27 de outubro de 2011

na poesia do vento

peter o’sagae


Creio haver certa redundância em afirmar que possui magia e liberdade um livro de imagem. Às vezes, no entanto, é preciso recorrer ao fértil campo do exagero e da repetição para que uma ideia adquira sentido, caminho, rumo, direção... Porque uma felicidade tal sopra-nos o VENTO, da imaginação de Elma (Global, 2008), levando-nos além, leve, longe, lá onde as palavras ainda não eram o que hoje vieram a ser ô.ô

Livro de imagem, livro de liberdade – por que não? Imagem, palavra feminina que aporta na língua portuguesa pelo francês, image, é o que dizem... do latim nominativo, imago, correspondente para o grego eidos, ideia, sem ou com acento, gráfico e agudo: idéia, escrita assim me parece bem mais bem feita, com sua própria emanação radiante, pois um brilho é... Imagem de uma longínqua família proto-indo-europeia, *magh-, cintilando em palavras como magia, mago, máquina, mecânica, maquiagem, imaginação, imagem, com o sentido primitivo (quando os significados ainda não se separavam tanto) de ‘emancipar-se’, libertar-se das coisas próximas, concretas, opressoras... ô.ô Voar!


Taraxacum, taraxacum, esperança é também nome de flor, o vento sopra amor-de-homem e, pelo caminho gramado, a lavadeira leva os filhos na bacia cheinha de roupas e travessuras. Desce, desce, a ladeira, o inclinado terreno, a lavadeira de cabeça ereta. Mas o vento vem e as crianças... leva, voo pássaro flores crianças sorridentes sol céu dentes-de-leão vento sem fim, folhas vermelhas nos galhos das árvores têm bico, patas e rabicho de pena, têm. Pássaro, o vento voa! O que é pesado se eleva, elefantes: elevadores coloridos e, de uma ponta a outra, o trabalho se estica: varal aberto na manhã de sol. Avoa, flor, sonhos, taraxacum, taraxacum, lá vai a lavadeira pelo caminho!


Onde está o começo e o fim dessa história soprada por Elma? Este é um livro de imagem que se mostra em três níveis de articulação: uma narrativa sucessiva, com fatos expostos em sequência, mas sem conexões causais explícitas; uma narrativa espacial, na medida em que a última imagem virá coincidir com a primeira numa clara-declaração da circularidade da história: a lavadeira repete todos os dias o caminho, ou há aí um intervalo de sonhos das três pequenas crianças? Da estrutura que rompe a linearidade, vemos talvez um poema de sugestões narrativas, como uma descrição qualitativa de ações possíveis em torno de uma cena. Aventura imagética em que cada detalhe evoca e desperta (novas idéias: imagens) ô.ô

Vento!
Vendo

no vento da leitura

dobras de uma oficina


Na mais doce tranquilidade, Virgínia caminhava pelo campo, como de costume. O canto dos pássaros, a brisa suave balançando as folhas das árvores e as flores... Sobre a cabeça, a mulher carregava uma bacia com seus três filhos. Enquanto caminhava, as crianças brincavam ao vento, observando os movimentos de um pano... no ar! De repente, as crianças foram levadas. Livremente, virando cambalhotas, felizes, elas brincavam cada vez mais longe, levadas, levadas pelo vento. Até que surgiram várias árvores cobertas de passarinhos, onde as crianças tentaram se agarrar. No entanto, um vento mais forte levou as crianças adiante...

** Vera, Maristela, Andréa, Gabriela e Vanessa


Rosa desce a ladeira, leva na cabeça uma bacia com roupas e seus três filhos, ali à espreita. Com o soprar do vento, uma toalha voa e as três crianças lançam-se junto à brincadeira. Livres, leves e soltas vão para a fantasia. Sentem-se voando felizes por entre flores, árvores e pássaros. Delicadamente embaladas pelos pássaros, chegam a um lindo tapete verde florido. Mas... Oooh! É o lombo de um elefante verde! De lá, escorregam pela tromba e brincam entre os grandes animais coloridos. A mamãe entra na brincadeira e encantada assopra uma flor. Num piscar de olhos, Rosa está pendurando as roupas e as crianças num varal. Que estranho! Elas acordam assustadas, mas percebem que ainda estão na bacia que está sobre a cabeça da mãe seguindo, caminhando, descendo a ladeira...

* Daise, Dário, Ilse, Neusa, Sabrina e Sandra


Dois registros de leitura produzidos a partir do texto de Elma: VENTO (Global, 2008), realizados na oficina À Leitura dos Livros de Imagem, durante o I Encontro para Formação do Professor-Leitor, em Picada Café, abril de 2009.

26 de outubro de 2011

imagens como estribilho

peter o'sagae

Intrincado e belo livro de imagens de André Neves, CASULOS (Global, 2007) vai inspirar cada leitor de uma maneira diferente e qualquer palavra dita ou escrita pode ser fatal, diminuindo as possibilidades de voo do leitor...

De par em par, de baixo para cima, as páginas aqui se abrem vistosas para os casulos de uma história que é tão só uma possibilidade poética, contornando uma cena narrativa mínima: uma menina de tranças e vestido barrado de flores sobe por uma haste verde, sem espinhos, até alcançar a rosa em botão; do alto, ela estende os braços para o voo nas asas de uma borboleta... O fim da pequenina cena é talvez o começo de uma aventura solta à lógica de certas imagens que a retina acumula e voltam insones, ante a vigília: imagens que se repetem como o estribilho de uma canção. No entanto, a cada vez, reiteradas, já possuem uma força diferente. E, como nos sonhos, os espaços não sucedem acontecer um após o outro, posto que se transformam em visões simultâneas: espaço contido dentro de outro, espaço abrindo-se a partir de outro.


Pois bem: de acordo com uma antiga fórmula alquímica, o que está em cima, também está abaixo como o céu e o mar em reflexo. Porém, conforme o olhar atravessa as páginas, descobrindo a composição das imagens, rarefaz-se o efeito, pois existe um ponto de apoio para o olhar não se perder: é um ponto de partida para a leitura: as páginas exigem que as ilustrações sejam apreciadas de baixo para cima, de um modo pouco convencional.


Livro-casulo que é também sua própria metáfora para fazer o leitor voar, buscando nexos para sua interpretação. Casulos que resumem o asilo para alegrias e tristezas da menina qual Mindinha num mundo de grandes e pequenos, de muitas e nenhuma asa, no exílio de si e dos outros.

* Extraído de Dobras da Leitura 48, setembro de 2007. 
** Tríptico com páginas de Casulos (2008) que utilizamos em cursos.

24 de outubro de 2011

a vida joga bola

peter o'sagae


Livro-imagem ou livro de imagem narrativo, o que importa é a história que se inicia com um abraço e um passeio: pai e filho, no clima festivo das bandeirinhas enfeitando a cidade, as ruas todas vestindo verde e amarelo. Uma loja no caminho de ambos – e o presente, talvez insuspeitado, uma camisa oficial da seleção brasileira. O sorriso. Assim é a vida, nem precisa esperar para vestir a camisa 10 ;-) é uma festa só, uma expectativa, as ruas, a reunião com os amigos, a televisão, todos juntos, pra frente é que se joga, Brasil, um país campeão. Mas :(

... um braço suspenso no ar, um grito que não saiu do peito com bravura, um vazio, o presente desejado por tantos, sessenta milhões em ação, e que não veio...


O PRESENTE, de Odilon Moraes (Cosac Naify, 2010), talvez seja a mais extensa narrativa visual, publicada entre nós, neste gênero de livros para crianças e jovens. São, ao todo, 32 shots distribuídos diferentemente entre a capa, requadros e páginas-duplas que vão compondo três grandes sequências narrativas. Assim, à medida que as páginas avançam, cada unidade mostra-se bem delineada por sentimentos de surpresa e felicidade; depois, uma expectativa radiante e frustração; finalmente, a alegria imensa e ingênua do menino, sacudindo a poeira, dando a volta por cima, pois a história termina com um presente de maior significação para ele. Igualmente para nós.

Odilon Moraes faz livro de imagem narrativo em ritmo de crônica para falar da amizade que fica e consola, de amadurecimento, de vitória. E, claro, de futebol.

22 de outubro de 2011

quem vem lá?

peter o'sagae

Desde o muito horizonte, longe, um ponto vermelho, uma joaninha que se move, um veículo redondo aparece pela estrada de terra, e é assim: um rascunho de caminho até a casa. Uma casa de interior, em um sítio talvez. Logo vemos, tem porteira... Portões e porteiras são diferentes, você sabe por quê. E o menino é o primeiro a avistar o fusca se aproximando. Atrás, toda a família. Entretanto, quem chega?

Neste livro de imagem de Lúcia Hiratsuka, A VISITA (DCL, 2011), paira sempre uma pergunta no ar. Será um médico, um monstro, um agrônomo, um ogro peludo, algum parente de lobisomem? Um sujeito assustador! E o que ele veio ali fazer? De pista em pista, de cena em cena, o texto articula-se como uma narração causal e nós-leitores vamos, fisgados pelos olhos e passos do menino, habitando a sequência visual com nossa própria subjetividade, imaginando ideias e sentimentos que ficam sempre por dizer. Em cada palavra, em todas as histórias.


* Sete duplas-páginas do livro são mostradas na parte final da apresentação Livro de Imagem: Intersecção das Diferenças, de uma mesa redonda que tomei parte durante o Salão do Livro Infantil de Minas Gerais [espiar].

21 de outubro de 2011

farfalha livro de imagem

peter o.sagae

A lagarta passa e, na capa do livro de Taisa Borges, já vira título: A BORBOLETA (Peirópolis, 2009). Este é um livro de imagem descritivo em que o percurso (do olhar do leitor, de uma vida breve) se faz: do galho ao casulo, daí rompendo um voo em asas brancas. A borboleta vai: páginas, páginas, páginas... E farfalha, sobre um espelho d’água: na folha, eleva-se à proa: sob a chuva, qual chuva, vai: e abriga-se, então. Seca à sombra. E depois...

Temos j'aí uma narrativa sequencial? Através de vários fragmentos, Taisa Borges representa o voo de sua borboleta por um espaço que muito se parece com uma floresta de perigos... Mas é tudo uma questão de ponto de vista e o leitor vai engatilhando as imagens, página a página, metonimicamente – isto é, somando partes, pistas e instantes, compondo o todo de um conjunto: há, enfim, uma cena para ser descoberta. Por onde veio, vai e voa a borboleta?

Respondida a pergunta, o que vemos é uma nova dupla-página: praticamente um adendo, um extra, uma rubrica visual que, se não faz parte do jogo da leitura iniciado desde a capa até a grande cena final, ora, ora, ora, ajuda-nos a ampliar nossa percepção do código imagético como linguagem. Vale observar bem e comentar: além de ser uma forma de registro, a imagem é recursiva e, sobretudo, exercita sua própria capacidade de fazer referência a si mesma. E a lição de metalinguagem não poderia ser mais explícita que essa:


borboleta que pousa sobre a capa de um livro com folhas verdes e fortes desenhadas sobre um fundo roxo, uma lagarta que passa, um casulo na ponta do galho... e o par das brancas asas batendo onde o título está.


* Ver mais páginas do livro de Taisa Borges, na apresentação Caiu no livro é feixe... de imagens e ideias, oficina do 18o Encontro Regional do PROLER de Caxias do Sul, RS [2:45 a 3:04].