Às vezes, palavras como fantasia, imaginação ou devaneio não parecem dar conta da descrição de uma literatura para crianças que escape das fórmulas românticas. Nem mesmo as chaves de leitura de uma psicologia fácil me auxiliam aqui... O livro de Marilda Castanha: EM ASAS DE ALGODÃO (Edições SM, 2015) nos convida a deixar para trás os comentários adornados e manhosos ao gosto do século XIX.
Ainda que venha pesar a tríplice leveza dos símbolos oníricos, da simbologia dos alquimistas e do simbolismo no seio da literatura, talvez seja possível falar aí a respeito de um realismo metafísico ou existencial. A personagem da narrativa vestida com seu vermelho próprio e vibrante está presa na dor e na cor cinza de sua casa interior. De um quadro, se desprende uma nuvem que será sempre passageira, com sua forma instável e força invisível de água-e-vento a transportar a menina para um novo lugar... Ora, é um conto visual de tristeza e uma janela para alguma presença física de afeto, movimento e esperança. Por entre as imagens, uma voz narrativa percorre em tom de reflexão ou confissão que organiza, em um conhecimento particular, um processo de despedida dos sentimentos amargos a uma liberdade consoladora. Sim, penso então num realismo espiritual.
Um P.S. de Marilda Castanha!
Peter querido, que honra e alegria ter uma leitura, deste livro, tão maravilhosa como esta sua. E você (considerando tanto o texto quanto a imagem) foi exatamente no ponto nevrálgico desta narrativa. Já na fase final do livro não havia nenhum pedacinho de azul. Ou seja, a personagem estava totalmente imersa numa tristeza muito maior. Conto um segredo: tive que voltar nas artes e colocar azul em todas, e assim pensava que esta tristeza seria amenizada e não estaria tão aparente (ou que ia "despistar" a dor de viver da personagem. Mas você, hein? sempre super atento! E este "realismo espiritual"...puxa vida! Obrigada pelo olhar tão generoso! Abraço grande! (Facebook, 30 de mar. 2021)
30 de março de 2021
27 de março de 2021
letras de carvão
E.. chegamos mesmo a alcançar o povoado de Palenque de San Basilio, na Colômbia, com o livro da escritora Irene Vasco e do ilustrador Juan Palomino. Palenque, o primeiro lugar livre para os negros da América, na dobra de dois tempos que admitem o convívio e a conquista da linguagem escrita. LETRAS DE CARVÃO, com tradução de Márcia Leite (Pulo do Gato, 2016), é um conto dentro do conto que se inicia nos dias atuais de letras pulsantes na tela do computador, numa conversa entre mãe e filho: "Gosto tanto de ver você escrevendo seus contos, meu filho. Às vezes eu também escrevo. Sabe, quando eu tinha a sua idade, não sabia ler nem escrever."
Tomamos distância para ler/ouvir uma história que revela quão perto se pode estar das palavras em embalagens, listas da conta na mercearia e cartas de amor que não podem ser decifradas, apenas supondo o seu significado, quando não se domina o código. Através das imagens e do subtexto narrativo do livro, lembramos das implicações da voz na manutenção de sociedades orais e na propagação de novas visões de mundo na leitura em voz alta... Tudo pode mudar individual/coletivamente com letras e acenos de carvão, ou buscar os vários Os nas palavras de uma página como bolhas de sabão no ar.
Tomamos distância para ler/ouvir uma história que revela quão perto se pode estar das palavras em embalagens, listas da conta na mercearia e cartas de amor que não podem ser decifradas, apenas supondo o seu significado, quando não se domina o código. Através das imagens e do subtexto narrativo do livro, lembramos das implicações da voz na manutenção de sociedades orais e na propagação de novas visões de mundo na leitura em voz alta... Tudo pode mudar individual/coletivamente com letras e acenos de carvão, ou buscar os vários Os nas palavras de uma página como bolhas de sabão no ar.
24 de março de 2021
não derrame o leite!
Um conto ilustrado que segue o contorno das margens do Rio Níger, com sabor de fábula afetiva e ritmo de lengalenga, em muito lembrando a mistura de gêneros narrativos da tradição oral africana. De fato, NÃO DERRAME O LEITE, do escritor burquinabês Stephen Davies e do pintor britânico Christopher Corr (2013), trad. Helena Carone (Pequena Zahar, 2015), inspira-se na voz e nas cores vivas de uma África de grande importância histórica para o abastecimento de caravanas dando origem a diferentes cidades.
De algum modo sentimos, embora o texto não diga, partir de um lugar nas cercanias de Timbuctu, com sua trança de referências árabe, songai e tuaregue. A travessia da menina Penda para levar uma tigela de leite a seu pai é também uma travessia num tempo cultural idealizado e paisagens de distâncias imprecisas, tal a natureza do mundo do conto. Penda vai caminhando do seu povoado, sobe e desce as dunas do deserto, passa em meio às máscaras dançantes, pega carona num barco, avista girafas que lhe parecem extraterrestres na lua, sobe e desce montanhas...
Onde o pai pastoreia suas ovelhas? Será que atravessamos num pé a Guiné, Mali, Níger, Benin e Nigéria, no modo breve e seguro do conto?
De algum modo sentimos, embora o texto não diga, partir de um lugar nas cercanias de Timbuctu, com sua trança de referências árabe, songai e tuaregue. A travessia da menina Penda para levar uma tigela de leite a seu pai é também uma travessia num tempo cultural idealizado e paisagens de distâncias imprecisas, tal a natureza do mundo do conto. Penda vai caminhando do seu povoado, sobe e desce as dunas do deserto, passa em meio às máscaras dançantes, pega carona num barco, avista girafas que lhe parecem extraterrestres na lua, sobe e desce montanhas...
Onde o pai pastoreia suas ovelhas? Será que atravessamos num pé a Guiné, Mali, Níger, Benin e Nigéria, no modo breve e seguro do conto?
22 de março de 2021
pelo rio
Um bonito livro de Vanina Starkoff que se abre duplamente, como uma crônica metafísica e a metáfora do rio que é toda vida, correndo páginas, num desejo ensolarado, fluido, cheio de detalhes, até desaguar em lugares, sentidos e vivências mais amplas.
Basta você procurar algumas imagens na Internet para conferir a estética naïf que a autora argentina utilizou para retratar seus personagens e embarcações. Nessas águas deslizam a Lojinha da Dona Flor, a Escolinha da Felicidade, a Barraca do Giba, pessoas, tarefas, trocas, dizeres em gotas de sabedoria, amizade, namoros... Mesmo não tendo uma história a ser contada, visualmente descobrimos na crônica PELO RIO (Palas Mini, 2014) as pequenas narrativas e possibilidades de encontro através das estações em busca de nosso próprio ritmo.
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