30 de julho de 2015

rabanete ou beterraba?

peter-o.o-sagae


O rabanete picante, a beterraba docinha, e um antigo conto rítmico – acredito que você já o conheça, basta uma imagem só


para lembrar desta lengalenga de origem eslava que foi plantada por todo imaginário europeu e se espalhou pelo mundo como todas as histórias – através da voz, dos livros, da escola para crianças, do rádio, dos desenhos animados...


A ordem de entrada e também o número de personagens podem variar ao infinito, como em uma brincadeira, por tratar-se de um conto acumulativo ou história de nunca-acabar. Vai depender do seu fôlego! No entanto, foi Aleksey Tolstói, um parente de um ramo distante de Liev ou Leon Tolstói, quem deu uma feição sonora bastante divertida, ao escrever uma versão a respeito de um nabo gigante que cresceu no quintal do vovô. No texto russo, repka (nabo) vai rimando com dedka (avô) e babka (avó), e todas as demais palavras no feminino: vnuchka (neta), zhuchka (cadelinha), koshka (gata) e myshka (ratinha).


Como sempre acontece nos contos populares, a história do puxa-que-puxa-o-rabanete-ou-a-beterraba-para-fora-da-terra termina com uma deliciosa moral ou risonha ironia. No reconto de Tatiana Belinky, O GRANDE RABANETE, ilustrado primeiramente por Leninha Lacerda (Moderna, 1990) e depois Caulus (2.ed. 1999), é a menor das criaturas – um rato – que chega, sente que fez diferença e canta a vitória, eu sou o mais forte! No livro de imagem de Anna Göbel, UM+UM+UM+TODOS (Autêntica, 2013), quase toda sequência de cenas vem apresentada em quadrinhos e o título dá pistas da lição final – rabanete ou beterraba, pouco importa: vale trabalharmos todos juntos, vale brindarmos todos juntos, porque a união... faz a força!


28 de julho de 2015

voltas e revoltas

Dobras da Leitura, 47*


Nem sempre voltar para casa, depois de seis meses no hospital, é a melhor coisa da vida — ainda mais sabendo o que você já sabe e precisará enfrentar: os vizinhos, os parentes, os amigos dos amigos de seus pais e da escola também. Sim, os olhares curiosos, silenciosos e falantes! Seria ótimo evitar as visitas, seria ótimo evitar qualquer forma de exposição... Será mesmo que ninguém percebe, você não é mais a menina que costumava ser? Não, por fora — shit, shit, shit! Todos apenas olham a careca, mas não enxergam a diferença que vem por dentro.

Voltar para casa dói... Papai parece não entender que o carro deve ir mais depressa, pois Marina não ’tava com a mínima vontade de olhar a rua em câmara lenta, muito menos ver Sanya e Ivana brincando na praça – e ser vista igualmente por elas. Mamãe também jamais entende que seria melhor parar de andar pela casa com seus agasalhos ridículos e queimá-los urgentemente, porque isso não a deixa mais nova, e não entende nem uma palavra quando ouve Marina dizer: “Se você continuar babando em mim, vou acabar vomitando. Ou desmaiando. Ou as duas coisas ao mesmo tempo! E não me chame de ‘alminha’. É como se eu fosse um fantasma. Porque, como você pode ver, ainda estou viva!” E Darko... Darko precisa... Darko não precisava nem mesmo ter nascido para se achar o cara mais inteligente do mundo. Decididamente, Marina sente que não precisava voltar para casa.

Realmente, toda a família Bakaritch passa a viver em estado de alerta. A novela Pula-elástico, do croata Zoran Pongrašic, escrita em 2001 e que chegou a nós através do texto em francês, com tradução de Heitor Ferraz Mello (Edições SM, 2006), evidencia uma série literária que se descortina por temas delicados, situações-limites, textos fortes — e uma aposta na virtude curativa das palavras.

Depois do tratamento contra a leucemia e a experiência de pressentir a morte todos os dias, observando as camas da enfermaria amanhecerem com novos rostos ou simplesmente vazias, Marina está de volta à casa. Talvez Gvozden e Lyerka, seus pais, não consigam ainda pensar quanto a nova lição que se apresenta seja bastante simples, porque é preciso dar um passo adiante após a doença e ir à vida... Quais os desejos de uma menina de doze anos?

Marina naufraga, simplesmente naufraga sem uma imagem em que possa reconhecer-se diante do espelho e diante dos outros. Este é o verdadeiro centro dramático do texto, dividido em sete capítulos como são sete as etapas do jogo de pula-elástico: canelas, joelhos, quadris, cintura, costelas, axilas e céu. «É comovente, em Pula-elástico, a obstinação amorosa com que os pais evitam abordar o medo da morte com sua filha caçula.», escreve Maria Rita Kehl, no posfácio ao livro. «Mas, ao escolher conduzir sua novela a partir do ponto de vista de uma pré-adolescente furiosa com a inabilidade dos pais, Zoran Pongrašic desliza agilmente do comovente ao cômico.»

Assim, antes de oferecer um texto pesado pelo assunto de que trata, o autor estabelece uma narrativa que flui através de bons diálogos e mudanças precisas quanto à voz que domina o discurso. Ora é Marina, abrindo registros de seus sentimentos no diário, ora um narrador intruso capaz de assimilar a fúria e a ironia tão próprias da personagem.
Ela tinha a impressão de estar sentada numa sala de teatro cujas cortinas esqueceram de levantar e onde o espetáculo já havia começado. Dito de outra maneira, sentada no seu lugar, ela olhava para a porta do banheiro e escutava as vozes do outro lado.

TIO MITCHO: Gvosden, ainda tem ameixa?
BOYANA: Onde tá a Malina?
TIA ROUJA: Mitcho, deixe-os em paz.
BOYANA: Onde tá a Malina?
TIO MITCHO: Estou atrapalhando? O que você acha, Lyerka?
BOYANA: Onde tá a Malina?
MAMÃE: Não, não, jamais! Claro que você não está atrapalhando ninguém!
PAPAI: Imagina.
DARKO: Prefiro não dizer o que penso.
BOYANA: Onde tá a Malina?
TIO MITCHO: Mas, realmente, onde ela está?
DARKO: E se você tentar adivinhar?
(Pausa prolongada)
* Texto apresentado no site Dobras da Leitura, Ano VII n. 43 (março de 2007). Pertencem também à coleção “Estado de Alerta”, os títulos Se até as árvores morrem, de Jeanne Benameur, As duas mães de Mila, de Clara Vidal, e O desafio, de Marie Leymarie.

24 de julho de 2015

pois ninguém está só

Quando o carteiro chegou... 9


É o texto que me leva à leitura. Texto, digo e repito, palavra e imagem. Palavra e imagem que nem sempre necessitam ser ilustradas, salientes. O silêncio e o vazio falam à criança e ao jovem leitor. A ausência também, também o mistério. E quanto mais forte e leve for o texto, mais longe vou... E não posso deixar de assinalar que, cuidadoso, o trabalho com a linguagem de Fábio Monteiro tem se revelado aberto para a leitura em voz alta.

Do começo ao fim, leio e ouço CARTAS A POVOS DISTANTES.
Experimente um parágrafo da página 32:
Todos os dias verificava se havia alguma correspondência na caixa do correio. Cada vez que a abria e nada encontrava, a angústia da espera aumentava. Naquele tempo, os minutos, horas, dias eram mais longos que hoje. As distâncias também. O mundo era grande e muito diferente do que imaginamos hoje. Mal conhecíamos o lugar em que morávamos. As cartas levavam dias para chegar a seu destino. Claro que isso tinha certo charme – entre a espera e a chegada, criava-se um misto de ansiedade e alegria em receber notícias das “gentes” de longe.

Em seu livro, Fábio Monteiro conta a história de Giramundo, um menino que inventa línguas e lugares, mas inesperadamente passa a receber mensagens de um remetente desconhecido, de um país que ele apenas sabia ficar do outro lado do oceano... São cartas que vêm de Angola, de um amigo de Luanda. Na correspondência feita de papel e coincidências, os dois meninos começam a descobrir um ao outro através da palavra escrita e do espanto... A trama passeia entre discursos, do mundo comentado ao mundo narrado, do exercício epistolar a uma amizade sem fronteiras, traço da própria identidade, rumores do tempo a que pertencemos. Um Giramundo de cá, um amigo de lá. Como construir pontes de solidariedade e conhecimento?


Entre perguntas e respostas, o silêncio tudo amarra. Cada um dos personagens (e também o leitor) descobre que não está só. A correspondência entre os dois meninos, de um modo bastante significativo, atravessa de novembro de 1985 a março de 1986. Apesar de 10 anos independente da colonização portuguesa, Luanda aguardava ainda a retirada das forças estrangeiras em um cenário movimentado por uma guerra civil que duraria quase três décadas. No intervalo criado pela narrativa de Giramundo e seu amigo distante, o momento histórico talvez seja uma sombra desconhecida e tênue que vai se preenchendo apenas da vontade de receber a próxima carta; no entanto, é uma fração do tempo que o livro traz para ancorar, a todos nós, em nosso presente...

CARTAS A POVOS DISTANTES, de Fábio Monteiro, tem as ilustrações e o projeto gráfico assinados por André Neves (Paulinas, 2015).


“E, quando não aguentou mais o peso do conhecimento, 
dormiu um sono dobrado pela certeza de 
querer ainda mais e mais conhecer esse amigo.”

* * *
*

22 de julho de 2015

deram os peixes a voar II

Quando o carteiro chegou... 8
O'ABRE ASPAS com Ilustrações Comparadas


Começo a pensar que gosto bastante de peixes
ou tenho me tornado repetitivo no título das postagens, pois já escrevi e mostrei como deram os peixes a voar nos livros de literatura para crianças [aqui]. Agora recebi e comecei a ler CÉU DE FUNDO DO MAR e outras histórias, um lançamento recente de Janaína Michalski, bolsista de criação literária pela Funarte/Ministério da Cultura, com ilustrações de abertura de capítulo e delicadas vinhetas de Aline Abreu (Autêntica, 2015). É a capa, no entanto, que honestamente me pesca e me enreda na imageria de André Neves confabulando espelhos e sonhos para AH! MAR, um texto de 1985 escrito por Bartolomeu Campos de Queirós (RHJ, 2007) [leia+].

Mas, vejam: esses peixes que se levam na cara das personagens, também me fazem lembrar de uma descrição arguta de Alice Vieira. Tive minhas tias-avós espanholas, Maria, Petra, Escolástica, Isabel, Lola mas nenhuma que fosse Josefa. No entanto, minha mãe vivia cantando (ela também se repetia, quando encontrava alguém de espírito amuado) que às vezes andávamos à moda de Josefa “Pepa” Bandera...
Pepa, no me des tormento
Pepa, no me hagas sufrir
Pepa, vivo de tu aliento
Pepa, y muero por ti [leia+].
Ora, uma broma era o que era porque é una canción (como dizer?) muy hortera [aquí] y [aquí]. Bendito seja! Voltemos à literatura – O’ABRE ASPAS* com Alice Vieira, em OS OLHOS DE ANA MARTA (Edições SM, 2005):
D. Pepa usava na cara todos os produtos de beleza anunciados na televisão, e todos eram sempre melhores que os anteriores, “como no me dé cuenta antes?”, e todos eram milagrosos e prometiam juventude eterna. Lábios vermelhos, pálpebras verdes ou azuis, bochechas em tom de ocre e, para culminar a obra de arte, um artístico sinal muito preto do lado esquerdo do queixo. Às vezes D. Pepa ainda pegava num lápis e com ele fazia dois traços escuros (geralmente tremidos, pois a mão já lhe faltava) a sublinhar os contornos dos olhos. Então os olhos de D. Pepa pareciam peixes a navegar no mar colorido do seu rosto [...] ao olhar para ela, nas tardes de sexta-feira, só via peixes desenhados na poeira dos caminhos.
* (Alice Vieira, 2005: 35-6)

18 de julho de 2015

palavra e imagem, silêncio e diálogo

Quando o carteiro chegou... 7


Muito leio e ouço falar a respeito das relações palavra e imagem, contudo poucas pessoas encontro dispostas a explicá-las ou fazer entender o que entendem com essa expressão que virou uma espécie de abre-te-sésamo para a conversaria em torno da literatura para crianças. Qual seja... hoje encontro motivos para um exercício de leitura com Marianne Dubuc que tem proposto diferentes tipos de livros para leitores de todas as idades.

Inspirado em uma parlenda, UM ELEFANTE SE BALANÇA (DCL, 2013) foi o primeiro título da autora canadense publicado no Brasil. A passagem da oralidade para o mundo impresso, em um livro ilustrado intertextual, permite-nos pensar uma parcela expressiva da literatura infantil como um gênero secundário da criação verbal em que a relação boca-ouvido (tão cheia de imagens pessoais) é resgatada e complementada por figuras visivas, despertando novas situações, brincadeiras e comentários entre adultos e crianças.

Olhemos agora ÔNIBUS (Jujuba, 2015), traduzido por Maria Viana. Olhemos a capa – a leitura se faz rapidamente. O cenário: a rua, duas árvores, o gramado, um fundo azul como algo infinito, o cinza na calçada e no asfalto, a tampa do bueiro, um ponto de ônibus. A figuração toda se faz teatral – close na personagem: menina de cabelos curtos, castanhos, vestindo um casaco vermelho, levando na mão uma cestinha. Não é preciso dizer que se trata de Chapeuzinho Vermelho, pois não é – porém, a personagem dos contos de antigamente aí se mostra por dois ou três índices unicamente seus, um objeto que carrega e a cor, associados com a identidade de menina. Já imaginamos e sabemos como a narrativa vai terminar, já. Mas o importante será o caminho...


O interior do veículo torna-se o principal cenário da história ou histórias. Marianne Dubuc oferece uma ilustração rica em detalhes e personagens espalhados por toda a dupla-página; são cinquenta e seis centímetros de comprimento, quando o livro permanece aberto. E, nesse espaço, o pequeno leitor encontra uma gata fazendo tricô, duas lebres de saias xadrez, um urso de botas, uma tartaruga, uma preguiça, um rato... A cada parada do ônibus, tudo se movimenta, as lebres deixam cair uma bala de goma de mascar, entra uma família de toupeiras, alguém sai pela porta dos fundos, um bode vende flores, uma coruja veste um chapéu, aparece uma misteriosa personagem atrás das páginas do jornal (dizem que é Marianne), as toupeirinhas vão pra lá e pra cá, e chega um lobinho aparentemente simpático... O que pode acontecer?


Como um jogo, a cada página virada, alguém mudou de lugar, algo se dá. Neste livro, a narrativa visual pede uma leitura em vai e vem, uma leitura comparativa, ora para frente, ora para trás, como muitas vezes é o balanço de um ônibus na cidade. As imagens falam, as imagens contam e até dispensariam o aparato verbal. No entanto, ele ali está, mínimo, uma sentença e outra revelando o pensamento, a curiosidade, os espantos, a admiração da menina que segue viagem, a cada acontecimento dentro do ônibus. A relação palavra e imagem é pontual ou factual, exprimindo emoções e reações da personagem, e também vincula o ato da leitura (visual) à verbalização entre a criança pequena e um leitor adulto que dá voz às frases.


Marianne Dubuc também produziu um livro de imagem, em 2007, chamado MAR (Positivo, 2014), com uma história de perseguição bastante inusitada. Na contracapa, o verbal busca encapsular toda a narrativa visual em uma sentença só: “Um gato com fome e um peixe que não quer servir de refeição.” Porém, o que faz a história tão especial não é seu caráter linear sucessivo...


É a magia ou triunfo da imagem, em seu significado mais profundo de emancipação – e poesia. Para fugir ao felino, o peixe vermelho inventa asas e voa pela sala da casa, depois escapa para os telhados da vizinhança, vai atravessando um arvoredo, alcança a lua e o gato, atrás, calça estrelas para subir ao céu... Do outro lado da cidade ou do mundo, o peixe mergulha nas águas do mar onde talvez Mar, o gato, não ousa pular! Exatamente e por que não? Uma narrativa visual deve nos permitir evocar sentimentos, o olhar perplexo, novas ideias e um modo inaugural para relacionar imagens e seus enigmas, em palavras. Pelo menos, este livro assim permite...


Uma das marcas mais geniais de Marianne Dubuc é o domínio do ritmo em todas as suas obras, empregando sabiamente a virada de página e o silêncio. No livro ilustrado O LEÃO E O PÁSSARO, traduzido por Ana Caperuto (Positivo, 2014), a narrativa demanda várias estratégias combinadas: o narrador em terceira pessoa, a voz do leão como um discurso livre, assinalado discretamente pelas letras em itálico, a narrativa visual, as cores, a alternância de cenas molduras e páginas de ilustração inteira.


Um leão trabalha em seu jardim, quando encontra um pássaro com a asa ferida, sem poder acompanhar o bando que migra para terras mais quentes. Ainda é outono, mas o leão sente que não poderá abandoná-lo e acabam passando toda a fria estação na companhia um do outro. De certa maneira, parece uma história oposta à brincadeira do gato com peixe-voador esta que trata da amizade indubitável do leão pelo pássaro. Tudo o que fazem juntos é uma sucessão de quadros felizes. Quando se quer retratar o isolamento que possuem do restante do mundo, a imagem amplia-se, ocupa duas páginas e vemos a casa algo distante como um esconderijo. O tempo bom chega com o início da primavera e os pássaros retornam pelo caminho do céu. É hora do amigo seguir com os seus iguais.

O leão naturalmente se entristece – e estar só é sentir-se todo pequeno em um barco à deriva no meio do lago. Mas, creio, que existe um sentimento que nenhuma imagem traduz fielmente. A esperança é um hálito verbal. “Um dia, o outono também volta.” Ora, passamos a aguardar o pássaro, como o leão olhando o céu...

Mas existe, na relação palavra e imagem de Marianne Dubuc, outra força. Uma força que é tempo passando no signo branco de algumas páginas, a presença de uma ausência que faz sentir e faz pensar. Ou seja, silêncio verbal e silêncio visual.


E o que rompe este diálogo?
Um assovio.

15 de julho de 2015

o outro problema do Clóvis

Quando o carteiro chegou... 6


Sempre há algo, alguém diferente no meio da repetição. Esta é a primeira dobra que a mim se mostra, quase leitura, diante da capa branca do livro UNIFORME, de Tino Freitas e Renato Moriconi (Edições de Janeiro, 2015, 2.ed. Gato Leitor, 2019). Pinguins, aonde vão assim, sempre tão iguaizinhos no mesmo passo e compasso? Entretanto, entre eles, dentro de sua casaca, confortavelmente estranho, está um velho senhor. Puro disfarce, imitação? Algo ou alguém anda fora do padrão?


Tino vem contar a história de Clóvis, alguém como nós que nasceu livre e pelado, que aprendeu a viver camuflado e sobreviver como todo camaleão. A presença da símile, repetida como um bordão, evidencia a intencionalidade da narrativa logo de início... Clóvis não é um camaleão, mas agirá como um. Até quando? A ilustração também trabalha com a mesma figura retórica através da repetição do desenho e, como um livro-jogo, o leitor vai percebendo e procurando alguma coisa que sempre sai fora da constante uniformidade da ordem da reprodução....


Clóvis vai e vem no meio do rebanho das ovelhas, segundo os interesses e as circunstâncias, algo assim Maria vai com as outras! E Clóvis ouve dizer coisas e faz tudo igual a todo mundo, finge, esconde-se, caminha de cabeça baixa e... E jogou-se aos tubarões, macaqueou-se, dançou conforme a música... Adiantou? O destino, diz Tino, parece ter sido uma aprendizagem para tirar os disfarces, desnudar-se e seguir adiante somente com o próprio coração.

No final do livro, o leitor desdobra uma página e...


vê todos os seus bichos coloridos!

* * *


P.S. A leitura é sempre uma brincadeira por inúmeras obras e aqui desdobro a memória de alguns autores e títulos que constituem a série ou família literária de onde a produção contemporânea se cria e arroja-se em novos passos. É isto o que permite uma tradição para a literatura infantil brasileira! Saudamos Tino Freitas com suas lembranças e possíveis inspirações: O pinguim, poema de Vinícius de Moraes (1977), Maria-vai-com-as-outras, desenhos e história de Sylvia Orthof (1982) e O problema do Clóvis, livro ilustrado de Eva Furnari (1992).

13 de julho de 2015

tempo para saber o que o tempo é

Quando o carteiro chegou... 5


O tempo é um dos meus temas mais queridos, poético em essência, porque carrega consigo as disparidades do mundo sensível e do pensamento, pertence ou mostra-se em um número concreto de coisas, mas também possui algo das coisas imateriais como são os sentimentos, como não deixam de ser a felicidade e a tristeza. No tempo, tudo emparelha-se. Querem saber?

No livro de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, COM O TEMPO (Peirópolis, 2015), as autoras brincam com a compreensão que todos nós, crianças ou adultos, podemos ter a respeito do tempo. Partem do sentido do olhar, comparando as medidas e as mudanças com cada pessoa e com as pessoas a nossa volta, aos alimentos que se transformam de instante a instante, de um dia para o outro, durante uma estação. A experiência vai se transformando em regras, intervalos e períodos, tempo feito de temporadas.


Como as páginas de um livro que amarelecem, o tempo passa a ser percebido em suas qualidades mais subjetivas, nesse caminhar entre verbal e imagens. O feio transforma-se em bonito, contam as autoras, o difícil se torna fácil, a experiência do dia-a-dia vai adensando o conhecimento de cada um de nós. E tudo isso é dito de um modo lúdico, bem humorado, lúcido, bem retratado. O tempo da leitura exige então que se completem as lacunas pois nem tudo está dito, nem tudo está ilustrado...

Quase o tempo todo, o tempo é um ritmo de complementação. Ainda que venhamos a opor a palavra e a imagem, elas são, quando bem casadas, um só texto, quando se pensa os avanços da literatura endereçada à infância. E infância aqui adquire o sentido múltiplo de alcançar crianças e leitores adultos.

Com o tempo, perdemos algumas coisas, por exemplo, um dente que nos impede de sorrir – mas, se perdemos um sabonete dentro da banheira, sempre encontrávamos um motivo para brincar e rir com essa lembrança... e ganhamos outras! Uma medalha que outra coisa não é que uma vitória, após anos e anos de esforço e trabalho dentro da água. As ideias passam de uma a outra através da evocação, e a emoção de um acontecimento a outro flui continuamente...


Então, esse texto, esse livro que tenho em mãos torna-se difícil de classificar, mas tão fácil descrevê-lo como um texto enumerativo, uma lista de impressões, comparações, jogos de marcadas oposições, contrários, paradoxos, espantos, admiração... É um velho álbum de imagens, um imagiário, mas também é um poema novo que vai se construindo para nossa diversão e fazer refletir. Ali está o tempo do relógio, o tempo da ciência e da filosofia, o tempo do conhecimento, o tempo fora e o tempo dentro da gente. E assim vamos passando as páginas, como o tempo.


Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, levam-nos juntamente com o tempo... da vida e da leitura. Um livro sem idade.

10 de julho de 2015

Browne’s on the table

Quando o carteiro chegou... 4


Sempre é bom voltar à década de 1980 e reencontrarmos os heróis, as canções, os brinquedos, os seriados e as novelas e, com toda certeza, os livros que lemos e outras tantas coisas que não temos em casa, na estante, mas permaneceram nalguma parte da lembrança... Ora, vou abrindo os envelopes e hoje eles me levam a viagens que não fiz – livros que não li... Sob o logotipo que é como uma onda, ondulante, da Pequena Zahar, encontro, em primeira leitura, dois títulos de Anthony Browne: GORILA (1983) e O TÚNEL (1989), ambos com tradução de Clarice Duque Estrada (2014).

É interessante descobrir algo sobre Anthony Browne. Quando criança, ele sonhava ser jornalista, cartunista, até mesmo lutador de boxe – mas se tornou um importante autor britânico que escreve e ilustra seus próprios livros. Um selo na capa da edição brasileira cala a atenção dos olhares leitores para o fato de Browne ser “Ganhador do Prêmio Hans Christian Andersen”. Porém, nem mesmo a pequena biografia da Zahar informa que isso se deu em 2000, como ilustrador – no ano em que também Ana Maria Machado fora reconhecida como escritora. Anthony Browne ainda guarda consigo duas Medalhas Kate Greenaway (1983, 1992) para ilustradores, além de ter sido nomeado ao comissionamento do Children’s Laureate, ao longo de dois anos, entre 2009 e 2011. Indiscutivelmente, ele tem algo para nos ensinar.

O trabalho em aquarela de Anthony Browne pode ser admirado pelo suave colorido e uma profusa riqueza de detalhes, conduzindo sutilmente a narração. Daí, um contraste entre a visão realista e osonho fantástico, sem margens que os separem. Certa magia mescla ambos os elementos em uma só atmosfera – de afetos – como um registro fotográfico. Os requadros e também as páginas funcionam, muitas vezes, para isolar e opor os personagens em seus universos particulares; no entanto, será exatamente nesses espaços que o encontro deve acontecer ao longo das histórias que se quer contar e expressar...


No livro GORILA (1983), Hannah e seu pai vivem distantemente. Ambos na mesma casa com seus silêncios, ela detrás dos livros, ele detrás do jornal. Uma ilustração mostra a cozinha e ali é tudo geométrico, azul, cinza, frio, calculado como um jogo de xadrez em preto e branco, uma luta (interna) está sugerida pela perspectiva renascentista e a estranha sensação de centro e estabilidade. Hannah, a menina apaixonada por gorilas, porém, veste vermelho... Saltemos algumas páginas para encontrar a influência da história em quadrinhos sobre os livros ilustrados, mas – o mais importante: a narrativa, a transformação fantástica do boneco em um símio gigantesco, selvagem, vermelho e negro na pelagem de reflexos castanhos – um escândalo de sensível com olhos meigos. Nada, depois, escapa dessa fronteira larga da fantasia e advém a solução confortadora no retorno à convivência familiar.



No livro O TÚNEL (1989), Rosa e o irmão João vivem distintamente. Ela dentro de casa, sozinha, enquanto ele brinca lá fora. Juntos, sempre brigavam o tempo todo – até que a mãe empurra a filha para fora de casa, com seu vestido de capuz vermelho. A rua é a nova floresta para que ambos aprendam a conviver, a recorrência aos velhos contos aí está, forte e óbvia, devoradora dos maus sentimentos, o medo de tudo. A boca do lobo está no muro de pedras disfarçado de verde. O túnel escuro, úmido, com lodo, assustador...


Anthony Browne e seus dois livros #onthetable. Para colecionadores.