O'ABRE ASPAS para Socorro Acioli
"As grandes interrogações da curiosidade infantil estão fortemente presentes na obra de Lobato. "Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?" são perguntas que se desdobram em várias outras, pois podem ser respondidas de acordo com o contexto biológico, social, histórico, filosófico. As respostas de Lobato estão no resgate das origens do pensamento grego; na descrição da história do mundo; do descobrimento do Brasil; na explicação do funcionamento das glândulas; na mudança do tamanho dos seres humanos (provocando uma reflexão sobre nossa condição biológica); no resgate das raízes culturais e folclóricas brasileiras através das histórias populares, mitos e lendas; e no questionamento do destino dos homens (para onde vamos?) presente nas críticas às guerras e conflitos entre nações." (Socorro Acioli) Aula de leitura com Monteiro Lobato, 2012.
25 de junho de 2012
22 de junho de 2012
lá, onde começava a ponta do mar
Temporada de contos e recontos, 4
postagem cifrada por peter # sagae
Os portugueses inventaram coisas, como inventaram... Um mar só deles, um país que se jangadou do continente restante, e terras, muitas terras a serem descobertas no fim de uma longa viagem. Também inventaram contar histórias de outros povos com seu jeito único de fazer e desfazer da inteligência dos outros. Inventaram João Ratão, João Grilo, João Pequenito e Pedro de Malas-Artes que era antes outro Urdemalas, e antes outro Jean Mâchepied, e antes outro Till Eulenspiegel ou Giufa, e antes outro rosto jovem de moral torta e duvidosa... Sim, a Esperteza viajou terras, serras, montanhas, estradas, estrelas, e não é um invenção portuguesa, mas um traço de luta, alegria, sátira e revolta, às vezes, contra os grandes do mundo, contra este ou aquele que oprimia os simples dos povoados, contra quem deveria ter telhado de vidro e caía, sim, numa esparrela à toa.
E são bem histórias assim que compõem o pequeno DEZ CONTOS DO ALÉM-MAR, livro organizado por Ana Carolina Carvalho, com ilustrações de Taisa Borges (Peirópolis, 2010), a partir do acervo registrado pelos folcloristas Adolfo Coelho e Teófilo Braga, no finalzinho do XIX.
Acasos permitem o faminto João Ratão descobrir os “fiéis” criados que haviam roubado o rei, mas ele não fica sem beber, sem saber, um copo cheio de mijo de porca... De adivinhas capciosas, escapam Frei João sem Cuidados e um moleiro disfarçado de frade, diante de um rei que não era cego, mas não tinha olhos para ver, pensando que tudo sabia! Espertas também andam as velhas, TRÊS FIANDEIRAS que fiam a felicidade da moça que só quer casar-se bem... E, naquela terra que inventou de ser a última flor do Lácio, não há jovem coitadinha que não consiga ir ao baile, com vestidos azul e cinzento, azul e prateado, azul e dourado, tal é a Linda Flor que vai colocar o rei de quatro. E tem mais tolices, jogos, desencontros, vento a favor, sopa de pedra, raposinha gaiteira e quem mais consiga mandar pais e irmãos ao palácio para dar-lhes os mais altos cargos...
Ora, histórias! Para dar conta dos nossos danos morais, estas narrativas transmitem vivamente ainda uma noção que permitiu ao espírito coletivo perdoar sempre, sempre a ausência de escrúpulos por um pouco de troça. Ou não. Esta é só uma chave. De interpretação.
Mas, talvez o último conto da coletânea traga uma advertência sincera, daquelas terras, onde o rei não andava nu... era só uma vez o seu filho nascido e fadado a ter orelhas de burro! Soube disso o barbeiro nas horas quantas de fazer a barba do menino. E foi o homem ao padre: “Eu tenho um segredo que me mandaram guardar, mas eu se não o digo a alguém morro, e se o digo o rei manda-me matar.” Pois vai ele cavar um buraco para esgotar o que sabia falando lá dentro – mas, passa o tempo, crescendo o verde verde de uma nova plantação e, um dia, a Verdade subiriam no sopro das gaitas que deram voz ao canavial.
Agora, vocês, que assobiem e pensem: quem deu pra inventar, lá longe, onde começa a ponta do mar... Adivinhou, adivinhão?
postagem cifrada por peter # sagae
Os portugueses inventaram coisas, como inventaram... Um mar só deles, um país que se jangadou do continente restante, e terras, muitas terras a serem descobertas no fim de uma longa viagem. Também inventaram contar histórias de outros povos com seu jeito único de fazer e desfazer da inteligência dos outros. Inventaram João Ratão, João Grilo, João Pequenito e Pedro de Malas-Artes que era antes outro Urdemalas, e antes outro Jean Mâchepied, e antes outro Till Eulenspiegel ou Giufa, e antes outro rosto jovem de moral torta e duvidosa... Sim, a Esperteza viajou terras, serras, montanhas, estradas, estrelas, e não é um invenção portuguesa, mas um traço de luta, alegria, sátira e revolta, às vezes, contra os grandes do mundo, contra este ou aquele que oprimia os simples dos povoados, contra quem deveria ter telhado de vidro e caía, sim, numa esparrela à toa.
E são bem histórias assim que compõem o pequeno DEZ CONTOS DO ALÉM-MAR, livro organizado por Ana Carolina Carvalho, com ilustrações de Taisa Borges (Peirópolis, 2010), a partir do acervo registrado pelos folcloristas Adolfo Coelho e Teófilo Braga, no finalzinho do XIX.
Acasos permitem o faminto João Ratão descobrir os “fiéis” criados que haviam roubado o rei, mas ele não fica sem beber, sem saber, um copo cheio de mijo de porca... De adivinhas capciosas, escapam Frei João sem Cuidados e um moleiro disfarçado de frade, diante de um rei que não era cego, mas não tinha olhos para ver, pensando que tudo sabia! Espertas também andam as velhas, TRÊS FIANDEIRAS que fiam a felicidade da moça que só quer casar-se bem... E, naquela terra que inventou de ser a última flor do Lácio, não há jovem coitadinha que não consiga ir ao baile, com vestidos azul e cinzento, azul e prateado, azul e dourado, tal é a Linda Flor que vai colocar o rei de quatro. E tem mais tolices, jogos, desencontros, vento a favor, sopa de pedra, raposinha gaiteira e quem mais consiga mandar pais e irmãos ao palácio para dar-lhes os mais altos cargos...
Ora, histórias! Para dar conta dos nossos danos morais, estas narrativas transmitem vivamente ainda uma noção que permitiu ao espírito coletivo perdoar sempre, sempre a ausência de escrúpulos por um pouco de troça. Ou não. Esta é só uma chave. De interpretação.
Mas, talvez o último conto da coletânea traga uma advertência sincera, daquelas terras, onde o rei não andava nu... era só uma vez o seu filho nascido e fadado a ter orelhas de burro! Soube disso o barbeiro nas horas quantas de fazer a barba do menino. E foi o homem ao padre: “Eu tenho um segredo que me mandaram guardar, mas eu se não o digo a alguém morro, e se o digo o rei manda-me matar.” Pois vai ele cavar um buraco para esgotar o que sabia falando lá dentro – mas, passa o tempo, crescendo o verde verde de uma nova plantação e, um dia, a Verdade subiriam no sopro das gaitas que deram voz ao canavial.
Agora, vocês, que assobiem e pensem: quem deu pra inventar, lá longe, onde começa a ponta do mar... Adivinhou, adivinhão?
21 de junho de 2012
o mais poderoso para a mais bela
Temporada de contos e recontos, 3
por Peter O'Sagae
Quem são os leitores das narrativas tradicionais, hoje, senão os narradores de amanhã? É essa pergunta que me voa pelos olhos, diante da capa do livro O NOIVO DA RATINHA, da escritora e ilustradora Lúcia Hiratsuka (Larousse, 2011). Veja bem, com que interesse o par de corvos observa o título e os personagens?
O compromisso palavra&imagem se constrói, desde já, por uma série de indicações da própria ilustração, com que a autora não só desenha e mostra diretamente uma cena, mas flagra a cena sendo vista por outros olhares. Com isso, denota um percurso que integra os elementos visuais e verbais, fortemente conotando significados e sugestões que não se põem a caminho apenas em uma ou outra linguagem, mas resulta de um efeito intercódigos.
Na dupla-página 4 e 5, a narração é assim aberta: “Era uma vez, no Japão... Numa certa aldeia, num certo telhado de uma casa, uma família de ratinhos.” A ilustração descortina quatro pares de asas e olhos em torno do telhado rústico de uma antiga casa japonesa, voando e pousando no galho de uma árvore. Há uma atitude metalinguística de aproximação com a história, o leitor aí inscrito na obra com seus bicos cor de laranja – e não é nada para estranhar a comparação com os corvos e sua voz portadora de notícias, tal como falam ou crocitam os leitores.
E o que veem os corvos? A silhueta da família, a filha, orelha de rata, em atitude de exibir-se vestindo quimono, leque na mão, a mais bela para os olhos dos pais. Porque é este o motivo inicial de uma fábula de longa tradição oriental e que, no Japão, dará ensejo para todos buscarem o noivo mais poderoso do mundo para a filha. Vão ao Sol, ao senhor Nuvem, ao Vento e ao Muro para descobrirem que o pretendido genro para pais tão orgulhosos era mesmo um rato do telhado vizinho... Que rata!
A velha fábula havia sido objeto de reconto por Lúcia Hiratsuka, em 1993, com o título O CASAMENTO DA RATINHA, e agora retorna às estantes de livros com texto novo e novas ilustrações com pinceladas rápidas, bem marcadas, em aquarela, e grafite; o resultado é bastante plástico e leve.
Em outros países do Oriente, a história tornou-se bem conhecida com detalhes que apontam figuras e valores ora universais, ora locais. No Panchatantra, conta-se que uma ratinha caiu, do bico de um falcão, às mãos de um sábio religioso e que, graças às suas orações, consegue transformar o pequeno animal em uma menina; passados anos, após a busca de um noivo para a filha adotiva, ela pede para retomar a forma original. Na Índia, pois, a fábula diz que nem mesmo o poder do homem mais santo é suficiente para alterar a destinação de cada criatura ou que ninguém escapa à sua própria natureza... Na China, o pai não aceita nenhum dos muitos pretendentes à filha, a seu ver, incapazes de enfrentar a fúria dos gatos e assegurar uma vida segura à vila dos ratos. E há uma lengalenga romena sobre um rato muito gordo que deseja uma entrevista com Deus; em seu caminho, é desprezado pelo sol, pelas nuvens, até que o vento o arremessa de volta ao velho paiol de onde saiu... Temporada de contos e recontos (de fábulas também), ah, como gostamos de tagarelar leituras ;-)
por Peter O'Sagae
Quem são os leitores das narrativas tradicionais, hoje, senão os narradores de amanhã? É essa pergunta que me voa pelos olhos, diante da capa do livro O NOIVO DA RATINHA, da escritora e ilustradora Lúcia Hiratsuka (Larousse, 2011). Veja bem, com que interesse o par de corvos observa o título e os personagens?
O compromisso palavra&imagem se constrói, desde já, por uma série de indicações da própria ilustração, com que a autora não só desenha e mostra diretamente uma cena, mas flagra a cena sendo vista por outros olhares. Com isso, denota um percurso que integra os elementos visuais e verbais, fortemente conotando significados e sugestões que não se põem a caminho apenas em uma ou outra linguagem, mas resulta de um efeito intercódigos.
Na dupla-página 4 e 5, a narração é assim aberta: “Era uma vez, no Japão... Numa certa aldeia, num certo telhado de uma casa, uma família de ratinhos.” A ilustração descortina quatro pares de asas e olhos em torno do telhado rústico de uma antiga casa japonesa, voando e pousando no galho de uma árvore. Há uma atitude metalinguística de aproximação com a história, o leitor aí inscrito na obra com seus bicos cor de laranja – e não é nada para estranhar a comparação com os corvos e sua voz portadora de notícias, tal como falam ou crocitam os leitores.
E o que veem os corvos? A silhueta da família, a filha, orelha de rata, em atitude de exibir-se vestindo quimono, leque na mão, a mais bela para os olhos dos pais. Porque é este o motivo inicial de uma fábula de longa tradição oriental e que, no Japão, dará ensejo para todos buscarem o noivo mais poderoso do mundo para a filha. Vão ao Sol, ao senhor Nuvem, ao Vento e ao Muro para descobrirem que o pretendido genro para pais tão orgulhosos era mesmo um rato do telhado vizinho... Que rata!
A velha fábula havia sido objeto de reconto por Lúcia Hiratsuka, em 1993, com o título O CASAMENTO DA RATINHA, e agora retorna às estantes de livros com texto novo e novas ilustrações com pinceladas rápidas, bem marcadas, em aquarela, e grafite; o resultado é bastante plástico e leve.
Em outros países do Oriente, a história tornou-se bem conhecida com detalhes que apontam figuras e valores ora universais, ora locais. No Panchatantra, conta-se que uma ratinha caiu, do bico de um falcão, às mãos de um sábio religioso e que, graças às suas orações, consegue transformar o pequeno animal em uma menina; passados anos, após a busca de um noivo para a filha adotiva, ela pede para retomar a forma original. Na Índia, pois, a fábula diz que nem mesmo o poder do homem mais santo é suficiente para alterar a destinação de cada criatura ou que ninguém escapa à sua própria natureza... Na China, o pai não aceita nenhum dos muitos pretendentes à filha, a seu ver, incapazes de enfrentar a fúria dos gatos e assegurar uma vida segura à vila dos ratos. E há uma lengalenga romena sobre um rato muito gordo que deseja uma entrevista com Deus; em seu caminho, é desprezado pelo sol, pelas nuvens, até que o vento o arremessa de volta ao velho paiol de onde saiu... Temporada de contos e recontos (de fábulas também), ah, como gostamos de tagarelar leituras ;-)
19 de junho de 2012
o enigma rapunzel
Temporada de contos e recontos, 2
Há muitos anos, interesso-me pela história da jovem presa no alto da torre, vendo aí uma imagem axial céu-terra que constitui o centro da narrativa, entorno do qual gira o velho refrão: Rapunzel, Rapunzel, jogue-me suas tranças! Contudo, a história da moça de longas madeixas não parece ser das mais populares entre crianças ou mesmo especialistas de literatura infantil. Por quê?
Lembrando as lições de Propp a respeito do conto maravilhoso, conto de fadas ou conto de encantamento, talvez “Rapunzel” não seja exatamente um conto, uma vez que, nele, não se encontram os objetos mágicos com a função de ajudarem a personagem a vencer obstáculos e inimigos em seu caminho.
Na versão dos Grimm, de 1812, a jovem e o príncipe certamente sofrem influência da velha má, ou Senhora Gothel, mas não a vemos usar qualquer forma de magia contra os protagonistas: ela usa apenas a força, cortando os cabelos de Rapunzel e arremessando o rapaz contra os espinheiros ao pé da torre; ela também não é morta ou destruída... e sua permanência, após o final feliz, provoca grande inquietação. Os encontros amorosos sob o manto prodigioso da noite não se escondem sob a superfície do texto e o príncipe, ainda que vagando anos e anos, às cegas, encontrará a amada na companhia dos filhos gêmeos que deixou em seu ventre: um menino e uma menina. Vertidas dos olhos dela aos olhos dele, duas lágrimas recuperam milagrosamente a visão do moço, o caminho para o castelo e a possibilidade de viverem juntos para sempre.
Aventurando-nos rumo ao passado, em 1634, no livro de Basille, encontraremos um conto napolitano chamado “Petrosinella” que apresenta toda sequência desde o nascimento da menina até a prisão na torre, mas termina de um modo bem diferente: com a perseguição mágica de uma ogra feiticeira aos dois apaixonados. Por sua vez, outro conto da mesma coletânea, “Tália, Sol e Lua”, anterior à versão francesa de A BELA ADORMECIDA, traz elementos que ressurgem na Rapunzel alemã, como o isolamento nupcial na floresta e as duas crianças que, no deserto, nascem. São figuras que pertencem a um arquivo cosmogônico da memória humana, falando-nos da Ordem, a divisão do tempo, em um território iluminado pela alternância do Sol e da Lua, em volta do eixo amoroso que uniu a donzela e o príncipe. De fato, o nascimento do menino e da menina, em pleno deserto, simboliza e promete continuidade ao tema do casal céu-terra e dos ciclos da natureza exuberante...
De outra parte, sem lenda, sem tanto mito, ou medo de arriscar-se na noite das narrativas, Rapunzel é um texto, ainda hoje, sem fortes marcas de fixação artística. Tudo no conto me obriga a pensar em reminiscências, às quais ainda faltam uma forma e sequência conclusiva. Os motivos flutuam, o que muito favorece o exercício do reconto – como no livro de Sarah Gibb, RAPUNZEL, a partir da versão dos Grimm, texto de Alison Sage e tradução de Fabiana Medina (Caramelo, 2010).
As imagens de Sarah Gibb, realizadas em computador, resgatam a linguagem dos velhos livros ilustrados de contos, revelando transparências e silhuetas que evocam as projeções da lanterna mágica e do tradicional teatro de sombras, tão rico em detalhes caros a Arthur Rackham. Objetos e móveis dos cenários, árvores e animais da floresta, até mesmo o corpo dos personagens repetem-se em diferentes combinações, sugerindo a possibilidade do movimento ao olhar. Sem deserto ou crianças antes do casamento, vem delicado e elegante o texto. “Quanto à bruxa, ela continuou amarga e maldosa e só lhe restou se esconder num assombroso castelo e nunca mais sair de lá.”
Há muitos anos, interesso-me pela história da jovem presa no alto da torre, vendo aí uma imagem axial céu-terra que constitui o centro da narrativa, entorno do qual gira o velho refrão: Rapunzel, Rapunzel, jogue-me suas tranças! Contudo, a história da moça de longas madeixas não parece ser das mais populares entre crianças ou mesmo especialistas de literatura infantil. Por quê?
Lembrando as lições de Propp a respeito do conto maravilhoso, conto de fadas ou conto de encantamento, talvez “Rapunzel” não seja exatamente um conto, uma vez que, nele, não se encontram os objetos mágicos com a função de ajudarem a personagem a vencer obstáculos e inimigos em seu caminho.
Na versão dos Grimm, de 1812, a jovem e o príncipe certamente sofrem influência da velha má, ou Senhora Gothel, mas não a vemos usar qualquer forma de magia contra os protagonistas: ela usa apenas a força, cortando os cabelos de Rapunzel e arremessando o rapaz contra os espinheiros ao pé da torre; ela também não é morta ou destruída... e sua permanência, após o final feliz, provoca grande inquietação. Os encontros amorosos sob o manto prodigioso da noite não se escondem sob a superfície do texto e o príncipe, ainda que vagando anos e anos, às cegas, encontrará a amada na companhia dos filhos gêmeos que deixou em seu ventre: um menino e uma menina. Vertidas dos olhos dela aos olhos dele, duas lágrimas recuperam milagrosamente a visão do moço, o caminho para o castelo e a possibilidade de viverem juntos para sempre.
Aventurando-nos rumo ao passado, em 1634, no livro de Basille, encontraremos um conto napolitano chamado “Petrosinella” que apresenta toda sequência desde o nascimento da menina até a prisão na torre, mas termina de um modo bem diferente: com a perseguição mágica de uma ogra feiticeira aos dois apaixonados. Por sua vez, outro conto da mesma coletânea, “Tália, Sol e Lua”, anterior à versão francesa de A BELA ADORMECIDA, traz elementos que ressurgem na Rapunzel alemã, como o isolamento nupcial na floresta e as duas crianças que, no deserto, nascem. São figuras que pertencem a um arquivo cosmogônico da memória humana, falando-nos da Ordem, a divisão do tempo, em um território iluminado pela alternância do Sol e da Lua, em volta do eixo amoroso que uniu a donzela e o príncipe. De fato, o nascimento do menino e da menina, em pleno deserto, simboliza e promete continuidade ao tema do casal céu-terra e dos ciclos da natureza exuberante...
De outra parte, sem lenda, sem tanto mito, ou medo de arriscar-se na noite das narrativas, Rapunzel é um texto, ainda hoje, sem fortes marcas de fixação artística. Tudo no conto me obriga a pensar em reminiscências, às quais ainda faltam uma forma e sequência conclusiva. Os motivos flutuam, o que muito favorece o exercício do reconto – como no livro de Sarah Gibb, RAPUNZEL, a partir da versão dos Grimm, texto de Alison Sage e tradução de Fabiana Medina (Caramelo, 2010).
As imagens de Sarah Gibb, realizadas em computador, resgatam a linguagem dos velhos livros ilustrados de contos, revelando transparências e silhuetas que evocam as projeções da lanterna mágica e do tradicional teatro de sombras, tão rico em detalhes caros a Arthur Rackham. Objetos e móveis dos cenários, árvores e animais da floresta, até mesmo o corpo dos personagens repetem-se em diferentes combinações, sugerindo a possibilidade do movimento ao olhar. Sem deserto ou crianças antes do casamento, vem delicado e elegante o texto. “Quanto à bruxa, ela continuou amarga e maldosa e só lhe restou se esconder num assombroso castelo e nunca mais sair de lá.”
15 de junho de 2012
os três porquinhos
Temporada de Contos e Recontos, 1
Muito tempo antes de a história d’OS TRÊS PORQUINHOS transformar-se em uma fábula eufórica rumo ao sonho americano, espécie animada de campanha contra a preguiça ou levar a vida na flauta, existia um conto, um conto inglês a respeito de três irmãos que se veem sozinhos no mundo... Coube ao folclorista Joseph Jacobs registrar uma das primeiras versões impressas desta narrativa popular, em 1890, inspirando-se em parlendas – ou nursery rhymes – das velhas nanas e avós de seu país.
Imagine uma família de porcos que, a cada ano, crescia mais e mais...
Viveriam felizes? Não. Diz o conto que, sem lugar para todos, coube à mãe dar sua benção e dispensar os filhos mais velhos, porta afora, floresta adentro, a fim de amadurecerem suas próprias experiências. O motivo original, preservado em bem poucas adaptações, apresenta-se na pequena edição de OS TRÊS PORQUINHOS, no reconto de Roberto Piumini, com ilustrações de Nicoletta Costa e tradução de Daniela Bunn (Positivo, 2010).
Bia Villela é autora de uma simpática versão de OS TRÊS PORQUINHOS (Paulinas, 2004) para leitores dos mais pequeninos. Antes mesmo de dizer “era uma vez”, o livro já nos leva por uma floresta distante, seguindo os passos do próprio lobo... Os três porquinhos são chamados Triângulo, Bolinha e Quadrado, e fizeram uma casa de papel, uma casa de pano e uma casa de tijolos. Com viva simplicidade, o texto enxuto, aí, cumpre a função de articular a narrativa às formas geométricas, cores, padrões e grafismos.
Por fim,
Muito tempo antes de a história d’OS TRÊS PORQUINHOS transformar-se em uma fábula eufórica rumo ao sonho americano, espécie animada de campanha contra a preguiça ou levar a vida na flauta, existia um conto, um conto inglês a respeito de três irmãos que se veem sozinhos no mundo... Coube ao folclorista Joseph Jacobs registrar uma das primeiras versões impressas desta narrativa popular, em 1890, inspirando-se em parlendas – ou nursery rhymes – das velhas nanas e avós de seu país.
Imagine uma família de porcos que, a cada ano, crescia mais e mais...
Viveriam felizes? Não. Diz o conto que, sem lugar para todos, coube à mãe dar sua benção e dispensar os filhos mais velhos, porta afora, floresta adentro, a fim de amadurecerem suas próprias experiências. O motivo original, preservado em bem poucas adaptações, apresenta-se na pequena edição de OS TRÊS PORQUINHOS, no reconto de Roberto Piumini, com ilustrações de Nicoletta Costa e tradução de Daniela Bunn (Positivo, 2010).
Bia Villela é autora de uma simpática versão de OS TRÊS PORQUINHOS (Paulinas, 2004) para leitores dos mais pequeninos. Antes mesmo de dizer “era uma vez”, o livro já nos leva por uma floresta distante, seguindo os passos do próprio lobo... Os três porquinhos são chamados Triângulo, Bolinha e Quadrado, e fizeram uma casa de papel, uma casa de pano e uma casa de tijolos. Com viva simplicidade, o texto enxuto, aí, cumpre a função de articular a narrativa às formas geométricas, cores, padrões e grafismos.
Por fim,
o livro de Nelson Cruz [... nas dobras do lobo]
... nas dobras do lobo
Peter O. Sagae
Para leitores mais exigentes, a história dos três porquinhos emergirá inédita na paisagem que se esconde atrás dos muitos parágrafos da obra de Nelson Cruz – OS HERDEIROS DO LOBO (Edições SM, 2009). É um livro para viajantes de todos os feitios, como o menino e a menina que desejam apenas uma aventura bem contada, a respeito de um imigrante italiano que busca pelo amigo, o fotógrafo Cosme Zanone, desaparecido nas matas tropicais de nosso país, e cujas únicas pistas eram algumas reproduções dos quadros de Camilo Amarante Lobo...
As ilustrações de Nelson Cruz não devoram apenas El Greco e outros pintores. Há Hamlet, na leitura que esboço, no convite à observação do próprio texto. A imagem = um teatro com sua cortina branca, sem mácula, sangue, tinta, tipografia, tão à espera do leitor sentar-se diante para escutar um conto, como se fosse pela primeira vez. Mais que um livro de ficção, temos, sofremos aí a fixação do próprio livro e das muitas outras histórias que contém, não contém, em um jogo de sombras e aparições. Quem são os herdeiros?
Para leitores mais exigentes, a história dos três porquinhos emergirá inédita na paisagem que se esconde atrás dos muitos parágrafos da obra de Nelson Cruz – OS HERDEIROS DO LOBO (Edições SM, 2009). É um livro para viajantes de todos os feitios, como o menino e a menina que desejam apenas uma aventura bem contada, a respeito de um imigrante italiano que busca pelo amigo, o fotógrafo Cosme Zanone, desaparecido nas matas tropicais de nosso país, e cujas únicas pistas eram algumas reproduções dos quadros de Camilo Amarante Lobo...
“... vô João recolheu apressadamente seus apetrechos e montou no cavalo. Antes de receber qualquer comando, o animal deu meia-volta e seguiu por uma trilha escondida, sem marca de uso, mas que ele parecia conhecer bem. Quando surgia algum abismo à sua frente, estancava por alguns segundos e retomava logo em seguida, como se obedecesse a orientações que só ele ouvia. Pássaros enormes sobrevoavam desaparecendo na neblina, enquanto, ao longe, era possível distinguir uivos ecoando pela montanha. De vez em quando, o cavalo parava para beber a água dos riachos e seus movimentos sugeriam que meu avô fizesse o mesmo. Ele então apeava, enchia o cantil e montava novamente, submetendo-se à inquietação do animal. No meio da tarde, saíram enfim da imensa nuvem. “Foi, com certeza, um alívio”, dizia vô João. A paisagem se modificara. A trilha nesse momento se transformou num caminho entre rochas e vegetação. Estavam no meio de uma esplendorosa floresta de árvores enormes e uma profusão de grossos cipós. Seguiram a estrada e várias encruzilhadas foram surgindo. O cavalo passava de uma a outra, sucessivamente, virando ora à direita, ora à esquerda, transformando o caminho num complexo labirinto aparentemente concebido com a intenção de confundir quem ousasse passar por ele. Seria impossível sair dali sozinho! Vô João desconfiou...”Para os viajantes de textos, em busca de novas-velhas aventuras, acostumados à montaria de intrigantes metáforas galopando florestas, trilhas e ribanceiras da intertextualidade, a obra desdobra-se sobre o processo da leitura, um segredo sempre debaixo da próxima página...
As ilustrações de Nelson Cruz não devoram apenas El Greco e outros pintores. Há Hamlet, na leitura que esboço, no convite à observação do próprio texto. A imagem = um teatro com sua cortina branca, sem mácula, sangue, tinta, tipografia, tão à espera do leitor sentar-se diante para escutar um conto, como se fosse pela primeira vez. Mais que um livro de ficção, temos, sofremos aí a fixação do próprio livro e das muitas outras histórias que contém, não contém, em um jogo de sombras e aparições. Quem são os herdeiros?
14 de junho de 2012
"É que sempre eu usei livro pra tudo"
O'ABRE ASPAS para Lygia Bojunga
"É que sempre eu usei livro pra tudo: pra saber ler, pra altear pé de mesa, pra aprender a usar a imaginação, pra enfeitar sala quarto a casa toda, pra ter companhia dia e noite, pra aprender a escrever, pra sentar em cima, pra rir, pra gostar de pensar, pra ter apoio num papo, pra matar pernilongo, pra travesseiro, pra chorar de emoção, pra firmar prateleira, pra jogar na cabeça do outro na hora da raiva, pra me-abraçar-com, pra banquinho de pé, eu sempre usei livro pra tanta coisa, que a coisa que mais me espanta é ver gente vivendo sem livro." (Lygia Bonjunga) FEITO À MÃO, 1999.
P.S.
Começo aqui outro jeito de postar minhas leituras, com fotografias e parágrafos. Era uma ideia que vinha cultivando desde 2010, mas desconfiava que poderia soar vagabundagem ainda que tenha escrito, eu mesmo, a respeito da figura do leitor "que são os navegadores, que somos nós — e não mais age como mero visitante, mas um seguidor de conteúdos. Arrisco a pensar que, embora a rede seja um ambiente de imersão virtual, ainda nos encontramos face a face com um leitor fragmentário que começa a dar uso social e sua própria velocidade à internet — um leitor, nascido no último século, sob o impulso da multiplicação das mídias, que lê a notícia pendurada nas bancas de jornal, a propaganda nos táxis e no alto dos prédios, a luz frenética que pisca na televisão e dança no vídeo-clipe. Seria, pois, a movimentação desse tipo de leitor, em mil direções, o que promove a dispersão de referências através da internet." Por isso, assim, O'Abre Aspas, meu álbum de citações.
"É que sempre eu usei livro pra tudo: pra saber ler, pra altear pé de mesa, pra aprender a usar a imaginação, pra enfeitar sala quarto a casa toda, pra ter companhia dia e noite, pra aprender a escrever, pra sentar em cima, pra rir, pra gostar de pensar, pra ter apoio num papo, pra matar pernilongo, pra travesseiro, pra chorar de emoção, pra firmar prateleira, pra jogar na cabeça do outro na hora da raiva, pra me-abraçar-com, pra banquinho de pé, eu sempre usei livro pra tanta coisa, que a coisa que mais me espanta é ver gente vivendo sem livro." (Lygia Bonjunga) FEITO À MÃO, 1999.
P.S.
Começo aqui outro jeito de postar minhas leituras, com fotografias e parágrafos. Era uma ideia que vinha cultivando desde 2010, mas desconfiava que poderia soar vagabundagem ainda que tenha escrito, eu mesmo, a respeito da figura do leitor "que são os navegadores, que somos nós — e não mais age como mero visitante, mas um seguidor de conteúdos. Arrisco a pensar que, embora a rede seja um ambiente de imersão virtual, ainda nos encontramos face a face com um leitor fragmentário que começa a dar uso social e sua própria velocidade à internet — um leitor, nascido no último século, sob o impulso da multiplicação das mídias, que lê a notícia pendurada nas bancas de jornal, a propaganda nos táxis e no alto dos prédios, a luz frenética que pisca na televisão e dança no vídeo-clipe. Seria, pois, a movimentação desse tipo de leitor, em mil direções, o que promove a dispersão de referências através da internet." Por isso, assim, O'Abre Aspas, meu álbum de citações.
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