peter o'sagae
Demorei um tempo para entender a obra de Juliette Binet – A MÁSCARA, publicada na coleção Histórias sem palavras em 2009, pela Escala Educacional. De fato, uma palavra há. É forte e, de sua presença, emana um feixe de ideias: a máscara, uma máscara, qual máscara? O que ela esconde e igualmente virá revelar? Na capa do livro, crianças de uma beleza já bastante antiquada, rostos de porcelana, olhando vagamente o leitor. E tudo ali tão delicado, um incômodo só.
Então, quando atendi ao convite para o Salão do Livro Infantil de Minas Gerais, em participar de uma mesa a respeito de literatura e diversidade nos livros de imagem, aqueles rostos olharam-me através da memória. A obra de Juliette Binet havia persistido em mim, ainda que à primeira vista não lhe soubesse explicar... Sim, o texto visual possui a doce magia do fazer literário!
A curta e expressiva narrativa recebeu originalmente o título de Edmond, um nome com que podemos melhor identificar o personagem principal: um rato que veste jardineira de listras vermelhas e, detrás dos aros finos de seus óculos, detrás de um alto muro de pedras largas, observa a silhueta de um grupo de sete crianças brincando ativamente com uma bola. A distância amplia o tímido desejo que se revelará sob a máscara retirada secretamente do baú...
E Edmond, compreendendo parecer como os meninos e as meninas que vê – de cabelos encaracolados com raios claros, rostos desabrochando rosados e olhos brilhantes, embora tristes –, alcança figurar entre as novas companhias. Porém, sua máscara acidentalmente cai durante a algazarra... E o rato arrasta-se para casa em passos pesados, seguido apenas pela própria sombra. As crianças olham umas às outras, numa expectativa silenciosa que sugestivamente muito tem a dizer e – então, algo de maior importância desponta. Um chifre, uma orelha comprida, um focinho peludo...
Pertencendo à conduta simbólica desde a fábula às histórias de animais, este é um belo livro de imagem que traz consigo a tensão de uma narrativa bem contada e a mensagem necessária para ser descoberta por leitores de todas as idades, sob todas as máscaras da ficção.
* Outras páginas do livro são apresentadas [aqui] e [aqui]
3 de novembro de 2011
2 de novembro de 2011
um dia ou um sonho, um menino e o leão
peter o'sagae
Mandana Sadat desenha muito mais que imagens; a autora franco-iraniana desenha relações e, sob um amplo e brilhante céu branco, abre a delicada narrativa visual que atravessa a extensa paisagem arenosa de um ensolarado deserto africano, onde um leão rubro e feroz de olhos amarelos salta sobre um menino, com seus afiados dentes arreganhados para o ataque, mas...
O movimento fatal impõe um inesperado encontro.
Sai o leão com o menino em suas costas e toda aquela imensidão árida cede lugar a uma companhia mansa. Entre as sombras poucas da savana e os animais selvagens sempre em grande número, o menino passeia imponente: o leão é seu amigo. Ninguém, no entanto, parece reconhecer sua natureza pacífica! Os guerreiros e caçadores, valentes, fortes, bravos, lançam alto e longe as lanças... A mãe corre para agarrar o seu filho. Tudo está aparentemente a salvo, em ordem. Como o homem determina.
No entanto, a visão poética de Mandana Sadat nos faz saber da indelével marca que o menino imprimiu na alma do leão. Em sonho, ele mesmo caminha sobre o céu escuro... A noite estende seu manto de segredos: igualmente sonha o menino com o horizonte último da civilização tribal... Quando poderá novamente dizer: este é meu amigo, MEU LEÃO (Escala Educacional, 2009).
Mandana Sadat desenha muito mais que imagens; a autora franco-iraniana desenha relações e, sob um amplo e brilhante céu branco, abre a delicada narrativa visual que atravessa a extensa paisagem arenosa de um ensolarado deserto africano, onde um leão rubro e feroz de olhos amarelos salta sobre um menino, com seus afiados dentes arreganhados para o ataque, mas...
O movimento fatal impõe um inesperado encontro.
Sai o leão com o menino em suas costas e toda aquela imensidão árida cede lugar a uma companhia mansa. Entre as sombras poucas da savana e os animais selvagens sempre em grande número, o menino passeia imponente: o leão é seu amigo. Ninguém, no entanto, parece reconhecer sua natureza pacífica! Os guerreiros e caçadores, valentes, fortes, bravos, lançam alto e longe as lanças... A mãe corre para agarrar o seu filho. Tudo está aparentemente a salvo, em ordem. Como o homem determina.
No entanto, a visão poética de Mandana Sadat nos faz saber da indelével marca que o menino imprimiu na alma do leão. Em sonho, ele mesmo caminha sobre o céu escuro... A noite estende seu manto de segredos: igualmente sonha o menino com o horizonte último da civilização tribal... Quando poderá novamente dizer: este é meu amigo, MEU LEÃO (Escala Educacional, 2009).
1 de novembro de 2011
e quem, um dia, irá dizer...
peter o'sagae
A tranquilidade da manhã foi rompida quando uma raposa de nariz comprido saltou para dentro do terreiro e fugiu com uma galinha! Passado o susto, zás-trás, o galo nervoso e mal humorado agarrou as orelhas do coelho que, elétrico, pulou nos ombros do pacato urso – e partiram, floresta adentro, no encalço do bandido... Os três amigos não desistem, dia e noite, noite e dia, correndo pelo chão ou dormindo no alto das árvores, cansam e descansam, subindo montanhas, descendo as encostas da praia... Eis que lá vai o ladrão de galinha ao mar!
E você pode se perguntar onde essa aventura vai acabar... Respondo: numa ilha distante, além das ondas, muitas ondas, onde chegam o urso, o coelho e o galo exaustos. A lua alta sorri, há um céu de lilás e eles avistam a luz quente de uma janela pequenina. Todos prontos para atacar – porém, neste livro de imagem narrativo de Béatrice Rodriguez, o inesperado parece acontecer, com humor, sensibilidade e inteligência. Assim, contrariando certas expectativas e os olhares mais incautos, veremos que a raposa não é exatamente o vilão da história!
Depois de LADRÃO DE GALINHA (Escala Educacional, 2009), Béatrice Rodriguez produziu mais duas narrativas em livros de imagem: A RAPOSA E A GALINHA (2010) e A REVANCHE DA RAPOSA (2011), ainda inéditos no Brasil.
A tranquilidade da manhã foi rompida quando uma raposa de nariz comprido saltou para dentro do terreiro e fugiu com uma galinha! Passado o susto, zás-trás, o galo nervoso e mal humorado agarrou as orelhas do coelho que, elétrico, pulou nos ombros do pacato urso – e partiram, floresta adentro, no encalço do bandido... Os três amigos não desistem, dia e noite, noite e dia, correndo pelo chão ou dormindo no alto das árvores, cansam e descansam, subindo montanhas, descendo as encostas da praia... Eis que lá vai o ladrão de galinha ao mar!
E você pode se perguntar onde essa aventura vai acabar... Respondo: numa ilha distante, além das ondas, muitas ondas, onde chegam o urso, o coelho e o galo exaustos. A lua alta sorri, há um céu de lilás e eles avistam a luz quente de uma janela pequenina. Todos prontos para atacar – porém, neste livro de imagem narrativo de Béatrice Rodriguez, o inesperado parece acontecer, com humor, sensibilidade e inteligência. Assim, contrariando certas expectativas e os olhares mais incautos, veremos que a raposa não é exatamente o vilão da história!
Depois de LADRÃO DE GALINHA (Escala Educacional, 2009), Béatrice Rodriguez produziu mais duas narrativas em livros de imagem: A RAPOSA E A GALINHA (2010) e A REVANCHE DA RAPOSA (2011), ainda inéditos no Brasil.
27 de outubro de 2011
na poesia do vento
peter o’sagae
Creio haver certa redundância em afirmar que possui magia e liberdade um livro de imagem. Às vezes, no entanto, é preciso recorrer ao fértil campo do exagero e da repetição para que uma ideia adquira sentido, caminho, rumo, direção... Porque uma felicidade tal sopra-nos o VENTO, da imaginação de Elma (Global, 2008), levando-nos além, leve, longe, lá onde as palavras ainda não eram o que hoje vieram a ser ô.ô
Livro de imagem, livro de liberdade – por que não? Imagem, palavra feminina que aporta na língua portuguesa pelo francês, image, é o que dizem... do latim nominativo, imago, correspondente para o grego eidos, ideia, sem ou com acento, gráfico e agudo: idéia, escrita assim me parece bem mais bem feita, com sua própria emanação radiante, pois um brilho é... Imagem de uma longínqua família proto-indo-europeia, *magh-, cintilando em palavras como magia, mago, máquina, mecânica, maquiagem, imaginação, imagem, com o sentido primitivo (quando os significados ainda não se separavam tanto) de ‘emancipar-se’, libertar-se das coisas próximas, concretas, opressoras... ô.ô Voar!
Taraxacum, taraxacum, esperança é também nome de flor, o vento sopra amor-de-homem e, pelo caminho gramado, a lavadeira leva os filhos na bacia cheinha de roupas e travessuras. Desce, desce, a ladeira, o inclinado terreno, a lavadeira de cabeça ereta. Mas o vento vem e as crianças... leva, voo pássaro flores crianças sorridentes sol céu dentes-de-leão vento sem fim, folhas vermelhas nos galhos das árvores têm bico, patas e rabicho de pena, têm. Pássaro, o vento voa! O que é pesado se eleva, elefantes: elevadores coloridos e, de uma ponta a outra, o trabalho se estica: varal aberto na manhã de sol. Avoa, flor, sonhos, taraxacum, taraxacum, lá vai a lavadeira pelo caminho!
Onde está o começo e o fim dessa história soprada por Elma? Este é um livro de imagem que se mostra em três níveis de articulação: uma narrativa sucessiva, com fatos expostos em sequência, mas sem conexões causais explícitas; uma narrativa espacial, na medida em que a última imagem virá coincidir com a primeira numa clara-declaração da circularidade da história: a lavadeira repete todos os dias o caminho, ou há aí um intervalo de sonhos das três pequenas crianças? Da estrutura que rompe a linearidade, vemos talvez um poema de sugestões narrativas, como uma descrição qualitativa de ações possíveis em torno de uma cena. Aventura imagética em que cada detalhe evoca e desperta (novas idéias: imagens) ô.ô
Vento!
Vendo
Creio haver certa redundância em afirmar que possui magia e liberdade um livro de imagem. Às vezes, no entanto, é preciso recorrer ao fértil campo do exagero e da repetição para que uma ideia adquira sentido, caminho, rumo, direção... Porque uma felicidade tal sopra-nos o VENTO, da imaginação de Elma (Global, 2008), levando-nos além, leve, longe, lá onde as palavras ainda não eram o que hoje vieram a ser ô.ô
Livro de imagem, livro de liberdade – por que não? Imagem, palavra feminina que aporta na língua portuguesa pelo francês, image, é o que dizem... do latim nominativo, imago, correspondente para o grego eidos, ideia, sem ou com acento, gráfico e agudo: idéia, escrita assim me parece bem mais bem feita, com sua própria emanação radiante, pois um brilho é... Imagem de uma longínqua família proto-indo-europeia, *magh-, cintilando em palavras como magia, mago, máquina, mecânica, maquiagem, imaginação, imagem, com o sentido primitivo (quando os significados ainda não se separavam tanto) de ‘emancipar-se’, libertar-se das coisas próximas, concretas, opressoras... ô.ô Voar!
Taraxacum, taraxacum, esperança é também nome de flor, o vento sopra amor-de-homem e, pelo caminho gramado, a lavadeira leva os filhos na bacia cheinha de roupas e travessuras. Desce, desce, a ladeira, o inclinado terreno, a lavadeira de cabeça ereta. Mas o vento vem e as crianças... leva, voo pássaro flores crianças sorridentes sol céu dentes-de-leão vento sem fim, folhas vermelhas nos galhos das árvores têm bico, patas e rabicho de pena, têm. Pássaro, o vento voa! O que é pesado se eleva, elefantes: elevadores coloridos e, de uma ponta a outra, o trabalho se estica: varal aberto na manhã de sol. Avoa, flor, sonhos, taraxacum, taraxacum, lá vai a lavadeira pelo caminho!
Onde está o começo e o fim dessa história soprada por Elma? Este é um livro de imagem que se mostra em três níveis de articulação: uma narrativa sucessiva, com fatos expostos em sequência, mas sem conexões causais explícitas; uma narrativa espacial, na medida em que a última imagem virá coincidir com a primeira numa clara-declaração da circularidade da história: a lavadeira repete todos os dias o caminho, ou há aí um intervalo de sonhos das três pequenas crianças? Da estrutura que rompe a linearidade, vemos talvez um poema de sugestões narrativas, como uma descrição qualitativa de ações possíveis em torno de uma cena. Aventura imagética em que cada detalhe evoca e desperta (novas idéias: imagens) ô.ô
Vento!
Vendo
no vento da leitura
dobras de uma oficina
Na mais doce tranquilidade, Virgínia caminhava pelo campo, como de costume. O canto dos pássaros, a brisa suave balançando as folhas das árvores e as flores... Sobre a cabeça, a mulher carregava uma bacia com seus três filhos. Enquanto caminhava, as crianças brincavam ao vento, observando os movimentos de um pano... no ar! De repente, as crianças foram levadas. Livremente, virando cambalhotas, felizes, elas brincavam cada vez mais longe, levadas, levadas pelo vento. Até que surgiram várias árvores cobertas de passarinhos, onde as crianças tentaram se agarrar. No entanto, um vento mais forte levou as crianças adiante...
** Vera, Maristela, Andréa, Gabriela e Vanessa
Rosa desce a ladeira, leva na cabeça uma bacia com roupas e seus três filhos, ali à espreita. Com o soprar do vento, uma toalha voa e as três crianças lançam-se junto à brincadeira. Livres, leves e soltas vão para a fantasia. Sentem-se voando felizes por entre flores, árvores e pássaros. Delicadamente embaladas pelos pássaros, chegam a um lindo tapete verde florido. Mas... Oooh! É o lombo de um elefante verde! De lá, escorregam pela tromba e brincam entre os grandes animais coloridos. A mamãe entra na brincadeira e encantada assopra uma flor. Num piscar de olhos, Rosa está pendurando as roupas e as crianças num varal. Que estranho! Elas acordam assustadas, mas percebem que ainda estão na bacia que está sobre a cabeça da mãe seguindo, caminhando, descendo a ladeira...
* Daise, Dário, Ilse, Neusa, Sabrina e Sandra
Dois registros de leitura produzidos a partir do texto de Elma: VENTO (Global, 2008), realizados na oficina À Leitura dos Livros de Imagem, durante o I Encontro para Formação do Professor-Leitor, em Picada Café, abril de 2009.
Na mais doce tranquilidade, Virgínia caminhava pelo campo, como de costume. O canto dos pássaros, a brisa suave balançando as folhas das árvores e as flores... Sobre a cabeça, a mulher carregava uma bacia com seus três filhos. Enquanto caminhava, as crianças brincavam ao vento, observando os movimentos de um pano... no ar! De repente, as crianças foram levadas. Livremente, virando cambalhotas, felizes, elas brincavam cada vez mais longe, levadas, levadas pelo vento. Até que surgiram várias árvores cobertas de passarinhos, onde as crianças tentaram se agarrar. No entanto, um vento mais forte levou as crianças adiante...
** Vera, Maristela, Andréa, Gabriela e Vanessa
Rosa desce a ladeira, leva na cabeça uma bacia com roupas e seus três filhos, ali à espreita. Com o soprar do vento, uma toalha voa e as três crianças lançam-se junto à brincadeira. Livres, leves e soltas vão para a fantasia. Sentem-se voando felizes por entre flores, árvores e pássaros. Delicadamente embaladas pelos pássaros, chegam a um lindo tapete verde florido. Mas... Oooh! É o lombo de um elefante verde! De lá, escorregam pela tromba e brincam entre os grandes animais coloridos. A mamãe entra na brincadeira e encantada assopra uma flor. Num piscar de olhos, Rosa está pendurando as roupas e as crianças num varal. Que estranho! Elas acordam assustadas, mas percebem que ainda estão na bacia que está sobre a cabeça da mãe seguindo, caminhando, descendo a ladeira...
* Daise, Dário, Ilse, Neusa, Sabrina e Sandra
Dois registros de leitura produzidos a partir do texto de Elma: VENTO (Global, 2008), realizados na oficina À Leitura dos Livros de Imagem, durante o I Encontro para Formação do Professor-Leitor, em Picada Café, abril de 2009.
26 de outubro de 2011
imagens como estribilho
peter o'sagae
Intrincado e belo livro de imagens de André Neves, CASULOS (Global, 2007) vai inspirar cada leitor de uma maneira diferente e qualquer palavra dita ou escrita pode ser fatal, diminuindo as possibilidades de voo do leitor...
De par em par, de baixo para cima, as páginas aqui se abrem vistosas para os casulos de uma história que é tão só uma possibilidade poética, contornando uma cena narrativa mínima: uma menina de tranças e vestido barrado de flores sobe por uma haste verde, sem espinhos, até alcançar a rosa em botão; do alto, ela estende os braços para o voo nas asas de uma borboleta... O fim da pequenina cena é talvez o começo de uma aventura solta à lógica de certas imagens que a retina acumula e voltam insones, ante a vigília: imagens que se repetem como o estribilho de uma canção. No entanto, a cada vez, reiteradas, já possuem uma força diferente. E, como nos sonhos, os espaços não sucedem acontecer um após o outro, posto que se transformam em visões simultâneas: espaço contido dentro de outro, espaço abrindo-se a partir de outro.
Pois bem: de acordo com uma antiga fórmula alquímica, o que está em cima, também está abaixo como o céu e o mar em reflexo. Porém, conforme o olhar atravessa as páginas, descobrindo a composição das imagens, rarefaz-se o efeito, pois existe um ponto de apoio para o olhar não se perder: é um ponto de partida para a leitura: as páginas exigem que as ilustrações sejam apreciadas de baixo para cima, de um modo pouco convencional.
Livro-casulo que é também sua própria metáfora para fazer o leitor voar, buscando nexos para sua interpretação. Casulos que resumem o asilo para alegrias e tristezas da menina qual Mindinha num mundo de grandes e pequenos, de muitas e nenhuma asa, no exílio de si e dos outros.
* Extraído de Dobras da Leitura 48, setembro de 2007.
** Tríptico com páginas de Casulos (2008) que utilizamos em cursos.
Intrincado e belo livro de imagens de André Neves, CASULOS (Global, 2007) vai inspirar cada leitor de uma maneira diferente e qualquer palavra dita ou escrita pode ser fatal, diminuindo as possibilidades de voo do leitor...
De par em par, de baixo para cima, as páginas aqui se abrem vistosas para os casulos de uma história que é tão só uma possibilidade poética, contornando uma cena narrativa mínima: uma menina de tranças e vestido barrado de flores sobe por uma haste verde, sem espinhos, até alcançar a rosa em botão; do alto, ela estende os braços para o voo nas asas de uma borboleta... O fim da pequenina cena é talvez o começo de uma aventura solta à lógica de certas imagens que a retina acumula e voltam insones, ante a vigília: imagens que se repetem como o estribilho de uma canção. No entanto, a cada vez, reiteradas, já possuem uma força diferente. E, como nos sonhos, os espaços não sucedem acontecer um após o outro, posto que se transformam em visões simultâneas: espaço contido dentro de outro, espaço abrindo-se a partir de outro.
Pois bem: de acordo com uma antiga fórmula alquímica, o que está em cima, também está abaixo como o céu e o mar em reflexo. Porém, conforme o olhar atravessa as páginas, descobrindo a composição das imagens, rarefaz-se o efeito, pois existe um ponto de apoio para o olhar não se perder: é um ponto de partida para a leitura: as páginas exigem que as ilustrações sejam apreciadas de baixo para cima, de um modo pouco convencional.
Livro-casulo que é também sua própria metáfora para fazer o leitor voar, buscando nexos para sua interpretação. Casulos que resumem o asilo para alegrias e tristezas da menina qual Mindinha num mundo de grandes e pequenos, de muitas e nenhuma asa, no exílio de si e dos outros.
* Extraído de Dobras da Leitura 48, setembro de 2007.
** Tríptico com páginas de Casulos (2008) que utilizamos em cursos.
24 de outubro de 2011
a vida joga bola
peter o'sagae
Livro-imagem ou livro de imagem narrativo, o que importa é a história que se inicia com um abraço e um passeio: pai e filho, no clima festivo das bandeirinhas enfeitando a cidade, as ruas todas vestindo verde e amarelo. Uma loja no caminho de ambos – e o presente, talvez insuspeitado, uma camisa oficial da seleção brasileira. O sorriso. Assim é a vida, nem precisa esperar para vestir a camisa 10 ;-) é uma festa só, uma expectativa, as ruas, a reunião com os amigos, a televisão, todos juntos, pra frente é que se joga, Brasil, um país campeão. Mas :(
... um braço suspenso no ar, um grito que não saiu do peito com bravura, um vazio, o presente desejado por tantos, sessenta milhões em ação, e que não veio...
O PRESENTE, de Odilon Moraes (Cosac Naify, 2010), talvez seja a mais extensa narrativa visual, publicada entre nós, neste gênero de livros para crianças e jovens. São, ao todo, 32 shots distribuídos diferentemente entre a capa, requadros e páginas-duplas que vão compondo três grandes sequências narrativas. Assim, à medida que as páginas avançam, cada unidade mostra-se bem delineada por sentimentos de surpresa e felicidade; depois, uma expectativa radiante e frustração; finalmente, a alegria imensa e ingênua do menino, sacudindo a poeira, dando a volta por cima, pois a história termina com um presente de maior significação para ele. Igualmente para nós.
Odilon Moraes faz livro de imagem narrativo em ritmo de crônica para falar da amizade que fica e consola, de amadurecimento, de vitória. E, claro, de futebol.
Livro-imagem ou livro de imagem narrativo, o que importa é a história que se inicia com um abraço e um passeio: pai e filho, no clima festivo das bandeirinhas enfeitando a cidade, as ruas todas vestindo verde e amarelo. Uma loja no caminho de ambos – e o presente, talvez insuspeitado, uma camisa oficial da seleção brasileira. O sorriso. Assim é a vida, nem precisa esperar para vestir a camisa 10 ;-) é uma festa só, uma expectativa, as ruas, a reunião com os amigos, a televisão, todos juntos, pra frente é que se joga, Brasil, um país campeão. Mas :(
... um braço suspenso no ar, um grito que não saiu do peito com bravura, um vazio, o presente desejado por tantos, sessenta milhões em ação, e que não veio...
O PRESENTE, de Odilon Moraes (Cosac Naify, 2010), talvez seja a mais extensa narrativa visual, publicada entre nós, neste gênero de livros para crianças e jovens. São, ao todo, 32 shots distribuídos diferentemente entre a capa, requadros e páginas-duplas que vão compondo três grandes sequências narrativas. Assim, à medida que as páginas avançam, cada unidade mostra-se bem delineada por sentimentos de surpresa e felicidade; depois, uma expectativa radiante e frustração; finalmente, a alegria imensa e ingênua do menino, sacudindo a poeira, dando a volta por cima, pois a história termina com um presente de maior significação para ele. Igualmente para nós.
Odilon Moraes faz livro de imagem narrativo em ritmo de crônica para falar da amizade que fica e consola, de amadurecimento, de vitória. E, claro, de futebol.
22 de outubro de 2011
quem vem lá?
peter o'sagae
Desde o muito horizonte, longe, um ponto vermelho, uma joaninha que se move, um veículo redondo aparece pela estrada de terra, e é assim: um rascunho de caminho até a casa. Uma casa de interior, em um sítio talvez. Logo vemos, tem porteira... Portões e porteiras são diferentes, você sabe por quê. E o menino é o primeiro a avistar o fusca se aproximando. Atrás, toda a família. Entretanto, quem chega?
Neste livro de imagem de Lúcia Hiratsuka, A VISITA (DCL, 2011), paira sempre uma pergunta no ar. Será um médico, um monstro, um agrônomo, um ogro peludo, algum parente de lobisomem? Um sujeito assustador! E o que ele veio ali fazer? De pista em pista, de cena em cena, o texto articula-se como uma narração causal e nós-leitores vamos, fisgados pelos olhos e passos do menino, habitando a sequência visual com nossa própria subjetividade, imaginando ideias e sentimentos que ficam sempre por dizer. Em cada palavra, em todas as histórias.
* Sete duplas-páginas do livro são mostradas na parte final da apresentação Livro de Imagem: Intersecção das Diferenças, de uma mesa redonda que tomei parte durante o Salão do Livro Infantil de Minas Gerais [espiar].
Desde o muito horizonte, longe, um ponto vermelho, uma joaninha que se move, um veículo redondo aparece pela estrada de terra, e é assim: um rascunho de caminho até a casa. Uma casa de interior, em um sítio talvez. Logo vemos, tem porteira... Portões e porteiras são diferentes, você sabe por quê. E o menino é o primeiro a avistar o fusca se aproximando. Atrás, toda a família. Entretanto, quem chega?
Neste livro de imagem de Lúcia Hiratsuka, A VISITA (DCL, 2011), paira sempre uma pergunta no ar. Será um médico, um monstro, um agrônomo, um ogro peludo, algum parente de lobisomem? Um sujeito assustador! E o que ele veio ali fazer? De pista em pista, de cena em cena, o texto articula-se como uma narração causal e nós-leitores vamos, fisgados pelos olhos e passos do menino, habitando a sequência visual com nossa própria subjetividade, imaginando ideias e sentimentos que ficam sempre por dizer. Em cada palavra, em todas as histórias.
* Sete duplas-páginas do livro são mostradas na parte final da apresentação Livro de Imagem: Intersecção das Diferenças, de uma mesa redonda que tomei parte durante o Salão do Livro Infantil de Minas Gerais [espiar].
21 de outubro de 2011
farfalha livro de imagem
peter o.sagae
A lagarta passa e, na capa do livro de Taisa Borges, já vira título: A BORBOLETA (Peirópolis, 2009). Este é um livro de imagem descritivo em que o percurso (do olhar do leitor, de uma vida breve) se faz: do galho ao casulo, daí rompendo um voo em asas brancas. A borboleta vai: páginas, páginas, páginas... E farfalha, sobre um espelho d’água: na folha, eleva-se à proa: sob a chuva, qual chuva, vai: e abriga-se, então. Seca à sombra. E depois...
Temos j'aí uma narrativa sequencial? Através de vários fragmentos, Taisa Borges representa o voo de sua borboleta por um espaço que muito se parece com uma floresta de perigos... Mas é tudo uma questão de ponto de vista e o leitor vai engatilhando as imagens, página a página, metonimicamente – isto é, somando partes, pistas e instantes, compondo o todo de um conjunto: há, enfim, uma cena para ser descoberta. Por onde veio, vai e voa a borboleta?
Respondida a pergunta, o que vemos é uma nova dupla-página: praticamente um adendo, um extra, uma rubrica visual que, se não faz parte do jogo da leitura iniciado desde a capa até a grande cena final, ora, ora, ora, ajuda-nos a ampliar nossa percepção do código imagético como linguagem. Vale observar bem e comentar: além de ser uma forma de registro, a imagem é recursiva e, sobretudo, exercita sua própria capacidade de fazer referência a si mesma. E a lição de metalinguagem não poderia ser mais explícita que essa:
borboleta que pousa sobre a capa de um livro com folhas verdes e fortes desenhadas sobre um fundo roxo, uma lagarta que passa, um casulo na ponta do galho... e o par das brancas asas batendo onde o título está.
* Ver mais páginas do livro de Taisa Borges, na apresentação Caiu no livro é feixe... de imagens e ideias, oficina do 18o Encontro Regional do PROLER de Caxias do Sul, RS [2:45 a 3:04].
A lagarta passa e, na capa do livro de Taisa Borges, já vira título: A BORBOLETA (Peirópolis, 2009). Este é um livro de imagem descritivo em que o percurso (do olhar do leitor, de uma vida breve) se faz: do galho ao casulo, daí rompendo um voo em asas brancas. A borboleta vai: páginas, páginas, páginas... E farfalha, sobre um espelho d’água: na folha, eleva-se à proa: sob a chuva, qual chuva, vai: e abriga-se, então. Seca à sombra. E depois...
Temos j'aí uma narrativa sequencial? Através de vários fragmentos, Taisa Borges representa o voo de sua borboleta por um espaço que muito se parece com uma floresta de perigos... Mas é tudo uma questão de ponto de vista e o leitor vai engatilhando as imagens, página a página, metonimicamente – isto é, somando partes, pistas e instantes, compondo o todo de um conjunto: há, enfim, uma cena para ser descoberta. Por onde veio, vai e voa a borboleta?
Respondida a pergunta, o que vemos é uma nova dupla-página: praticamente um adendo, um extra, uma rubrica visual que, se não faz parte do jogo da leitura iniciado desde a capa até a grande cena final, ora, ora, ora, ajuda-nos a ampliar nossa percepção do código imagético como linguagem. Vale observar bem e comentar: além de ser uma forma de registro, a imagem é recursiva e, sobretudo, exercita sua própria capacidade de fazer referência a si mesma. E a lição de metalinguagem não poderia ser mais explícita que essa:
borboleta que pousa sobre a capa de um livro com folhas verdes e fortes desenhadas sobre um fundo roxo, uma lagarta que passa, um casulo na ponta do galho... e o par das brancas asas batendo onde o título está.
* Ver mais páginas do livro de Taisa Borges, na apresentação Caiu no livro é feixe... de imagens e ideias, oficina do 18o Encontro Regional do PROLER de Caxias do Sul, RS [2:45 a 3:04].
20 de agosto de 2011
a felicidade de versos que brincam
peter o.sagae
A poética brasileira para a infância tem íntima e fortemente seguido em duas direções: a tradição popular em versos, com suas trovas e quadrinhas cantadas em roda, ou a liberdade apregoada pelos já centenários poetas do modernismo, produzindo frutos de variados sabores, uns bons, outros nem tanto, para os livros e para os discos, em páginas impressas ou nos arquivos.mp3. Mas ainda são poucos os escritores que se saem bem sucedidos ao entrelaçar conscientemente esses dois caminhos – e aqui cochicho o nome de Eloí Bocheco.
É preciso reconhecer que o folclore impõe uma métrica constante, seja trissílabos, heroico quebrado, raras vezes mais que uma redondilha maior. Também é preciso saber que, a despeito do cumprimento irregular dos versos livres, a poesia modernista caracteriza-se por um rigoroso padrão rítmico-melódico. Ambos os projetos artísticos exigem apurados ouvidos... E dicção e fôlego e desejo de soar ingenuamente, mesmo depois de exaustiva elaboração. E Eloí E. Bocheco consegue, mais e mais, transmitir de forma fácil a felicidade de versos que brincam como nossos velhos conhecidos.
Neste POMAR DE BRINQUEDO, ilustrado por Taline Schubach (Larousse, 2009, fora de catálogo), dança o limão o bota-aqui, ai bota ali o teu pezinho, um passo pra frente, um passo pro lado, com a tangerina; saboreamos um céu inteiro de estrelas de carambola ou abrimos uma caixinha com lenço bordado, quando sentimos vontade de chorar pitangas... Frutas em cores, caroço na terra, em voo, da árvore no quintal à janela, frutas em versos, beleza em penca, quem pensa, com tanto humor e disparate esse baile? Pela cerca que não há, a imaginação da autora catarinense arruma sonoridades bem jeitosas de lá pra cá e, mesmo quando abre mão da rima, não perde o requebrado lúdico do seu fazer musicado.
A poética brasileira para a infância tem íntima e fortemente seguido em duas direções: a tradição popular em versos, com suas trovas e quadrinhas cantadas em roda, ou a liberdade apregoada pelos já centenários poetas do modernismo, produzindo frutos de variados sabores, uns bons, outros nem tanto, para os livros e para os discos, em páginas impressas ou nos arquivos.mp3. Mas ainda são poucos os escritores que se saem bem sucedidos ao entrelaçar conscientemente esses dois caminhos – e aqui cochicho o nome de Eloí Bocheco.
É preciso reconhecer que o folclore impõe uma métrica constante, seja trissílabos, heroico quebrado, raras vezes mais que uma redondilha maior. Também é preciso saber que, a despeito do cumprimento irregular dos versos livres, a poesia modernista caracteriza-se por um rigoroso padrão rítmico-melódico. Ambos os projetos artísticos exigem apurados ouvidos... E dicção e fôlego e desejo de soar ingenuamente, mesmo depois de exaustiva elaboração. E Eloí E. Bocheco consegue, mais e mais, transmitir de forma fácil a felicidade de versos que brincam como nossos velhos conhecidos.
Neste POMAR DE BRINQUEDO, ilustrado por Taline Schubach (Larousse, 2009, fora de catálogo), dança o limão o bota-aqui, ai bota ali o teu pezinho, um passo pra frente, um passo pro lado, com a tangerina; saboreamos um céu inteiro de estrelas de carambola ou abrimos uma caixinha com lenço bordado, quando sentimos vontade de chorar pitangas... Frutas em cores, caroço na terra, em voo, da árvore no quintal à janela, frutas em versos, beleza em penca, quem pensa, com tanto humor e disparate esse baile? Pela cerca que não há, a imaginação da autora catarinense arruma sonoridades bem jeitosas de lá pra cá e, mesmo quando abre mão da rima, não perde o requebrado lúdico do seu fazer musicado.
19 de agosto de 2011
assim que o dia começa
peter o.sagae
Jardins de antigas casas, feitos para cultivar e olhar, ‘inda hoje vicejam na memória afetiva dos poetas. Mas, como reviver e compartilhar o verde, as flores, os insetos, terra seca, terra molhada, os pequeninos barulhos, voláteis cheiros através das palavras?
Marcos Bagno escolheu a forma curta, certa e singela da quadra com rimas intercaladas, acrescentando-lhe um dístico e, realmente, com tão pouco, coloca-nos a viver a felicidade e rir à toa, devagar, devagarinho, no ritmo de um caracol, ou apressando o passo no trem que é uma centopeia. As pinceladas de Lúcia Hiratsuka, ora pétala, ora asa, em cores brilhantes e cheias de transparências, compactuam com uma “meiga e sabia melodia” alinhavada nos versos, sugestivos, leves e bem humorados: bem amarrados. Nesse jardim tem festa, assim que o dia começa, FESTA NO MEU JARDIM (Positivo, 2010).
Jardins de antigas casas, feitos para cultivar e olhar, ‘inda hoje vicejam na memória afetiva dos poetas. Mas, como reviver e compartilhar o verde, as flores, os insetos, terra seca, terra molhada, os pequeninos barulhos, voláteis cheiros através das palavras?
Marcos Bagno escolheu a forma curta, certa e singela da quadra com rimas intercaladas, acrescentando-lhe um dístico e, realmente, com tão pouco, coloca-nos a viver a felicidade e rir à toa, devagar, devagarinho, no ritmo de um caracol, ou apressando o passo no trem que é uma centopeia. As pinceladas de Lúcia Hiratsuka, ora pétala, ora asa, em cores brilhantes e cheias de transparências, compactuam com uma “meiga e sabia melodia” alinhavada nos versos, sugestivos, leves e bem humorados: bem amarrados. Nesse jardim tem festa, assim que o dia começa, FESTA NO MEU JARDIM (Positivo, 2010).
18 de agosto de 2011
cores, ventos, radar e bartolomeu
sagae o sagae
Os sentidos cinco que temos não são radares ou fim para dividir as experiências, mas ajudar a reconstituir a essência que somos. Bem querer, colheres e descoberta. Há, nisso, algo de fenomenologia e metafísica. Para todos. Para crianças? Assim seja. Em puro estado de elevação e movimento, as palavras de Bartolomeu acordam o olhar, tecendo fantasias sobre tudo, muito, pouco e aquilo mais, o que permanece escondido atrás das coisas. Ou dentro do silêncio, para escutar os lugares que o pensamento visita, a seu jeito. Além da visão, ou delicada audição: o olfato, o paladar e o tato em roda. Pelo corpo inteiro, todos os sentidos que OS CINCO SENTIDOS têm.
Um livro de Bartolomeu Campos de Queirós publicado há tanto tempo pela editora Miguilim, em 1999, segunda edição pela Companhia Editora Nacional, em 2004, e ainda novo, belamente ilustrado e colorido por Camila Mesquita para a Global, em 2009.
Com sua prosa poética, o escritor mineiro reinventa o nosso modo de estar no mundo: eu-lírico sentindo-se finito e infinito, bem medido e acabado, com os pontos cardeais na ponta das mãos, leste e oeste, o olhar voltado para o norte e todo o sul, passado e sonhos, às costas. Reflexão e leveza, o tempo que passa, primavera, verão, outono, inverno... o coração que dispara e acolhe as sugestões que o relógio do pensamento traz, a bússola da vida. Tão perfumada de sinestesias para nos orientar por dentro, ROSA DOS VENTOS.
Outro livro de Bartolomeu Campos de Queirós, lançado em 2000 pela simpática Miguilim, que também passou pela Companhia Editora Nacional, em 2004, e ganha agora a terceira edição com ilustrações de Camila Mesquita: Global, 2009.
Os sentidos cinco que temos não são radares ou fim para dividir as experiências, mas ajudar a reconstituir a essência que somos. Bem querer, colheres e descoberta. Há, nisso, algo de fenomenologia e metafísica. Para todos. Para crianças? Assim seja. Em puro estado de elevação e movimento, as palavras de Bartolomeu acordam o olhar, tecendo fantasias sobre tudo, muito, pouco e aquilo mais, o que permanece escondido atrás das coisas. Ou dentro do silêncio, para escutar os lugares que o pensamento visita, a seu jeito. Além da visão, ou delicada audição: o olfato, o paladar e o tato em roda. Pelo corpo inteiro, todos os sentidos que OS CINCO SENTIDOS têm.
Um livro de Bartolomeu Campos de Queirós publicado há tanto tempo pela editora Miguilim, em 1999, segunda edição pela Companhia Editora Nacional, em 2004, e ainda novo, belamente ilustrado e colorido por Camila Mesquita para a Global, em 2009.
Com sua prosa poética, o escritor mineiro reinventa o nosso modo de estar no mundo: eu-lírico sentindo-se finito e infinito, bem medido e acabado, com os pontos cardeais na ponta das mãos, leste e oeste, o olhar voltado para o norte e todo o sul, passado e sonhos, às costas. Reflexão e leveza, o tempo que passa, primavera, verão, outono, inverno... o coração que dispara e acolhe as sugestões que o relógio do pensamento traz, a bússola da vida. Tão perfumada de sinestesias para nos orientar por dentro, ROSA DOS VENTOS.
Outro livro de Bartolomeu Campos de Queirós, lançado em 2000 pela simpática Miguilim, que também passou pela Companhia Editora Nacional, em 2004, e ganha agora a terceira edição com ilustrações de Camila Mesquita: Global, 2009.
17 de agosto de 2011
mágico rilke
peter o.o’sagae
O CARROSSEL, poema de Rainer Maria Rilke, faz girar beleza e cores, entre cavalos, cervos, leões “e vez em quando um elefante branco”, no desenho circular de um tempo mágico e sem fim. É a própria duração de uma volta e mais outra, e outra, adiante e avante, que sempre volta ao mesmo lugar, porém já é um lugar outro porque a imaginação sobe, desce, galopa, galopa com o verde, o vermelho, o gris “e vez em quando um elefante branco”.
Escrito em 1907, o poema “Das Karussell” vem descrever a ventura de quem gira sem ver o tempo passar, entre os sons tipicamente levenslied de um imenso realejo e os sorrisos provocados pelo alegre passeio, revivendo, no entanto, o curioso ponto de vista de quem está fora e vê as crianças passando a brincar... Um sentimento de alegria e saudade evola, renova-se na repetida passagem do elefante branco. Eis o verso-chave, vez em quando como um bordão na busca do começo-recomeço de cada volta... Rilke, um dos mais importantes poetas da língua alemã, nos conduz ao jogo sem idade da poesia e do brincar, nesse livro elegante com ilustrações da francesa Isabel Pin e a tradução de Juliana P. Perez (Berlendis & Vertecchia, 2010).
O CARROSSEL, poema de Rainer Maria Rilke, faz girar beleza e cores, entre cavalos, cervos, leões “e vez em quando um elefante branco”, no desenho circular de um tempo mágico e sem fim. É a própria duração de uma volta e mais outra, e outra, adiante e avante, que sempre volta ao mesmo lugar, porém já é um lugar outro porque a imaginação sobe, desce, galopa, galopa com o verde, o vermelho, o gris “e vez em quando um elefante branco”.
Escrito em 1907, o poema “Das Karussell” vem descrever a ventura de quem gira sem ver o tempo passar, entre os sons tipicamente levenslied de um imenso realejo e os sorrisos provocados pelo alegre passeio, revivendo, no entanto, o curioso ponto de vista de quem está fora e vê as crianças passando a brincar... Um sentimento de alegria e saudade evola, renova-se na repetida passagem do elefante branco. Eis o verso-chave, vez em quando como um bordão na busca do começo-recomeço de cada volta... Rilke, um dos mais importantes poetas da língua alemã, nos conduz ao jogo sem idade da poesia e do brincar, nesse livro elegante com ilustrações da francesa Isabel Pin e a tradução de Juliana P. Perez (Berlendis & Vertecchia, 2010).
16 de agosto de 2011
schiller para crianças
peter o.o’sagae
De Friedrich Schiller, A FIANÇA é um poema narrativo de inspiração popular, na forma de uma balada que nos levaria aos tempos de bravos cavaleiros medievais e canções de gesta germânicas; no entanto e ainda que respeitando um ritmo das novelas de aventuras, o poeta buscou a matéria de conteúdo lendário entre reis, deuses e heróis mais antigos, recriando um episódio vivido pelo incauto e jovem grego chamado Dâmon, no século IV a.C. às portas de Dionísio, poderoso tirano de Siracusa, na Sicília.
Dâmon acaba por empenhar a vida de seu amigo Pítias ou Fíntias ao rei inimigo, enquanto retorna a seu país a fim de resolver o casamento de sua irmã. Precisa voltar em três dias, irrevogáveis, senão o amado amigo morrerá em seu lugar... Porém, entraves e desastres, chuva, enchentes, ponte caída, salteadores na estrada, tudo corre contra o herói. Sem jamais desistir, Dâmon tudo vence e tem perdoada a afronta contra Dionísio, salvando assim o jovem amigo.
Esta é uma história sobre uma amizade invencível; a trama, eloquente, envolve ambos os jovens no desafio da lealdade sob toda e qualquer condição, e tem servido de inspiração a muitas outras peças da literatura e do cinema. O poema de Schiller – “Die Bürgschaft”, em língua alemã, foi composto em 1799, traduzido por Juliana P. Perez e conta com os desenhos muito bem humorados, cheios de movimento e detalhes insólitos, da ilustradora franco-alemã Jenny Brosinsky (Berlendis & Vertecchia, 2010).
De Friedrich Schiller, A FIANÇA é um poema narrativo de inspiração popular, na forma de uma balada que nos levaria aos tempos de bravos cavaleiros medievais e canções de gesta germânicas; no entanto e ainda que respeitando um ritmo das novelas de aventuras, o poeta buscou a matéria de conteúdo lendário entre reis, deuses e heróis mais antigos, recriando um episódio vivido pelo incauto e jovem grego chamado Dâmon, no século IV a.C. às portas de Dionísio, poderoso tirano de Siracusa, na Sicília.
Dâmon acaba por empenhar a vida de seu amigo Pítias ou Fíntias ao rei inimigo, enquanto retorna a seu país a fim de resolver o casamento de sua irmã. Precisa voltar em três dias, irrevogáveis, senão o amado amigo morrerá em seu lugar... Porém, entraves e desastres, chuva, enchentes, ponte caída, salteadores na estrada, tudo corre contra o herói. Sem jamais desistir, Dâmon tudo vence e tem perdoada a afronta contra Dionísio, salvando assim o jovem amigo.
Esta é uma história sobre uma amizade invencível; a trama, eloquente, envolve ambos os jovens no desafio da lealdade sob toda e qualquer condição, e tem servido de inspiração a muitas outras peças da literatura e do cinema. O poema de Schiller – “Die Bürgschaft”, em língua alemã, foi composto em 1799, traduzido por Juliana P. Perez e conta com os desenhos muito bem humorados, cheios de movimento e detalhes insólitos, da ilustradora franco-alemã Jenny Brosinsky (Berlendis & Vertecchia, 2010).
15 de agosto de 2011
quando é que a língua estala
peter o’sagae
A poesia de José Jorge Letria tem rima, sotaque e aquele ritmo da melhor cantoria: não é fado, mas é fatal: é aquele estalo da língua: portuguesa, com certeza, com invenções e sutilezas que deslizam do léxico simples e vário para os vários sentidos da palavra sobre a mesa, sobre a página impressa, sobre a ideia de quem lê José Jorge Letria sem pressa. Ou mesmo apressado pois o poeta recita e receita trocadilhos, delícias e surpresas. É o estalo da língua que deve estrelar na leitura em voz alta, alta memória, metalinguagem, literatura e história. Tudo é brincadeira, extravagância e tem um quê mais inteligente para dizer. Queres um exemplo? Vai aqui apenas um ponteio do que Letria apronta:
Disse Cabral
a Pêro Vaz de Caminha:
“Queres um pêro
para comer à noitinha?”
Respondeu o cronista:
“Vou comê-lo antes
de ir para a caminha.” [...]
O LIVRO EXTRAVAGANTE e outros poemas, de José Jorge Letria, tem organização de José Santos e ilustrações de Taísa Borges (Peirópolis, 2010).
A poesia de José Jorge Letria tem rima, sotaque e aquele ritmo da melhor cantoria: não é fado, mas é fatal: é aquele estalo da língua: portuguesa, com certeza, com invenções e sutilezas que deslizam do léxico simples e vário para os vários sentidos da palavra sobre a mesa, sobre a página impressa, sobre a ideia de quem lê José Jorge Letria sem pressa. Ou mesmo apressado pois o poeta recita e receita trocadilhos, delícias e surpresas. É o estalo da língua que deve estrelar na leitura em voz alta, alta memória, metalinguagem, literatura e história. Tudo é brincadeira, extravagância e tem um quê mais inteligente para dizer. Queres um exemplo? Vai aqui apenas um ponteio do que Letria apronta:
Disse Cabral
a Pêro Vaz de Caminha:
“Queres um pêro
para comer à noitinha?”
Respondeu o cronista:
“Vou comê-lo antes
de ir para a caminha.” [...]
O LIVRO EXTRAVAGANTE e outros poemas, de José Jorge Letria, tem organização de José Santos e ilustrações de Taísa Borges (Peirópolis, 2010).
14 de agosto de 2011
“porque a fala é um canteiro”
peter o.sagae
A imagem se antecipa, convite. Hora de nos achegarmos na estrelada poltrona azul, a cadeira do papai. Quem estica o braço e acende o abat-jour da próxima leitura? “Dorme agora sossegado / como as nuvens à noitinha / que eu fico aqui a teu lado / com a tua mão na minha.” Canta a voz que encanta a lua, luz, luzes, cantigas do bom outono, ternuras, timbres, sombras eriçadas contra o medo...
O amor é uma asa paterna que protege e faz sonhar, meninos e meninas que vão, ora mergulho, ora voo, golfinho ou rouxinol, embalados nestes versos, tesouros de som para compartilhar.
José Jorge Letria convida cada leitor a viver imagens. Hora de ouvir estrelas da boca do pai que se tem ou se pode imaginar. “Cada palavra que leres / há de alargar o teu mundo...” E, assim, predizendo boa sorte, compreensão, rimas, sorrisos, retratos de verões passados, o poeta traz para nossa paisagem interior um mar de brinquedos felizes — e, entre eles, o fingimento tão típico dos homens e meninos de sua terra, girando, nas calhas de roda! Sim, a tradição se renova a cada testemunho e testamento que
... um dia
a todos hão de ensinar
os mistérios da alegria.
Feliz domingo!
VERSOS PARA OS PAIS LEREM AOS FILHOS EM NOITES DE LUAR, de José Jorge Letria com as ilustrações de André Letria (Peirópolis, 2010), obra publicada com o apoio da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, do Ministério da Cultura de Portugal.
A imagem se antecipa, convite. Hora de nos achegarmos na estrelada poltrona azul, a cadeira do papai. Quem estica o braço e acende o abat-jour da próxima leitura? “Dorme agora sossegado / como as nuvens à noitinha / que eu fico aqui a teu lado / com a tua mão na minha.” Canta a voz que encanta a lua, luz, luzes, cantigas do bom outono, ternuras, timbres, sombras eriçadas contra o medo...
O amor é uma asa paterna que protege e faz sonhar, meninos e meninas que vão, ora mergulho, ora voo, golfinho ou rouxinol, embalados nestes versos, tesouros de som para compartilhar.
José Jorge Letria convida cada leitor a viver imagens. Hora de ouvir estrelas da boca do pai que se tem ou se pode imaginar. “Cada palavra que leres / há de alargar o teu mundo...” E, assim, predizendo boa sorte, compreensão, rimas, sorrisos, retratos de verões passados, o poeta traz para nossa paisagem interior um mar de brinquedos felizes — e, entre eles, o fingimento tão típico dos homens e meninos de sua terra, girando, nas calhas de roda! Sim, a tradição se renova a cada testemunho e testamento que
... um dia
a todos hão de ensinar
os mistérios da alegria.
Feliz domingo!
VERSOS PARA OS PAIS LEREM AOS FILHOS EM NOITES DE LUAR, de José Jorge Letria com as ilustrações de André Letria (Peirópolis, 2010), obra publicada com o apoio da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, do Ministério da Cultura de Portugal.
13 de agosto de 2011
envelhecem uns, outros inauguram a vida
peter ô, sagae
Avô que provoca estrelas no olhar do neto, tem abraço do tamanho do mundo, quando o sono voa embora: é hora de acordar e sonhar com as palavras que aprendemos e nos inspiram! Com a poesia de José Jorge Letria, a voz de todos os avós recorda e recorta a vida em seus objetos e instantes. O que hoje passatempo e brinquedos apenas são, serão amanhã aparelhos, apetrechos e coisas que vamos usar... Deixa estar. Por enquanto, um carrinho ou um barco veleiro no fim de semana, ou começo de férias, muitas viagens e um saco de histórias de outros tempos — pois enquanto o menino não as puder ler nas páginas de um livro, o velho as vem contar apenas para ouvir o pequeno dizer — Ó avô, conta outra vez!
Porque antes mesmo das histórias de fada, lobisomem ou duende, existe a história do começo da gente. Vem o avô ensinar o tempo, um tempo de ouro só: uns envelhecem, outros lançam-se na aventura de chegar com pés de vento e sapatinhos de lã. E, desse mundo, desse modo de ternuras, o poeta reprisa o futuro no dente que vai cair, nas fotografias que há de guardar, nas lembranças do seu menino no pôr de um sol afetivo à beira-mar. Uns envelhecem, já se sabe e aceita-se. E o que fica depois? Um avô contador de histórias, eterno, nas palavras que nos diz, sonhando frases, sonhando um poema cujo nome será saudade...
“Ficam os livros guardados
para depois serem lidos
enquanto o embalo do som
lhes vai enchendo os ouvidos.”
AVÔ, CONTA OUTRA VEZ é um poema-mensagem muito terno de José Jorge Letria, publicado originalmente em maio de 2003. Chega agora ao leitor brasileiro com as ilustrações de André Letria (Peirópolis, 2010), com o apoio da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, do Ministério da Cultura de Portugal.
Avô que provoca estrelas no olhar do neto, tem abraço do tamanho do mundo, quando o sono voa embora: é hora de acordar e sonhar com as palavras que aprendemos e nos inspiram! Com a poesia de José Jorge Letria, a voz de todos os avós recorda e recorta a vida em seus objetos e instantes. O que hoje passatempo e brinquedos apenas são, serão amanhã aparelhos, apetrechos e coisas que vamos usar... Deixa estar. Por enquanto, um carrinho ou um barco veleiro no fim de semana, ou começo de férias, muitas viagens e um saco de histórias de outros tempos — pois enquanto o menino não as puder ler nas páginas de um livro, o velho as vem contar apenas para ouvir o pequeno dizer — Ó avô, conta outra vez!
Porque antes mesmo das histórias de fada, lobisomem ou duende, existe a história do começo da gente. Vem o avô ensinar o tempo, um tempo de ouro só: uns envelhecem, outros lançam-se na aventura de chegar com pés de vento e sapatinhos de lã. E, desse mundo, desse modo de ternuras, o poeta reprisa o futuro no dente que vai cair, nas fotografias que há de guardar, nas lembranças do seu menino no pôr de um sol afetivo à beira-mar. Uns envelhecem, já se sabe e aceita-se. E o que fica depois? Um avô contador de histórias, eterno, nas palavras que nos diz, sonhando frases, sonhando um poema cujo nome será saudade...
“Ficam os livros guardados
para depois serem lidos
enquanto o embalo do som
lhes vai enchendo os ouvidos.”
AVÔ, CONTA OUTRA VEZ é um poema-mensagem muito terno de José Jorge Letria, publicado originalmente em maio de 2003. Chega agora ao leitor brasileiro com as ilustrações de André Letria (Peirópolis, 2010), com o apoio da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, do Ministério da Cultura de Portugal.
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