14 de agosto de 2020

o avô de lênin



☆ AGRADAVA-ME MUITO a ideia de colocar o avô de Lênin em um título, para renunciar à interrupção arbitrária. ☆ A casa de campo do avô de Lênin surge perto de Kazan — capital da república autônoma dos tártaros —, sobre uma pequena colina aos pés da qual, trazendo a passeio seus patos, corre um riachinho caucasiano. Um belo lugar [...] Uma das paredes da casa, com três grandes janelas, dá para o jardim. Os rapazes, entre os quais Volodja Uljanov, o futuro Lênin, entravam e saíam de casa muito mais pela janela que pela porta. O sábio doutor Blank (pai da mãe de Lênin), em vez de se aborrecer e proibir aquele inocente divertimento, colocou robustos bancos sob as janelas, para que os rapazes, no seu vaivém, pudessem servir-se deles sem correr o risco de quebrar o pescoço. Parece-me um modo exemplar de se colocar a serviço da imaginação infantil. ☆ Com as estórias e os procedimentos fantásticos para produzi-las, estamos ajudando as crianças a entrar na realidade muito mais pela janela que pela porta. É mais divertido, e portanto mais útil. ☆ Nada impede, de resto, de contrariar a realidade por meio de hipóteses mais arriscadas. Exemplo: O que aconteceria se em todo o mundo, de um pólo ao outro, de um momento para o outro, desaparecesse o dinheiro? ☆ Este não é apenas um tema para a imaginação infantil: por isso mesmo acredito que seja um tema particularmente adaptado para as crianças, às quais agrada muito misturar-se com problemas maiores do que elas. É o único modo de que dispõem para crescer. E não resta dúvida que elas querem, antes de tudo e sobretudo, crescer. ☆☆

Um passeio por um trecho do livro GRAMÁTICA DA FANTASIA, de Gianni Rodari (1973), publicado pela Summus Editorial, com tradução de Antonio Negrini e capa de Edith Derkyk (1982) p. 30 #FiqueBem #FiqueFirme #FiqueEmCasa #AbreAspas2020

livros infantis antigos e esquecidos

☆ POR QUE VOCÊ coleciona livros? — alguém já fez essa pergunta a um bibliófilo, para induzi-lo à autorreflexão? Como seriam interessantes as respostas, pelo menos as sinceras! Pois apenas os não-iniciados poderiam crer que não existe aqui o que esconder ou racionalizar. Arrogância, solidão, amargura — muitas vezes esse é o lado noturno de muitos colecionadores cultos e bem-sucedidos. Toda paixão revela de vez em quando os seus traços demoníacos, e nada confirma tão cabalmente essa verdade como a história da bibliofilia. Não existe nada disso no credo de colecionador de Karl Hobrecker, cuja grande coleção de livros infantis é agora divulgada ao público, através de sua obra. Para quem não se deixasse sensibilizar pela personalidade cordial e refinada do autor, nem pelo próprio livro, em cada uma das suas páginas, só poderíamos dizer o seguinte: esse tipo de coleção — o de livros infantis — só pode ser apreciado por quem se manteve fiel à alegria que experimentou quando criança, ao ler esses livros. Essa fidelidade está na origem de sua biblioteca, e toda coleção, para prosperar, precisará de algo semelhante. Um livro, ou mesmo uma página, e até uma simples imagem num exemplar antiquado, talvez herdado da mãe ou da avó, podem ser o solo no qual esse impulso lançará suas primeiras e delicadas raízes. Pouco importa se a capa está solta, se faltam páginas ou se aqui e ali mãos inábeis amarrotaram as gravuras. A procura de belos exemplares também é legítima nesse tipo de coleção, mas justamente aqui o pedante ficará perplexo. É um boa coisa boa que a pátina depositada nas folhas por mãos infantis pouco asseadas mantenham à distância o bibliófilo esnobe. ☆ 

Parágrafo inicial do artigo “Livros infantis antigos e esquecidos”, de Walter Benjamin (1924) que constam do primeiro volume das OBRAS ESCOLHIDAS: magia e técnica, arte e política, trad. Sergio Paulo Rouanet para a editora Brasiliense (1985) pp. 235-6 que nos lembrará também o quanto é polêmico o confronto com o passado, em toda e qualquer historiografia, mesmo a respeito de literatura infantil. É preciso reconhecer o perigo e o prazer de brincar entre os galhos de uma árvore em busca dos melhores ou mais inusitados sabores, contra os estereótipos da imprensa e da moda predominante, predatória #FiqueBem #FiqueFirme #FiqueEmCasa #AbreAspas2020

homo ludens

 

☆ Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. Talvez este fator estético seja idêntico àquele impulso de criar formas ordenadas que penetra o jogo em todos os seus aspectos. As palavras que empregamos para designar seus elementos pertencem quase todas à estética. São as mesmas palavras com as quais procuramos descrever os efeitos da beleza: tensão, equilíbrio, compensação, contraste, variação, solução, união e desunião. O jogo lança sobre nós um feitiço: é “fascinante”, “cativante”. Está cheio de duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia. ☆ 

Um parágrafo inteiro com Johan Huizinga, no livro HOMO LUDENS (1938), trad. João Paulo Monteiro, pela editora Perspectiva (1971) p. 13 #FiqueBem #FiqueFirme #FiqueEmCasa #AbreAspas2020

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