19 de outubro de 2010

e quem assoviou, voou... ?

tirando o pó da estante com peter o'sagae

 
Sei por ouvir contar o que um passarinho cantou: essa é a estratégia de duas obras da literatura infantil brasileira, em dois tempos tuitadamente diferentes.

Ao som do mar e à luz da reaberutra política do país, Ana Maria Machado fez canto e contracanto num reino-maravilha, onde o rei não enxergava os reais problemas da terra, perdido em meio a exuberâncias da natureza e a crença de viver num paraíso... PASSARINHO ME CONTOU  (Nova Fronteira, 1983), agora com ilustrações de Lúcia Brandão (Global, 2009), faz chegar àquele reino um João e Maria retirantes que muito viram e muito tinham o que contar ao rei dos problemas da gente! Espinhos arranhando, panela e barriga vazia, peixes morrendo de sede, patrão mandando embora, e grande fome, fome e fome... Ora, o que um passarinho contou é coisa com que ninguém quer se comprometer — ou dizer quem contou... Será, então, fofoca?

Xô, xô, passarinho, voa e me leva embora, para uma década mais lúdica, para os poemas de José Paulo Paes: UM PASSARINHO ME CONTOU, ilustrado por Kiko Farkas (Ática, 1996), ponte para outro tipo de identificação, para quem não quer apenas ouvir, mas tudo, na palavra, ver, rever e divertir-se: “eu vi um nó cego / andando de bengala / e vi uma andorinha / arrumando a mala”.
 
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14 de outubro de 2010

com a palavra, o ilustrador



Livro organizado por Ieda de Oliveira, O QUE É QUALIDADE EM ILUSTRAÇÃO NO LIVRO INFANTIL E JUVENIL: COM A PALAVRA O ILUSTRADOR (DCL, 2008) é uma coletânea de artigos e depoimentos; graficamente caprichado, 216 páginas em couché brilhante e reproduções em cores, índice remissivo e orelha assinada por Nelly Novaes Coelho, assinalando, “nesta fabulosa, caótica, progressista e alienadora era da imagem”, uma irrevogável funcionalidade pedagógica da ilustração: “A palavra cria o texto, o qual serve de fonte para a criação da imagem, cuja tarefa é dialogar e expandir os sentidos do texto de modo a provocar, no leitor-aprendiz (a criança e o adolescente), o ‘olhar de descoberta’ que fará dele um leitor criativo.” É a imagem uma estratégia para materializar e mostrar os caminhos da interpretação?



Ponto alto, a simplicidade com que nos ensinam Odilon Moraes, o projeto gráfico do livro para crianças, e Ciça Fittipaldi, a narratividade da imagem. Eis um bom começo para a leitura dos artigos. Ambos apontam quais os vínculos que se produzem de um a outro código, num jogo incessante de construção e decifração: “Os temas estão colocados, em princípio, pela linguagem literária: uma história dá origem a uma imagem”, afirma Ciça, “a imagem, por sua vez, dá origem a uma história que, por sua vez, apresenta-se por meio de uma nova imagem, esta permitindo uma outra história e mais outra, alternativa que logo se transforma em outras imagens...” (2008: 103)

Os demais capítulos vêm nos trazendo ora informações mais técnicas, ora horizontes que sugerem novas pesquisas — um histórico da ilustração fechado ao século XIX, com Rui de Oliveira, as diferentes técnicas, com Renato Alarcão, e o uso das cores, com Cristina Biazetto; a relação palavra e imagem, por Marcelo Ribeiro, questões a respeito do pensamento, da leitura de imagens e do livro de imagens, por Marilda Castanha... São sete artigos, enfim.


E depois: as visadas pessoais sobre a ilustração e o livro ilustrado, no fazer e pensar de Ana Raquel, Ana Terra, André Neves, Angela Lago, Márcia Széliga, Maurício Veneza, Nelson Cruz, Regina Yolanda, Ricardo Azevedo, Rosinha Campos, Thais Linhares e três ilustradores portugueses: Gémeo Luís, João Vaz de Carvalho e Teresa Lima.

Nas fotos: capa, contracapa e dobras do livro organizado por Ieda de Oliveira: dupla página com Edvard Munch intertextualizado por Marilda Castanha, uma ilustração com recortes em papel craft de Gémeo Luís e a abertura do artigo de Renato Alarcão.

9 de outubro de 2010

"sinalizar o estar de cada coisa"

Gosto das ruas de Porto Alegre (os editores e autores de lá também). Por acaso, ou por Artes e Ofícios, leio três bons títulos infantojuvenis — com ritmo, capítulos curtos, curtíssimos, e imagens que uma engenhosa fluência verbal nos faz ver. Comentários de Peter O'Sagae.


De Cláudio Levitan, PORTO ALEGRE NO LIVRO DAS CRIANÇAS PERDIDAS, com ilustrações de Ana Gruszynski (Artes e Ofícios, 2009). É uma aventura que conduz o leitor a espiar a história que passou sobre a paisagem da cidade, transformando-a continuamente. Há momentos de mistério, fantasia e curiosa animação:

Tudo ficou em silêncio, mas por pouco tempo [...] uma das estradas começou a andar sob os seus pés, como se fosse uma cobra.
— Vamos perder o equilíbrio! — gritou Vítor.

Seguraram-se uns nos outros para não cair. Enquanto isso, a estrada avançou pelo mato, levando-os consigo. Ela ia ziguezagueando [...]

— Não se assustem, crianças! Essa estrada eu conheço, sei como domá-la. Ela nos levará até o outro lado, onde conhecerão muitas coisas novas.

Mamaqués estava montada numa pedra do caminho, como se estivesse sobre a cabeça da rua. Segurava dois cipós firmes como arreios e puxava-os com força, dirigindo a estrada na escuridão. Batia com os pés no chão e gritava “eia!”, como se a rua fosse o lombo de um bicho que corcoveava de vez em quando.



De Christian David, MÃO DUPLA (Artes e Ofícios, 2008). O trânsito do leitor é para dentro do personagem Tiago e, do congestionamento de suas ideias, para um novo modo de descobrir a si mesmo. “Aleijado, maneta, deficiente físico, pessoa portadora de deficiência física. Tanto faz. Não tenho uma mão. A direita. A de escrever. A de segurar o joystick. Escovar os dentes. Passar manteiga no pão. A mão que me põe em contato com o mundo. Que eu perdi.”


De Luís Dill, DE CARONA, COM NITRO, ilustrações e projeto gráfico de Joãocaré (Artes e Ofícios, 2009). De carona com os ponteiros do relógio, a novela de Luís Dill não dilui um minuto sequer da expectativa do leitor: uma tragédia envolverá muitos sonhos e gente, “óleo e sangue misturados sobre o asfalto” — o que sempre é muito possível... Apenas desconhecemos o exato instante! Em uma narrativa mais que cinematográfica, clipes de histórias pessoais imitam a vida de qualquer (grande) cidade que não para para nos ver passar. Literatura alerta. Num livro de emoções em preto e branco. Ótimo.

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“As ruas são criaturas de pedra que têm alma de gente... São o contrário de certas criaturas que têm alma de pedra... E porque são criaturas, têm uma fisionomia própria e uma psicologia inconfundível.” Berilo Neves: Pampas e cochilhas (1932), citado por João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo, em Lembranças do Brasil: as capitais brasileiras nos cartões-postais e álbuns de lembrança (Solaris, 2004).