2 de abril de 2016

2 de abril de 1727

O’ABRE ASPAS


“LAMENTO, em segundo lugar, a minha grande falta de discernimento deixando-me persuadir por instâncias e falsas razões, vossas e de outros, muito contra a minha opinião, a permitir que se me publicassem as Viagens. Lembrai-vos, por obséquio, de quão frequentemente vos pedi que refletísseis, quando alegáveis, como motivo, o benefício público, que os Yahoos era um espécie de animais absolutamente incapazes de se emendarem por meio de preceitos ou de exemplos, o que, de fato, ficou demonstrado, pois em lugar de ver posto um ponto final a todos os abusos e corrupções, pelo menos nesta pequena ilha, como eu tinha razões para esperar, após mais de seis meses de advertências, ainda não sei de um único efeito que, segundo as minhas intenções, o meu livro tivesse produzido; pedi-vos que me comunicásseis por carta quando os partidos e as facções se tivessem extinguido; quando os juízes fossem ilustrados e justos; os advogados, honestos e decentes, com alguns laivos de senso comum; Smithfield, brilhando com pirâmides de livros de jurisprudência; quando a educação dos jovens nobres tivesse sido inteiramente modificada; quando os médicos fossem banidos; quando as fêmeas dos Yahoos abundassem de virtude, honra, fidelidade e bom senso; quando as cortes e o levantar-se dos grandes ministros tivessem sido completamente extirpados; quando o espírito, o mérito e o saber fossem recompensados; quando todos os que desacreditam a imprensa em prosa e verso fossem condenados a comer o próprio algodão e a mitigar a sede com a própria tinta. Animado por vós, eu contava firmemente com estas e mil outras reformas, como eram, na verdade, manifestamente deduzíveis dos preceitos apresentados em meu livro. E força é reconhecer que sete meses seriam um prazo suficiente para corrigir todos os vícios e loucuras a que estão sujeitos os Yahoos, se as suas naturezas fossem capazes da menor disposição à virtude ou à sabedoria; entretanto tão longe estais de satisfazer as minhas expectações nalguma de vossas cartas, que sobrecarregais, pelo contrário, todas as semanas o nosso portador de libelos, chaves, reflexões, memórias e segundas partes, nas quais me vejo acusado de criticar grandes estadistas, de degradar a natureza humana (pois, ainda tem o descoco de chamar-lhe assim) e de injuriar o sexo feminino. Vejo igualmente que os autores desses pacotes não concordam entre si, pois alguns não me reconhecem por autor das minhas próprias viagens, e outros me dizem autor de livros a que sou completamente estranho.”


Da carta do Capitão Gulliver a seu primo e editor Richard Sympson, em 2 de abril de 1727. Tradução de Octavio Mendes Cajado, em Viagens de Gulliver, de Jonathan SWIFT. Porto Alegre: Globo, 1971. Ilustração: 2013 © Sara Oddi

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