazem despertar alguma razão sobre as emoções e os medos: vai um dia, os caçulês exigem a posse da mangueira do quintal e os pais, para evitar maka, birra e choro, acabam concordando. No entanto, quando as flores se transformaram em frutos... nenhum dos irmãos mais velhos, ninguém dos vizinhos, quis saber das proibições – e tempestivamente os gêmeos temperamentais adoeceram. Ah, se morrem, azar, muito azar para todos! Mas é neste ponto que uma nova acústica de consciência ilumina o respeito que os gingongos devem ter frente à própria comunidade, fazendo-os vencer o egoísmo tão infantil com que eles mesmos foram nutridos.


26 de julho de 2012

avó deliciosa

Temporada de Contos e Recontos, 8

Qual a avó mais gostosa que habita os contos folclóricos? Eu apostaria na velha bruxa da floresta que mora, há muitos e muitos recontos, na casinha feita de coisas doces...


Invenção dos colecionadores de histórias alemães do XIX, a casa com telhado de pão de ló e janelas de açúcar não era encontrada por crianças em antigas narrativas, como Nennillo e Nennella, de Giambattista Basile (1635), conto que conta igualmente as desventuras de dois irmãos pelo mundo afora; surgiu, no caminho de Hänsel e Gretel, tão somente em 1812, ano em que Napoleão, com seu famoso cavalo branco, fez campanha nas terras de Baba-Yaga, outra simpática avozinha que mora nos lugares ermos da floresta... Seja lá como for, temos nos habituados a sonhar com este lugar de confeitos e excessos como permitem as deliciosas avós, uma casa onde nos espera uma cama quente e macia, na companhia dos nomes de João e Maria.


Sei que inúmeros intérpretes de contos tradicionais olham para a bruxa da floresta como a contraparte simbólica da madrasta, uma e outra jogando com a promessa e a pressa de não passarem fome juntamente às crianças. Mas, um símbolo não impõe imagens partidas, porque abriga o que é aparentemente oposto em seu interior; do contrário, não teria forma nem força para atuar como símbolo! A velha espelha quem pode substituir a mãe; é a mesma imagem da madrasta, frações de bruxa e fada, em sua maternidade ancestral, um convite nutriz e, ao mesmo tempo, devorador.


É esta ideia que surge na ilustração de Victor Escandell, às primeiras páginas do livro João e Maria, em uma versão espanhola seguindo de perto o conto configurado pelos Grimm, na tradução de Andrea Ponte (Escala Educacional, 2011). Como uma avó inventando parlenda, a voz da velha suave soa:
“Será que é a ratinha que está roendo a minha casinha?”.
O menino responde com inteligência e imaginação:
“É o vento, é o vento, aquele que faz girar o cata-vento!”


A partir dos Grimm também, è giusto, a versão italiana de Roberto Piumini para João e Maria traz Anna Laura Cantone nas expressivas ilustrações coloridas de um humor cômico e cativante; tradução de Daniela Bunn (Positivo, 2010). E vale lembrar que a história não deixa de mostrar o caldo de netos que, por vezes, oferecemos a nossas avós. Diz a velha desgostosa a respeito de João: “Ah! Come, come e não engorda!”. E quanto trabalho na hora de abrir o forno...


Há uma versão brasileira, registrada por Câmara Cascudo (1919) que, quando a velha bate nas brasas e labaredas, queimando-se toda, gritava toda desesperada: “Água, meus netinhos!”, mas os sonsos respondiam: “Azeite, senhora avó!” E, como são muitas as portas que me levam aos contos, tiro da estante...


O indefectível compacto 33 ½ de vinil azul com João e Maria, na adaptação de Elza Fiusa e a orquestração de Radamés Gnattali (1961). Sem madrasta na história, os irmãozinhos perdem-se na floresta na hora de levar o almoço para o pai, conforme se vê na capa do disco. E a velha bruxa-avó era, sim, uma fada!

* * *

P.S. Compare as duas produções para a Coleção Disquinho.
Serão uma versão dos anos 40, mais próxima do texto dos Grimm, e outra dos anos 60, com outros elementos introduzidos no conto tradicional? Quem tiver qualquer informação, compartilhe!



* * *

20 de julho de 2012

para sempre vermelho

Temporada de contos e recontos, 7


Dizem que Chapeuzinho Vermelho não é propriamente um conto folclórico, muito menos conto de fadas, tendo surgido como uma lenda local de âmbito restrito às regiões europeias mais centrais, ao longo do Loire rumo ao Tirol, tão ao norte da Itália, indo à meio caminho dos Alpes, quem sabe, alcançando o que hoje muitos chamam Suíça, quase Eslovênia... E são muitos os estudos sobre as origens, os significados, as aplicações do conto à vida prática ou psicológica, em um volume de notas volúveis entre o anseio infantil e o imaginário, nem sempre freado, dos comentaristas adultos. Pouco importa.

Chapeuzinho Vermelho é dessas matérias literárias de alta plasticidade textual: quem não conheceria um conto, seu reconto, paródia, paráfrase, anedota, caso, chiste, animação, thriller, leitura, tradução, transcrição, ensaio fotográfico, ilustração, roupa, propaganda, jogo que trace o caminho da menina em direção à boca do Leitor, mais faminto e severo que o lobo? Angela-Lago bem definiu o conto-personagem como A Interminável Chapeuzinho Vermelho, dada a avidez que temos de buscar possibilidades para digerirmos a história... E há um insinuante vídeo de Jan Kounen, O Último Chapeuzinho Vermelho (1996), que não é apenas uma versão... Na floresta dos meios de produção de linguagem, Chapeuzinho Vermelho tornou-se um objeto-nexo-contexto de representações. É o que importa.

Mas, vamos aos livros.
I.

Na Espanha, dizem que Caperucita ganhou uma capa de sua mãe e Eva Navarro ilustra seu Chapeuzinho Vermelho de braços abertos para a vida. E o que leva na cestinha? Bolinhos de mel... O livro, com tradução de Andrea Ponte, diz seguir o caminho francês de Charles Perrault (1697), desembocando, no entanto, no final alemão dos Irmãos Grimm (1812): um caçador, mais um lavrador enchem a barriga do lobo com pedras (Escala Educacional, 2011).

II.

O italiano Roberto Piumini reconta Chapeuzinho Vermelho, a partir de J. e W. Grimm, lembrando que a avô dera à menina linda um chapéu de veludo vermelho... E os ingredientes da cesta – bolo e suco de uva – farão parte da ceia para festejar o fim do lobo e do conto! Ilustrado pelas pinceladas de Alessandro Sanna, o texto foi traduzido por Daniela Bunn (Positivo, 2010).

III.

Em uma proposta bem humorada, Chapeuzinho (Anuncie Aqui!) Vermelho pode ser considerado um “livro ilustrado com propaganda”, na concepção de Alain Serres (Scipione, 2011). O autor apostou no texto integral do conto de Charles Perrault, com tradução de Ana Luiza Baesso, e nas ilustrações de Clotilde Perrin, mas convidou diversos outros ilustradores para dar cor e uma linguagem própria a cada anúncio que invade as páginas do livro... Ainda que termine a narrativa, de acordo com a tradição francesa, a publicidade de um aparelho de telefonia móvel garante a reinvenção da velha história. Total cobertura de humor.


12 de julho de 2012

uma ouvinte tão exemplar

O'ABRE ASPAS reticentes para Hoffmann


"Do fundo da escrivaninha, ele tirou tudo quanto havia escrito na vida. Poesias, fantasias, visões, romances, contos, aos quais não cessava de acrescentar os mais variados sonetos, estrofes e canções, e passava horas lendo-os para Olimpia, incansavelmente. Mesmo porque nunca tinha tido uma ouvinte tão exemplar. Ela não bordava nem tricotava, não olhava pela janela, não dava de comer a nenhum pássaro, não brincava com cachorros ou gatos de estimação, não enrolava pedaços de papel nem ocupava as mãos em outras atividades, não simulava tosse para encobrir um bocejo; em suma, passava horas e horas olhando fixa e inalteravelmente para os olhos do amado, sem mudar de posição, sem se mover, ..." (Ernest Theodor Amadeus Hoffmann) Der Sandmann, 1817.

Do livro Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino (Companhia das Letras, 2004), "O Homem de Areia" traduzido por Luiz A. de Araújo.

7 de julho de 2012

quando menos = mais

Temporada de contos e recontos, 6

Na economia da linguagem, revela=se uma multiplicidade, sempre. De leituras, colhendo surpresas pelo caminho. Jogar com o leitor é algo que Angela Lago, agora Angela-Lago, se mostra mestre. Sempre +. E ninguém se cansa disso ou daquilo, esperando mesmo por aquele instante em que isso vira aquilo. Em seus livros, quando menos = mais...


Vamos fechar as contas sobre JOÃO FELIZARDO, O REI DOS NEGÓCIOS (Cosac Naify, 2007), uma engenhosa reinterpretação do conto popular que recolheram os Grimm no século XIX: João, o rei da barganha que, de herança, recebe uma moeda de ouro, apenas e única, ah miséria, e sai mundo afora para fazer a própria fortuna. E, claro, confusão também...

A autora lança nossos olhos diretamente para a ilustração. É fácil ler a primeira cena. No entanto, mais fácil é perder-se nos detalhes da imagem crispada e castanha em traço incerto que dá o começo = o fim, o pai de João é morto. É preciso flagrar o sorriso no rosto dos homens, o movimento de suas mãos, os bolsos cheios de uns, a mão estendida do menino... Há muito o que ler = recuperar e criar a partir das pistas.


A narrativa segue em ritmo de lengalenga, pra lá e pra cá, todos sabem como é um conto acumulativo e Angela-Lago faz João trocar, trocar, trocar sucessivamente um cavalo por um burrinho e este por uma cabra esperta, por um porquinho sossegado, por um pássaro... O que o menino possui, cada vez mais, vai se tornando menor, mais leve, sem importância material, mais imponderável ou uma qualidade impensada... Parece mesmo que o rei dos negócios sai sempre perdendo algo e o leitor antecipa que coisa alguma vai durar verdadeiramente em suas mãos! Angela bole com a estrutura tradicional. Seria aí um des-conto cumulativo? E o pássaro que era tão... Oh, surpresa, nem o narrador tem tempo para completar a frase, o pássaro voa!


Ao fundo, a paisagem... eu pensei "fundo"? Engano-me, porque. A cidade se espalha, transborda nas páginas, comprime João e faz a gente se perder num caos só — essa cidade tão nossa, vai ficando para trás, com seus carros, casas e coisas altas de concreto. Então, cores planas, extensas e simples de azul e areia vão deixando o menino caminhar. Descobrimos porque João = Felizardo por um imenso segundo.



* Extraído de Dobras da Leitura 44: abril de 2007

6 de julho de 2012

um enigma na teia de histórias, I

Temporada de contos e recontos, 5
a primeira resenha de peter o‘sagae* em 4 postagens


Sabemos que todas as histórias se perdem na noite dos tempos, narradas em diferentes lugares e, de repente, vamos encontrando seus personagens e enredos nas páginas de um pequenino livro: é o caso da princesa adivinhona tal e qual Angela-Lago resgata em SUA ALTEZA, A DIVINHA (RHJ, 1990), transportada para um texto deliciosamente combinando palavra & imagens ao ritmo de uma carta enigmática. Trata-se da história de uma princesa que se julga saber tudo e somente irá se casar com aquele que a conseguir derrotar em um jogo de adivinhações. Pois bem, que vieram lá os pretendentes! Todos, porém, acabaram na forca: rei, capitão, soldado, ladrão: era uma vez! Até que...


(Ah, não vou contar toda história, não. Vamos deixar o que acontece depois para depois) Interessa agora saber um pouco mais sobre essa antiga personagem...

É provável que Sua Alteza tenha nascido no Oriente, em uma terra escondida entre as mais diversas adaptações d’As Mil e Uma Noites... E lá começa o enigma: existiu, em tempos distintos, uma mulher de notável inteligência, conhecedora das artes e dos mistérios, medicina, astronomia, filosofia, lógica e toda ciência. Chamava-se Tawaddoue. Um tribunal formado por sábios e doutores foi convocado para interrogá-la, mas a moça saiu-se muito bem, formulando boas respostas. E sua fama correria mundo, apelidada Douta Simpatia através das paragens da tradição europeia.

um enigma na teia de histórias, II

Chegando à Itália, encontraremos lá a história de Turandot, a Princesa de Pequim, nas mãos do escritor veneziano Carlo Gozzi que, no XVIII, traduziu e adaptou uma variedade de contos populares do Extremo Oriente. Sua beleza e crueldade fariam Turandot transformar-se em personagem de ópera, na primeira metade do século XX, através das partituras de Ferruccio Busoni (1911) e de Giacomo Puccini (1926). Então, nos palcos, Turandot canta e afasta muitos pretendentes: “Três são os enigmas, uma só é a morte!”

 No pavilhão do palácio, no entanto, está um jovem estrangeiro que decifra as três perguntas-desafios: Qual é o fantasma que renasce a cada noite, morre ao alvorecer para continuar vivendo no coração do homem? Arde como a chama da febre e se resfria na morte, queima quando sonha com a vitória e seu brilho parece com a luz do sol que se deita? Qual o gelo que te inflama e se torna por isso mais frio, queimando-te? É ele o Príncipe da Tartária que, sequente, propõe à Turandot descobrir o nome que ele guarda em segredo... Por toda a noite, ninguém poderá dormir, enquanto o enigma do forasteiro não for descoberto. Esta é a ordem! Na ópera de Puccini, o estrangeiro canta a famosa ária “Nessun dorma” (e deixo aqui os enigmas para você resolver).


Na Península Ibérica, muitos conheceram a ventura da Donzela Teodora. De Portugal ao Brasil, num salto só, ela estará estampada em cordel com sua imbatível sabedoria. Fios que se cruzam, a teia é imensa 'té parece não ter fim, pois tem até santa nessa sanha: Catarina de Alexandria, mártir que viveu em meados do Século IV e é venerada no dia 25 de novembro como padroeira dos estudos. Sua identidade, muitas vezes, se confunde com a famosa matemática, astrônoma e filósofa Hipásia que viveu entre os anos 355 e 415 da Era Cristã. Qual seja! Diz a lenda que uma jovem de grande beleza e conhecimento enfrentou os magistrados da imemorial Biblioteca, venceu o debate e converteu todos ao Cristianismo nascente... Ora, nem sempre a virtuosa de Alexandria teve o mesmo nome: nascera Dorotéia e, com as águas do batismo, tornou-se Catarina. Nomes aí que configuram um anagrama, Teodora e Dorotéia significam igualmente ‘dádiva divina, pequena deusa, jovem de Deus’.


um enigma na teia de histórias, III


E quem está no livro de Angela-Lago? Uma princesa, a Divinha – diminutivo de Diva, divina e deusa, dádiva... E, do som que se transforma na relação da boca ao ouvido, seja ela princesa ou donzela, mesmo santa ou alteza, a personagem conquista a simpatia não apenas pela sabedoria-que-sabe, mas igualmente pela vitória inesperada, de que tanto gostamos nas histórias, do mais frágil sobre o mais forte. Em uma personagem, estão todas as outras em potência e possibilidades do passado: Tawaddoue, Teodora e Catarina-Dorotéia, cuja vitória se fez proclamar sobre o tribunal de sábios doutores; contrariamente, Turandot – ai, seu coração de gelo tremerá sob o fogo de uma paixão, quando o amado revelar seu nome em um beijo pousado em seus lábios... E o que acontece à Divinha, então?

Ora, a adivinha... Está por toda parte, nos jogos de linguagem d’o que é, o que é, nas palavras cruzadas, nos enigmas imaginados desde o tempo da Esfinge, entremeando-se, desde as rodas infantis aos fios da novela e do romance policial. O ponto de partida é sempre a pergunta. Contudo, mais que alcançar a resposta, importa o caminho-exercício para desvelar o que foi cifrado em segredo. Algumas adivinhas admitem dupla solução, são ricas na experiência com a linguagem, diga-se: uma linguagem especial, como nas famosas perguntas capciosas. Neste jogo, quem pergunta sempre oferece uma alternativa diferente, rebatendo a resposta que lhe foi dada. É, por isso, uma armadilha à qual o adivinhador deve esforçar-se para não cair. Decifrar significa, portanto, salvar a dignidade, escapar com vida. Como em um antigo ritual, ter a solução é encontrar o caminho da aceitação pública.

Pois bem: o jovem Príncipe da Tartária conquista a Princesa de Pequim, derrotando-a nos desafios que ninguém mais ousara adivinhar. As três respostas são: a esperança, o sangue e Turandot! E qual nome que ela mesma ignorava? Soam longamente os trompetes no palco da ópera e a moça, em frente a todo seu povo, responde: “Descoberto o segredo do estrangeiro. Seu nome é... Amor!” De fato, somente ele fora o único a dar as respostas-vida à princesa que tinha os sentimentos petri-trancafiados em seu coração frio... Enquanto ninguém dormia na cidade de Pequim, ele, Calaf, entrou em seu quarto para roubar-lhe o mais sincero beijo.

E a Divinha que é princesa, que é sabida, que é trocadilho no nome, também faz suas adivinhas e acaba adivinhada por Louva-a-deus, moço simplório que vai tentar a sorte no castelo... E que sorte encontra o rapaz por terras brasileiras! Há diversas variantes que apresentam o herói como João-de-Deus, o Matuto João, o Amarelo... Às vezes, esperto como ele só, parente mesmo de Pedro Malasartes, outras vezes, totalmente ingênuo, o tolo de bom coração que irá se casar com uma figura de alta importância, pondo fim à arrogância de qualquer princesa...

um enigma na teia de histórias, IV


O livro de Angela-Lago atualiza o jogo e o velho ritual, não apenas na linguagem especial das adivinhas, expressa nas falas da Divinha e de Louva-a-deus. A brincadeira amplia-se para as imagens que completam frases, substituindo palavras pela presença dos personagens, objetos, elementos da paisagem e demais ações da narrativa.

Se a escrita é um desenho, a autora não se faz de rogada ao jogar com a diagramação das letras sobre a página: são as vogais das palavras ‘rei, ‘soldado, ‘capitão e ‘ladrão’ que puxam a corda que prende os pretendentes pelo pescoço; a palavra ‘montanha’ é diagramada de tal forma que obriga o olhar do leitor a subir pela frase; aparecem sete ooooooovos enfileirados com a letra O e há muitos outros recursos que coloca o livro todo em movimento.


Forma e conteúdo se encontram na felicidade de um livro que não é meramente um livro, mas um artefato, objeto de papel invocando o teatro: é a presença da moldura que não fecha o foco apenas sobre o palco, mas abre espaço para o público entrar em cena, participando da torcida e da expectativa. É também o gestual do flagrante, a entonação da voz, humor e ritmo, sutilezas descortinadas a cada página virada.


* Peter O‘Sagae, em Dobras da Leitura 1, abril de 2000. Publicado anteriormente com o título “Um enigma na teia de estórias: a princesa que adivinha” In: O Balainho - Boletim de Literatura Infantil e Juvenil. São José SC, (3) : fev. 2000. Texto revisto e ampliado em 2012.

25 de junho de 2012

as respostas de lobato

O'ABRE ASPAS para Socorro Acioli


"As grandes interrogações da curiosidade infantil estão fortemente presentes na obra de Lobato. "Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?" são perguntas que se desdobram em várias outras, pois podem ser respondidas de acordo com o contexto biológico, social, histórico, filosófico. As respostas de Lobato estão no resgate das origens do pensamento grego; na descrição da história do mundo; do descobrimento do Brasil; na explicação do funcionamento das glândulas; na mudança do tamanho dos seres humanos (provocando uma reflexão sobre nossa condição biológica); no resgate das raízes culturais e folclóricas brasileiras através das histórias populares, mitos e lendas; e no questionamento do destino dos homens (para onde vamos?) presente nas críticas às guerras e conflitos entre nações." (Socorro Acioli) Aula de leitura com Monteiro Lobato, 2012.

22 de junho de 2012

lá, onde começava a ponta do mar

Temporada de contos e recontos, 4
postagem cifrada por peter # sagae


Os portugueses inventaram coisas, como inventaram... Um mar só deles, um país que se jangadou do continente restante, e terras, muitas terras a serem descobertas no fim de uma longa viagem. Também inventaram contar histórias de outros povos com seu jeito único de fazer e desfazer da inteligência dos outros. Inventaram João Ratão, João Grilo, João Pequenito e Pedro de Malas-Artes que era antes outro Urdemalas, e antes outro Jean Mâchepied, e antes outro Till Eulenspiegel ou Giufa, e antes outro rosto jovem de moral torta e duvidosa... Sim, a Esperteza viajou terras, serras, montanhas, estradas, estrelas, e não é um invenção portuguesa, mas um traço de luta, alegria, sátira e revolta, às vezes, contra os grandes do mundo, contra este ou aquele que oprimia os simples dos povoados, contra quem deveria ter telhado de vidro e caía, sim, numa esparrela à toa.

E são bem histórias assim que compõem o pequeno DEZ CONTOS DO ALÉM-MAR, livro organizado por Ana Carolina Carvalho, com ilustrações de Taisa Borges (Peirópolis, 2010), a partir do acervo registrado pelos folcloristas Adolfo Coelho e Teófilo Braga, no finalzinho do XIX.


Acasos permitem o faminto João Ratão descobrir os “fiéis” criados que haviam roubado o rei, mas ele não fica sem beber, sem saber, um copo cheio de mijo de porca... De adivinhas capciosas, escapam Frei João sem Cuidados e um moleiro disfarçado de frade, diante de um rei que não era cego, mas não tinha olhos para ver, pensando que tudo sabia! Espertas também andam as velhas, TRÊS FIANDEIRAS que fiam a felicidade da moça que só quer casar-se bem... E, naquela terra que inventou de ser a última flor do Lácio, não há jovem coitadinha que não consiga ir ao baile, com vestidos azul e cinzento, azul e prateado, azul e dourado, tal é a Linda Flor que vai colocar o rei de quatro. E tem mais tolices, jogos, desencontros, vento a favor, sopa de pedra, raposinha gaiteira e quem mais consiga mandar pais e irmãos ao palácio para dar-lhes os mais altos cargos...


Ora, histórias! Para dar conta dos nossos danos morais, estas narrativas transmitem vivamente ainda uma noção que permitiu ao espírito coletivo perdoar sempre, sempre a ausência de escrúpulos por um pouco de troça. Ou não. Esta é só uma chave. De interpretação.

Mas, talvez o último conto da coletânea traga uma advertência sincera, daquelas terras, onde o rei não andava nu... era só uma vez o seu filho nascido e fadado a ter orelhas de burro! Soube disso o barbeiro nas horas quantas de fazer a barba do menino. E foi o homem ao padre: “Eu tenho um segredo que me mandaram guardar, mas eu se não o digo a alguém morro, e se o digo o rei manda-me matar.” Pois vai ele cavar um buraco para esgotar o que sabia falando lá dentro – mas, passa o tempo, crescendo o verde verde de uma nova plantação e, um dia, a Verdade subiriam no sopro das gaitas que deram voz ao canavial.


Agora, vocês, que assobiem e pensem: quem deu pra inventar, lá longe, onde começa a ponta do mar... Adivinhou, adivinhão?

21 de junho de 2012

o mais poderoso para a mais bela

Temporada de contos e recontos, 3
por Peter O'Sagae 

Quem são os leitores das narrativas tradicionais, hoje, senão os narradores de amanhã? É essa pergunta que me voa pelos olhos, diante da capa do livro O NOIVO DA RATINHA, da escritora e ilustradora Lúcia Hiratsuka (Larousse, 2011). Veja bem, com que interesse o par de corvos observa o título e os personagens?


O compromisso palavra&imagem se constrói, desde já, por uma série de indicações da própria ilustração, com que a autora não só desenha e mostra diretamente uma cena, mas flagra a cena sendo vista por outros olhares. Com isso, denota um percurso que integra os elementos visuais e verbais, fortemente conotando significados e sugestões que não se põem a caminho apenas em uma ou outra linguagem, mas resulta de um efeito intercódigos.


Na dupla-página 4 e 5, a narração é assim aberta: “Era uma vez, no Japão... Numa certa aldeia, num certo telhado de uma casa, uma família de ratinhos.” A ilustração descortina quatro pares de asas e olhos em torno do telhado rústico de uma antiga casa japonesa, voando e pousando no galho de uma árvore. Há uma atitude metalinguística de aproximação com a história, o leitor aí inscrito na obra com seus bicos cor de laranja – e não é nada para estranhar a comparação com os corvos e sua voz portadora de notícias, tal como falam ou crocitam os leitores.

E o que veem os corvos? A silhueta da família, a filha, orelha de rata, em atitude de exibir-se vestindo quimono, leque na mão, a mais bela para os olhos dos pais. Porque é este o motivo inicial de uma fábula de longa tradição oriental e que, no Japão, dará ensejo para todos buscarem o noivo mais poderoso do mundo para a filha. Vão ao Sol, ao senhor Nuvem, ao Vento e ao Muro para descobrirem que o pretendido genro para pais tão orgulhosos era mesmo um rato do telhado vizinho... Que rata!


A velha fábula havia sido objeto de reconto por Lúcia Hiratsuka, em 1993, com o título O CASAMENTO DA RATINHA, e agora retorna às estantes de livros com texto novo e novas ilustrações com pinceladas rápidas, bem marcadas, em aquarela, e grafite; o resultado é bastante plástico e leve.


Em outros países do Oriente, a história tornou-se bem conhecida com detalhes que apontam figuras e valores ora universais, ora locais. No Panchatantra, conta-se que uma ratinha caiu, do bico de um falcão, às mãos de um sábio religioso e que, graças às suas orações, consegue transformar o pequeno animal em uma menina; passados anos, após a busca de um noivo para a filha adotiva, ela pede para retomar a forma original. Na Índia, pois, a fábula diz que nem mesmo o poder do homem mais santo é suficiente para alterar a destinação de cada criatura ou que ninguém escapa à sua própria natureza... Na China, o pai não aceita nenhum dos muitos pretendentes à filha, a seu ver, incapazes de enfrentar a fúria dos gatos e assegurar uma vida segura à vila dos ratos. E há uma lengalenga romena sobre um rato muito gordo que deseja uma entrevista com Deus; em seu caminho, é desprezado pelo sol, pelas nuvens, até que o vento o arremessa de volta ao velho paiol de onde saiu... Temporada de contos e recontos (de fábulas também), ah, como gostamos de tagarelar leituras ;-)

19 de junho de 2012

o enigma rapunzel

Temporada de contos e recontos, 2


Há muitos anos, interesso-me pela história da jovem presa no alto da torre, vendo aí uma imagem axial céu-terra que constitui o centro da narrativa, entorno do qual gira o velho refrão: Rapunzel, Rapunzel, jogue-me suas tranças! Contudo, a história da moça de longas madeixas não parece ser das mais populares entre crianças ou mesmo especialistas de literatura infantil. Por quê?


Lembrando as lições de Propp a respeito do conto maravilhoso, conto de fadas ou conto de encantamento, talvez “Rapunzel” não seja exatamente um conto, uma vez que, nele, não se encontram os objetos mágicos com a função de ajudarem a personagem a vencer obstáculos e inimigos em seu caminho.

Na versão dos Grimm, de 1812, a jovem e o príncipe certamente sofrem influência da velha má, ou Senhora Gothel, mas não a vemos usar qualquer forma de magia contra os protagonistas: ela usa apenas a força, cortando os cabelos de Rapunzel e arremessando o rapaz contra os espinheiros ao pé da torre; ela também não é morta ou destruída... e sua permanência, após o final feliz, provoca grande inquietação. Os encontros amorosos sob o manto prodigioso da noite não se escondem sob a superfície do texto e o príncipe, ainda que vagando anos e anos, às cegas, encontrará a amada na companhia dos filhos gêmeos que deixou em seu ventre: um menino e uma menina. Vertidas dos olhos dela aos olhos dele, duas lágrimas recuperam milagrosamente a visão do moço, o caminho para o castelo e a possibilidade de viverem juntos para sempre.

 Aventurando-nos rumo ao passado, em 1634, no livro de Basille, encontraremos um conto napolitano chamado “Petrosinella” que apresenta toda sequência desde o nascimento da menina até a prisão na torre, mas termina de um modo bem diferente: com a perseguição mágica de uma ogra feiticeira aos dois apaixonados. Por sua vez, outro conto da mesma coletânea, “Tália, Sol e Lua”, anterior à versão francesa de A BELA ADORMECIDA, traz elementos que ressurgem na Rapunzel alemã, como o isolamento nupcial na floresta e as duas crianças que, no deserto, nascem. São figuras que pertencem a um arquivo cosmogônico da memória humana, falando-nos da Ordem, a divisão do tempo, em um território iluminado pela alternância do Sol e da Lua, em volta do eixo amoroso que uniu a donzela e o príncipe. De fato, o nascimento do menino e da menina, em pleno deserto, simboliza e promete continuidade ao tema do casal céu-terra e dos ciclos da natureza exuberante...


De outra parte, sem lenda, sem tanto mito, ou medo de arriscar-se na noite das narrativas, Rapunzel é um texto, ainda hoje, sem fortes marcas de fixação artística. Tudo no conto me obriga a pensar em reminiscências, às quais ainda faltam uma forma e sequência conclusiva. Os motivos flutuam, o que muito favorece o exercício do reconto – como no livro de Sarah Gibb, RAPUNZEL, a partir da versão dos Grimm, texto de Alison Sage e tradução de Fabiana Medina (Caramelo, 2010).


As imagens de Sarah Gibb, realizadas em computador, resgatam a linguagem dos velhos livros ilustrados de contos, revelando transparências e silhuetas que evocam as projeções da lanterna mágica e do tradicional teatro de sombras, tão rico em detalhes caros a Arthur Rackham. Objetos e móveis dos cenários, árvores e animais da floresta, até mesmo o corpo dos personagens repetem-se em diferentes combinações, sugerindo a possibilidade do movimento ao olhar. Sem deserto ou crianças antes do casamento, vem delicado e elegante o texto. “Quanto à bruxa, ela continuou amarga e maldosa e só lhe restou se esconder num assombroso castelo e nunca mais sair de lá.”