28 de novembro de 2013

um canto de liberdade

peter ô.ô sagae


Berna, Zurique, Paris, qualquer capital ou outro grande centro urbano do velho mundo decifrado por pontes, no alinhavo generoso de um rio, pode ter sido o ninho de inspiração para o ilustrador suíço Patrick Lenz, autor de TOM E O PÁSSARO (Biruta, 2009), um livro de imagem narrativo extraordinário em detalhes e, ao mesmo tempo, muito simples na expressão com que abraça, leva e eleva os leitores.

Fazendo a vez de páginas de guarda, a imagem aérea de uma cidade sob as nuvens, indica um ponto de vista livre do narrador e o interesse dele por conduzir o leitor a uma feira a céu aberto, vivamente organizada. Lá, a câmera da ilustração procura o personagem, entre as pessoas, ambulantes, bicicletas, barracas de frutas, verduras, legumes, posicionando-se na altura exata de um menino. Tom é visto de costas, de mãos dadas a um senhor. Ambos caminham devagar e a aproximação é discreta. O menino veste calças claras e jaquetão roxo. Quando vira o rosto, nossos olhos encontram o perfil miúdo e delicado do menino.

O que é aparentemente apenas uma história em quadrinhos, revela a sutileza da linguagem cinematográfica na dinâmica dos recortes e movimentos. Então, súbito,


quando o menino congela os passos, a respiração suspensa – todos os ruídos de cena, ruídos sonoros e visuais à volta, desaparecem e o quadro é só amarelo. Carregado de subjetividade e iluminação, o leitor se vê, como o personagem, diante de uma árvore de pássaros exóticos – e Tom descobre o pássaro em uma gaiola, nem grande, nem muito pequena, à frente de seus olhos...


Patrick Lenz conta sua história de amizade e cativeiro. Em um mundo totalmente em desordem como é o quarto de um menino, o pássaro vem trazer a companhia muda e franca, até que um canto comovente entoa a amplidão dos caminhos semeados pelo vento. E o cantar do pássaro transforma-se em um contar por imagens. Tom entende imediatamente a narrativa...

e chora. É triste a hora, instante do desapego.

O que acontece depois é um ato de liberdade para o leitor interpretar a história, interpretando seus próprios sentimentos que completam a sequência das imagens. Há um limite do texto, como também há um limite das emoções que cada criança, ou jovem, consegue transpor de si ao personagem, olhando-o intimamente e sem medo para sonhar, ou sofrer, e voar, e viver.

eu, confesso


Há menos de uma semana, aceitei a empreitada da editora Eliana Gagliotti para escrever quatro textos curtos para apresentação dos contos de Edgar Allan Poe adaptados para história em quadrinhos (DCL). Apenas não imaginava a aventura que isso ia dar...

Poe é daqueles escritores que muitos já ouviram falar, conhecem por citações, mas poucos se detiveram em seus textos. Comigo assim tem acontecido, sem me livrar de um livro ou jamais ter concluído a leitura do volume CONTOS DE TERROR, MISTÉRIO E DE MORTE, trad. Oscar Mendes, que carrego há anos. Eu, confesso. Sempre fui um leitor relapso com Edgar Allan Poe. 

Mas é preciso me desculpar: algo se fixou tão presentemente à minha imaginação para sentir aquele estranho fascínio de felicidade, a partir de uma cena do filme A queda da casa de Usher que minha mãe narrou durante um almoço: deveria ter uns oito anos e mentalmente vi muito bem toda a cena em branco e preto... Já nos dias de colegial, ouvi os comentários de Yolanda Matsuda sobre a composição do nome familiar US-SHE-HE-HER e reconheceria, anos mais tarde, as análises de Décio Pignatari, sim, o professor da professora. Persistentemente, o minimalismo e as imagens outonais sobre THE FALL OF THE HOUSE OF USHER me ajudaram a povoar o silêncio com a ópera de Philip Glass. E, claro, li o conto em língua portuguesa e no original em inglês, entre bem poucas outras histórias. Ainda não encontrei, oh Lady Madeline, o filme que minha mãe me contava.

Há, no entanto, algo crível em escrever a respeito de Edgar Allan Poe, procurando os contos ainda não lidos, em minha biblioteca, e procurando retratos de Edgar em daguerreótipos e procurando, enfim, as formas como o autor tem sido visto em diferentes, mas não tão diferentes, biografias! Poe nasceu em 19 de janeiro de 1809. Poe morreu em 07 de outubro de 1849, cento e vinte anos antes de eu nascer, nesse mesmo dia! A coincidência me deu medo? Não. Provocou mesmo o entusiasmo para procurar outras coincidências – e, obviamente, haveria de encontrá-las para criar um ambiente de tardia intimidade com ele (Who the hell is Edgar?).

Busquei também os ensaios críticos de Edgar Allan Poe. Escrevi os textos encomendados – e não sei se a editora virá aceitar o jogo em primeira pessoa, como faria o escritor, confundindo o homem com o personagem narrativo. Em dois dias, arrisquei traduzir um de seus poemas e, na contramão dos juízos comuns, descubro que Allan Poe trabalhou bem mais com cores e luzes do que pressupõe o consumo midiático. Talvez eu tenha aí encontrado um novo caso de admiração possessiva. Eu, confesso. PETER O.SAGAE

* * * 

Retrato de Edgar Allan Poe, quando jovem, em uma rara ambientação romântica; trata-se de uma miniatura pintada em aquarela por John A. McDougall, ca. 1846 (The Huntington Library).

26 de novembro de 2013

como podem ser libertárias

O’ABRE ASPAS: um estudo e outros segredos


“O livro de imagem consiste num gênero literário comumente apontado
como livro para crianças que ainda não sabem ler, já que sua narrativa é eminentemente visual. No entanto, ao explorarmos as publicações do gênero, constatamos que existem diferentes 'graus' de complexidade narrativa.
Existem livros de imagem com enredos visuais simples, como também existem livros de imagem com narrativas visuais complexas [...] A criação de imagens
em sequência narrativa exige do artista uma preparação que transpõe o domínio da técnica. Para compor imagens com valor estético, os artistas necessitam de
um conjunto de habilidades inerentes ao trabalho artístico, somado às intenções educativas que permeiam esta modalidade de produção, quando pensadas para
o público infantil e juvenil. As imagens podem reforçar ideias estereotipadas
e preconceituosas, como podem ser libertárias, ampliando e reelaborando
a tolerância em relação ao outro, ao diferente.” (Hanna Araújo & L.H. Reily) Livro de imagem: três artistas narram seus processos de criação de narrativas visuais, Unicamp, 2010.


P.S. P.O’S. em frente a uma parede azul, no dia 28 de outubro de 2013. Depois
disso, disse, mergulhou na leitura de novas referências e olhares sobre o livro
de imagem. Escreveu também um estudo, mas deixou parágrafos espalhados
sobre o chão quando saiu para buscar um título. O investigador da polícia decidiu
publicar as pistas encontradas, enquanto observa detidamente o local.

24 de novembro de 2013

e para quê são esses olhos?

peter ô.ô sagae


Ao olharmos para as três figuras na capa do livro DO OUTRO LADO DA RUA, de Cris Eich (Positivo, 2011), o título já se transforma em uma pergunta: o que há, do outro lado da rua, para provocar tanto medo e espanto? Na página de rosto, surge uma peteca colorida... de onde ela vem? Desde o outro lado da rua? E o que haveria de extraordinário nisso? E olhando a silhueta das crianças, na ilustração ao pé da dedicatória, quais hipóteses o pequeno leitor pode fazer a respeito da história que virá desenrolar a partir do quadro da página quatro?


Uma menina de cabelos ruivos e dois meninos estão sentados na escada da porta de entrada, segurando o queixo a ver bulhufas, como se diz, vendo uma tarde inteira andar devagar, devagar sem nada para fazer. Tédio! O que eles não sabem é que são vistos por uma sombra, à janela de uma casa... do outro lado da rua! Essa presença misteriosa é revelada lentamente em três quadros que promovem a aproximação, um traveling in, na linguagem de cinema – e podemos adivinhar qual será o papel da velha no decorrer da trama? Ela mora na casa de muro alto com um pesado portão de ferro. Olhar sorrateiro... hum?

Cris Eich instala um ambiente de desconfiança neste livro de imagem narrativo, bastante descritivo, enquanto entretém os leitores com o cenário de antigas casas e o que a criançada fazia para se distrair pelas ruas das pequenas cidades.


Pulando, girando, quicando, rodando, voando, ora a peteca, ora a bola, passa por cima do muro e vai cair no quintal da misteriosa senhora, e ela – sempre à janela... As cores fortes da aquarela temperam o humor dos personagens e também vai marcando a passagem do tempo. Mas... Quando se vê, já é noite!


O conflito estabelecido de maneira gradativa, ao longo de toda uma tarde, é exposto na visão da página trinta e tem lugar, então, a peripécia: os meninos decidem agir e resgatar os brinquedos do quintal da misteriosa vizinha, em meio às sombras assustadoras das árvores... Aí sim, o pequeno leitor entra no suspense: o que vai acontecer se os três forem pegos?

21 de novembro de 2013

Gavota e acompanhamento de imagem

Galanterias com Angela Lago – Última Parte
por Peter O’Sagae


Entre o violoncelo e o livro de imagem, entre o mestre alemão e a autora mineira, o pensamento cavalga elegantemente por épocas e signos e inspirações distantes: um espelhismo do barroco, entre a música e a literatura, nas gavotas que percorrem a Suíte N.6 de Johann Sebastian Bach e a dança que serpenteia O CÂNTICO DOS CÂNTICOS, de Angela Lago (Paulinas, 1992; Cosac Naify, 2013).


Volto recentemente da admiração silenciosa aonde os cânticos sempre me levaram, volto com o gesto de um galanteio tímido. Volto de tramar um estudo* para aclarar e acalmar, em mim, as questões de leitura do livro de imagem, questões que sempre voltam. E volto a ouvir a voz da autora a voar
“que se permita o devaneio poético.”

Volto de escrever que 
Existe um livro de imagem descritivo de qualidade poética, representado por uma única obra que dialoga com toda uma tradição de textos do passado e do futuro, mil e uma histórias, mil e uma possibilidades de leitura que se desdobram nas volutas e arabescos das folhas, nas rosas e nos espinhos do tempo presente nas molduras página a página. Ver, ler e lembrar são três experiências que se igualam no mergulho através de O Cântico dos Cânticos, por Angela Lago (1992), e das imagens que encenam o encontro-desencontro de um jovem casal. Do encantamento dos textos bíblicos ao desvelamento do amor adormecido de Eros e Psiquê, em Fernando Pessoa (1934), o livro assemelha-se na forma e no conteúdo a um labirinto de lembranças e evocações que aproximam o leitor das qualidades do sentimento poético e o envolvem. 
Especialistas da literatura para crianças e jovens têm apontado a importante materialidade do objeto-livro para a descoberta e reinvenção de seus significados. Ora, o projeto gráfico e as marcas nele impressos induzem à percepção da proposta circular da leitura que vai e volta sobre as mesmas páginas, sem começo ou fim. É realmente um livro de imagem de qualidades desafiadoras e poéticas que... contém outra figura de construção ainda mais poderosa que traduz o movimento de busca da moça pelo jovem e dele para ela, atravessando páginas de beleza, xadrez e ruelas: é o quiasmo, ou cruzamento na visão dos caminhos que se unem e separam-se no centro espiritual da obra. 

Angela nos ensinou a contemplação, a visita às perspectivas de Escher e aos versos do rei Salomão que espio, no exercício intertextual, ao nome de uma rosa. “Era, tento agora entender, como se todo o universo mundo, que claramente é como que um livro escrito pelo dedo de Deus, em que cada coisa nos fala da imensa bondade de seu criador, em que cada criatura é como escritura e espelho da vida e da morte, em que a mais humilde rosa se faz glosa de nosso caminho terreno, tudo em suma, de outra coisa não falava a não ser do rosto que a custo entrevira nas sombras odorosas...”

Enfim, permitida a crença de tudo o que evola mergulha, volto às criações de Angela Lago que vieram depois, tão depois dos cânticos: e encontro as dobras de uma leitura intratextual pelo conjunto de sua obra, pelos compassos em Psiquê e Rilke à passagem pelos mesmos temas e temperamentos: em um só encanto, eterno canto. Exultemos! Ao primeiro passo, prelúdio...

18 de novembro de 2013

Bourrée a três

Galanterias com Angela Lago – Segunda Parte
por Peter O’Sagae

Eu começo, não termino.
A impossibilidade da tradução e as outras possibilidades, entre um mestre alemão e a autora mineira, inclui-se um poeta, entre a música da poesia e o ritmo da ilustração, inclui-se a imagem no idioma estrangeiro: vamos à transposição para viola das bourrées da Suíte N.3 de Bach, e aos ESBOÇOS E FRAGMENTOS de Rainer Maria Rilke, na seleção de Angela Lago (Scipione, 2012).


Dois tempos engendram o terceiro: e que estranha atividade é essa da leitura que entre um objeto amável e a declaração da posse, impõem-se um pensamento, um sentir ou uma viagem, vertigem, voragem? Angela leu os versos de Rilke sulcados na língua francesa, com os sentimentos obsessivos de um romântico tardio mergulhado em canções tantas de um envolvimento devocional à existência e as coisas que tocam seus dedos, o olfato, sua pele, a visão, sua alma atravessando o corpo. Rainer Maria Rilke era um poeta e novelista de expressão alemã e por quê, então, como, quando começou a embrenhar-se nos acessos dessa outra língua?
O que ela lhe sussurra?

Angela traduziu esta invisível mudança que nos faz estremecer: as qualidades que habitam fora da palavra e das idades: sons e sugestões que percorrem o fragmento de um texto: que sonha ser todo o inteiro: um esboço, um minuto, um amor ligeiro, um anjo adolescente: entre a criança e a mulher, a adolescente Angela: a experimentar-se outra, estranha, estrangeira: e tudo que ainda possa acontecer: o ritmo de um gesto: uma síncope: um sossego: uma hesitação entre esses textos que usam a variação como o tema principal de um encontro... ó coração que se entrega a sorrir na brandura das palavras que se fazem, desfazem em muitas feições: traduções, traduções de algo a

Compor e recompor
de tanto modo diverso,
mas como alcançar o verso
que se iguala a uma flor?

Suportamos a estranha
pretensão da artimanha:
ah, talvez um anjo, breve,
sopre o arranjo de leve.


Não sou apenas um leitor,
eu sou o leito. O intérprete. Da artimanha que não cabe no verbo, um lago de mapas, ranhuras, vestígios, simetrias que se quebram discretamente em cada imagem. Porque inquietas são. Onde o teto, o chão, a parede que sustenta o sonâmbulo? E os desenhos, assumindo qualidade e forma de mandalas, dizem dos momentos em que foram possíveis um espelho, uma perda, um acréscimo, uma inversão, um deslocamento à esquerda, um direito à infidelidade. Assim mesmo é, estranho o tempo: daqui a pouco serão outros a passar. Leitores.


Ao desejo dos significados
que se aproximam (semioticamente) nos afastamos da utopia sobre as coisas originais. Sem símbolos (perfeitos), sem índices (corretos), sem ícones (fixos), só logramos saber que algo na realidade se move (irregular/mente) no extenso contínuo das mediações: das impressões sobre o pensamento do poeta, à busca da sintaxe exata e o léxico de seus sentimentos, a descoberta como ser jovem, e uma leitura transpondo e ferindo imagens na mente e na emoção de alguém, um segundo, e um segundo momento para respirar, para viver novas palavras depois e depois olhar o mundo a fim de fazê-lo permanecer... feliz...
feliz, por um intenso segundo...
um cálice de ilustrações...
um poema, dois poemas...
uma noite plena de reticências...
E eu, tu, ela, eu termino no começo.
esboços e fragmentos
 

15 de novembro de 2013

Minuetos a passos rápidos da alma

Galanterias com Angela Lago – Primeira Parte
por Peter O’Sagae


Sempre há uma possibilidade de comparação entre a música e a literatura, entre um mestre alemão e a autora mineira, entre o violoncelo e os livros ilustrados:
ao Sol Maior dos minuetos da Suíte N.1 de Bach, redescobriremos, então, uma princesa tão linda, que é impossível pintar ou descrever, como narra Angela Lago diante o abismo estrelado de sua PSIQUÊ (Cosac Naify, 2009).


Resgatando o mito formador de todos os contos amorosos do ciclo do noivo invisível ou monstruoso, Angela Lago permite um retorno ao prelúdio dos tempos, à terra de sombras e primeiras imagens. Não é à toa o formato cinematográfico do livro, expondo, platonicamente, as personagens que passam diante dos olhos acorrentados do leitor incauto e cego pela velocidade atual. Angela pede calma, elegância e delicadeza: um volteio por certas palavras que vieram de longe e ela escolheu para celebrar a dança de muitas histórias a passos miúdos... Está lançado o feitiço de seu minueto, na figura da princesa que solitariamente começa alongar-se e girar com se fosse repentinamente cair do chão para o alto céu triste, risonho.

Mas, ao virar de uma página, um vento carrega Psiquê


para um castelo no interior de uma floresta que ilumina e esconde olhos, simetrias e sonhos nas asas de uma borboleta. É preciso segui-la como fizeram tantas outras crianças e princesas afundando no próprio destino... Neste embrião de imagens e literatura, os troncos repetidos das árvores recortam corações e memórias, um violoncelo adormecido em um canto qualquer e mais e mais labirintos que não dizem por onde o amado chegou.

A cama do casal é um oceano na noite escura.
Símbolos que não cansam de correr rente ao olhar do leitor.
Como a bela princesa do reconto, necessitamos de uma lamparina e um punhal para tentar vencer o chamamento da fera. Ou resistir. Ah! Deslumbramento! Uma gota de devaneio se derrama aqui e ali, tão logo qualquer acidente faz tremer a visão e o pensamento, e se sabe que toda aparência aí é enganosa. O minueto alegre transforma-se em um sentimento imenso de angústia.


Ora, tal qual Psiquê, o leitor poderá vagar pela desolação de outros textos. Desventura, desaforo, dias afora, o que se assemelha à vida é desejo de morte. Era uma vez Eros... E trabalho de formiga é inventar uma trilha e separar milhares de grãos. Posso falar de histórias e outras ilustrações tantas, enquanto a autora requisita mesmo um novelo de fios de ouro de ovelhas ferozes, um vaso de água do mais profundo despenhadeiro. Ora, tal qual o leitor, Psiquê busca a beleza intacta guardada no inferno, ou seja, no seu e nosso mundo interior.


Bravamente,
atravessamos o umbral de um lugar não sei onde, indo buscar talvez na alma um quê de presente e esperança: talvez onde as nuvens do céu tocam a terra.

2 de novembro de 2013

era uma vez outras vozes

Peter O’Sagae

Nenhum texto vem ao mundo estranhamente só. Acompanha-o,
em sua ventura, outros tantos textos em um rumoroso movimento
por trás das palavras a enfrentar. Não, por vezes, causariam mais impressão
que um cicio quase silencioso, vento, ou fazendo-se ouvir carinhosamente
como um afago parente... Transparente, o coração borda imagens e pensamentos
naquelas lembranças que não gostaria de sentir, mas quer. Sentir.
Porque precisos são os duelos da vida, obedecendo a uma causa maior...

“Era uma vez um herói e esse herói era meu pai.”
Qual vento que imita a voz de todos, dos contos maravilhosos
ao depoimento pessoal, o narrador funda-se aí juntamente
a outros narradores, distantes, a um personagem em primeira pessoa,
ao possível autor do texto, ao leitor que aceita a palavra do outro
a representar sua própria voz, advogado seu.
Que venha defendê-lo dos duelos da vida...

Rosa, minha amada irmã, Rosa Amanda Strausz
traçou com as imagens de Rui de Oliveira as linhas do grande combate e
da morte iminente de um herói sob os olhos guerreiros de seu filho.
As circunstâncias móveis do narrador, menino, revelam
a dimensão mágica e épica do pai capaz de lutar sozinho contra mil inimigos,
qual cavaleiro de pesadas armas leves na vitória dos tempos passados.
Mas outra batalha diariamente acontecia e minava as forças e formas robustas,
dentro do homem, entre exércitos invisíveis de vírus e anticorpos...

É bonito o cenário que a imaginação evoca a fim de transpor
os sentimentos aos lugares onde se tornaram verdadeiramente invencíveis.
Do quarto à sala de um pequeno apartamento, o mundo alarga-se
por encontrar janelas de compreensão sobre o sentido de viver,
de encontrar o pai e o filho no conviver e compartilhar, reviver e não se revoltar.
“Quando morremos, nosso corpo se desfaz
e se mistura aos outros elementos da vida...”


Nos minutos que não deixam de cavalgar
a favor da aventura derradeira, o conceito de imóvel diz menos respeito
aos pés e braços, à cabeça, lábios e olhos, ao corpo inerte, um dia.
Imóvel é o que não pode ser movido por coisa outra nenhuma,
nenhum outro, sentimento, ser, substância, o Amor
que não se fará diferente além do tempo, porque, a ele,
sentimento revestido de eternidade, o tempo não existe...


Um canto: histórias se inventam no contraponto às vezes, aristotélico, apostólico, por que não, nas mensagens que transformam O HERÓI IMÓVEL (Rovelle, 2011). Os textos sempre vêm e se veem, a cada leitor, na discreta escuta da trajetória palavra e imagem.