28 de dezembro de 2013

o futuro mora em um sonho

peter ô.ô sagae, descansando os olhos e... a imaginação


Aprendi ouvindo o escritor Bartolomeu Campos de Queirós que a vida não se divide em realidade e fantasia, pois a fantasia faz parte da realidade no signo uno da vida. E esse pensamento despertou junto a mim com a leitura do livro de imagem O BALÃO, de Daniel Cabral (Positivo, 2013), uma narrativa simples de ações sucessivas, muito simples, sem segredos, sem mistérios, apenas uma coleção de sonhos e sentimentos guardados a céu aberto.


À primeira página, um vento arrasta, levanta e empurra algumas folhas do chão, e vai enrolando e passando pelos pés das pessoas. A manhã azul, azul com nuvens, e vem lá o vendedor de balões coloridos com balões amarrados ao porta-bagagem de sua velha bicicleta. “Mamãe comprou o mais bonito para mim e voltamos para casa.” Tudo parece mais belo numa cidade de presépio, casas simples, telhados de duas águas, telhas de barro, antenas de braços abertos, gato dormindo à janela, pássaros plantados entre as flores mais simples.


Todos os brinquedos no quarto do menino despertam à entrada do balão mais belo do mundo, o balão que traz um pedaço de ar e céu dentro de si. Um balão que faz correr o menino entre as roupas brancas do varal, e faz voar seus cabelos e adivinhar outras vidas. Os lençóis estendidos: transformam-se em velas de caravelas para navegar, o sol é um desenho de círculo e riscos amarelos, e o balão é o mais belo balão para levar o menino a terras importantes. Que os bons ventos soprem! Pássaros e piratas, corrida de centopeia, girafa numérica: é preciso, afinal, calcular a altura que o menino tem e o ponto máximo a alcançar. Nas suas aventuras, incêndios, leões, carro de bombeiros, montanhas com cachecóis de nuvens, um cavalinho-de-pau vira alazão, o ursinho que vira gigante, um dinossauro que ruge, urra e até escoiceia, mas tem braços curtos demais para nos pegar. Quanto tempo se passou? Cinco semanas, cinco horas, cinco minutos em um balão. Era uma vez e não era domingo, manhã de férias, manhã de infância – mas, no meio do caminho...


Tinha uma pedra, um tropicão, tinha o fim do caminho
e o balão mais belo do mundo solta a mão do menino
e vai embora


de carona com o vento, porque é feito de céu e ar, e já aprendeu tantas histórias, e talvez tenha mesmo chegado o momento de encontrar o próprio futuro, é isso que os homens chamam destino, e quem vai saber, quem vai contar o segredo do balão que entrou pelo brilho distante nos olhos do menino. Um sorriso, simples assim é a descoberta da resignação. O vento da manhã também foi embora e o astronauta sem astronave que é todo o coração do menino põe os pés no chão. E ele caminha, rápido, ligeiro, corre, voa nos pequeninos passos largos da novidade que tem para contar à mãe, tão boa a mão da mãe segurando o menino sob o céu de ouro que se estende, cinema, noite, céu já púrpura e marinho e o balão vermelho, mais acima, no móbile das estrelas...


Simples assim a leitura, uma dobra de amizade e sonhos.
Feliz Ano Novo!

22 de dezembro de 2013

um grão de esperança

peter ô.ô sagae


Cada livro de imagem ou
um livro ilustrado para crianças é um pequeno ponto,
uma letra com que se escreve a carta de nossas leituras – e,
nesse imenso texto-vivo, texto-vida, interessam a nós
a linguagem (os procedimentos para fazer o comum mais belo e inesquecível),
o conteúdo (sim, a mensagem, não o tema) e a representação de mundo
(o delineamento ou as lentes quase sempre invisíveis com que se veem o instante agora e os vislumbres futuros). Sócrates diria o belo, o bom e o verdadeiro.

Palavras e desenhos apontam, mostram, descrevem, ilustram, iluminam, refletem e fazem refletir os caminhos por onde seguir...



Dialogando com os livros de ontem e de amanhã, afirmativamente o livro NÃO!, de David McPhail (Farol, 2011), busca – também – trazer ao leitor o melhor dos sonhos possíveis. Em sua quarta capa, escrevo:

Quando nenhum lugar no mundo nos protege,
sob um céu de fogo e artilharia, descobrimos
misteriosamente que ainda não fizemos todo o possível.
É preciso coragem para lançar uma palavra 

forte e única como um grão de esperança! NÃO – 
contra a guerra, contra a destruição, contra qualquer forma de violência!
Porque há momentos na vida em que as brincadeiras 

ficam sérias demais. 
 

* * * 

P.S.5 P.O’S viu uma pipa, um menino, um balão.
Noel Vermelho.

20 de dezembro de 2013

sonho dentro de um sonho que

peter ô.ô sagae



Há uma figura de dança e movimento
no menino. Talvez daí venha a pipa. Ao céu.
Ao telegráfico sol. O amarelo, banhado o chão de sombras.
E deitada, ainda, a pipa, varetas, rabiola, cola, papel de seda.
Vermelho. Apenas um menino construindo seu brinquedo.
E o vento enrola a linha toda fora do carretel. E o Céu
verde, viu? Uma cor tão pura, feroz. Cordão, coração. A sombra
do menino pelo chão em liberdade voa. Onde tudo é
azul.

Já não posso ler e reler ordenadamente o livro de Roger Mello,
A PIPA (Paulinas, 1997; Rovelle, 2013), uma vez que nele encontro
um sonho dentro de um sonho que se transforma em pesadelo – e
o efeito da leitura aí talvez contenha toda a sua mensagem, o significado que os olhos acolhem para depositá-lo compreensivelmente no coração – e, ao sangue correndo rumo aos pensamentos, o significado lento, lento, um dia desperte em ação moral. Pois assim apreendi, há muito, uma ideia de Juan de La Cruz que me parece propositalmente indicar o caminho muitas vezes silencioso e solitário de uma aprendizagem intransferível. Tal é o desígnio das artes.


Os olhos acolhem. O personagem e suas ações, um céu que é inesperadamente roxo ou laranja, inesperadamente o céu singrado de outras pipas, papagaios, arraias, pandorgas, califas, pentágonos, maranhões enormes quadriculados pretos e brancos em espaços rasantes e cortantes: a brincadeira termina. E as expectativas do menino viram um deserto extenso... No horizonte, então, desponta um balão dirigível. Imbatível!


O coração acorda. Entre planos e formas de aparência bastante espontânea, as cores propõem um jogo com figuras que fazem a história nascer do desenho – vão as cores traduzindo de um modo muito imediato as sensações ora ingênuas, ora instintivas, primeiras, primárias tão próximas às crianças. Aqui e ali não se pode esperar uma ilusão de realidade nas cores que descem do céu ao chão, porque não pertencem aos objetos do mundo: de fato e destino, as cores estão em concordância com os sentimentos. Em uma intensa explosão.


O pensamento. Um livro de imagem encena quase sempre sua própria mensagem na passagem por quadros e páginas. E, nesse mister, Roger Mello dispara a trama simples e sensível de um combate, muitos combates que se vê pelos ares e, por aí, espalham-se e se plantam pelos recantos do mundo – mas, até quando, a rivalidade?


Essa é uma pergunta por anos correndo. Este é um livro de imagem ainda bastante inédito na literatura para crianças, recentemente relançado, e sobre o qual não encontrei comentários a respeito – A PIPA é, afinal, um apólogo? – algo onírico e tarsila, algo nabi e profético, a expressão visual e sentimental de um artista, entre matizes de Matisse, miríades de linhas de Miró.

E, por fim, o outro sonho. Que
vem da pipa e eleva o menino,
muitos meninos em céu marinho.
É quando, talvez a paz...

18 de dezembro de 2013

Papilio innocentia

peter ô.ô sagae*


Uma borboleta azul no céu de fogo floresce e logo me leva pelo caminho leve a um cenário de casas antigas como recortes de papelão, ...emergem as casas do extenso areal lá onde resta e paira um quê de memória atravessando as ruas e portas e janelas eternamente abertas defronte às bonitas fachadas decoradas com platibandas coloridas... “Nestes dias tenho aprendido muita coisa. Andava neste mundo e dele não conhecia maldade alguma... A paixão que tenho por mecê foi como uma luz que faiscou cá dentro de mim. Agora começo a enxergar melhor...”


Há uma menina de sombras e sonhos entre as LONGAS SOMBRAS AO CAIR DA TARDE, de Cris Eich (SESI-SP, 2013), um livro de imagem narrativo romântico que inspira histórias e volteios que nos aproximam da felicidade que se afasta nas asas de um vento ligeiro, que desperta o desenho de um jardim em uma parede azul: são flores ou apenas sombras de um perfume que exala do passado?


Ah, menina, menina, menina que quase toca com os dedos o belo inseto intacto vivo, mas adivinha, já não está tão sozinha quando, ao longe, vem a ela a esguia figura de um cavaleiro, um menino, um príncipe ou não sei quem ele era toda uma vez, toda uma vida. Espanto, encanto, o que sentiu, o que viu nele a menina? “Ninguém me disse nada; mas parece que a minha alma acordou para me avisar do que é bom e do que é mau... Sei que devo de ter medo de mecê porque pode botar-me a perder...”

E então ela agora, menina, corre de volta para um lugar que não há e, abrigando-se entre as árvores, no esconde-não-esconde da ponta da barra da saia que encurta o vestido, do colo ao pescoço, da ponta do nariz, com a borboleta dos pensamentos voando perto, tão perto da fronte e “não formo juízo como” a menina obrigou-se à fuga do menino ao cair de um tempo dourado, ao chegar de outras sombras extensas que o areal em ondas vai criando à maneira de manto e montanhas...


Ah, o que veio acontecer depois já não posso contar: é o espaço por onde virá a voar longa e longe a imaginação da criança ou do jovem, como os sonhos que brotaram de uma gota d’água sobre o papel, ganhando vida, encanto, espanto. As imagens do livro permitem diversos caminhos de leitura e interpretação – e vai ser bom você me contar as histórias únicas que ao entardecer descobrir.



* O'ABRE ASPAS para Visconde de Taunay ;-)

16 de dezembro de 2013

ali onde se esconde a citação

peter ô.ô sagae


Às vezes, sinto que preciso estudar mais antes de escrever sobre alguns livros... Qual a fronteira entre o conceito (que temos) da intertextualidade e a liberdade (que queremos) da metalinguagem? Rogério Coelho tem brincado com uma série de referências literárias e visuais em seus livros de imagem de narração sucessiva que integram a série Descobertas: Lúcio e Alice (Ahom Educação, 2011), numa viagem ao interior dos livros e outros livros.


Enquanto penso, me desdobro na memória afetiva sobre os livros de imagem brasileiros que já admitem a citação a textos canônicos e originais. Não trazendo aspas para dar um destaque, os recursos da imagem podem ser mais ou menos implícitos, ou explícitos demais. Como será o resultado da leitura nas mãos da criança?

* * *

P.S.4 P.O’S. encontrou-se com dois títulos parados na esquina de sua casa, segundo a declaração de algumas testemunhas, sem saber qual deles abraçar... “Textualidades do livro de imagem e criação verbal” é o primeiro. Já o segundo, com vírgula ou dois pontos: “Textualidades, a árvore dos livros de imagem”.
Qual deles?

14 de dezembro de 2013

erra uma vez o lobo e...

peter ô.ô sagae


Realmente me diverte o livro de imagem feito por Silvana Menezes, CABELINHO VERMELHO E O LOBO BOBO (Abaccate, 2011). Produção caprichada, capa dura, páginas de guarda como um morango vermelho maduro... Ops! Essa é outra história, não é mesmo? E também é outra a história que a autora vem contar: não é a canção de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, não é o conto da tradição, não é desenho animado de televisão, mas tem bossa, memória e ritmo que mesmo os leitores mais distraídos serão capazes de fazer uma découpage, uma decupagem qualquer.

Gosto do Lobo Bobo olhando e acenando para o leitor, numa espécie de graça e pantomina que quebra a parede invisível que separa o palco e a plateia. Gosto das árvores, dos troncos das árvores, que não pedem tradução em palavras, mas uma concordância da visão sobre sua beleza e estranheza. E Cabelinho Vermelho pela floresta passa, cenograficamente, de um quadro para outro. Gosto do recurso da moldura, gosto do céu trocando de cor, é luz amarela, azul, cor de arrebol, cor de anoitecer, cor de noite escura coalhada de estrelinhas como... o vestido de uma certa Bruxinha! São realmente os elementos formais e pictóricos que me remetem a Eva Furnari e à magia dos livros de imagem para crianças bem pequenas. Mas a história, aqui é outra!


O tempo vai passando, a menina caminhando, o lobo vai se esgueirando e as sombras se alongando sem nunca tocar um fio de cabelo da Cabelinho Vermelho! E o leitor esperando, vai pegar ou não vai, o que vai acontecer quando o Lobo Bobo pular em cima da Chapeuzinho, ops! Da menina suculenta de vestido de morango maduro vermelho? E que cara de sonsa é essa, Cabelinho Vermelho assoviando?

Pausa para um comentário: todo mundo já botou o bedelho na antiga história, dizendo que o lobo era um escândalo, uma história de pouca vergonha e atrocidades; quiseram mesmo tirar o lobo de cena, mas tiraram o lenhador pois é coisa incorreta derrubar árvores, ou mudaram o papel do caçador que é coisa incorreta caçar lobos... Quiseram tanta coisa chata que ninguém mais soube o que quis, eu bem que disse, eu vem que vi, mas ninguém quis barrar a história pensando que era uma vez um caso de trabalho infantil, o primeiro delivery, serviço de entrega de comida à domicílio, afinal, coitadinha da vovó... lendo literatura para crianças? Ops, não era essa a resenha!


Era uma vez um lobo chamado Lobo Bobo – e você vai descobrir por quê, lendo sozinho a sua história, atrás de uma menina de Cabelinho Vermelho que atravessava a floresta como tão bravamente fizeram outras meninas e meninos do tempo de outrora. O que pode outra vez acontecer, ou acontecer diferente, quando a menina chegar à casinha iluminada pela lua com fumaça saindo pela chaminé... ? Adivinhe!


Que olhos grandes você tem, leitor!

12 de dezembro de 2013

no tempo em que os bichos falavam...

peter ô.ô sagae


Se eu soubesse contar histórias, a minha começaria assim: no tempo em que o tamanduá-mirim não usava colete, o xenartro, quer dizer, o estranho bicudo e desdentado chegou com uma novidade do tamanho dos seus braços para todo mundo ouvir, fosse sapo ou pássaro, fosse bicho de quatro patas ou não, todos iam ficar sabendo! Ah, se iam... E de olhos arregalados prestando muita atenção, até onça pintada, quer dizer, onça-pantera sem pintas veio ouvir, chegando alerta, chegando por trás, como sempre, num espanto só seu!


Qual seria a novidade, por que tanto falatório, o que está acontecendo bem ali, NO FIM DA FILA??? No livro de imagem de Marcelo Pimentel (Rovelle, 2011), os animais seguem calados, sem dizer uma só palavra, em uma expressiva procissão: suaçutinga, capivara, jabiru, jabuti, jacaré, cobra-coral-sem-cor, macaco, tatu, todos eles vão passando como sombras debaixo de um sol abrasante e lá na frente, quem diria, vão ganhando na pele e no pelo, na carapaça e nas asas, uma bela estamparia.


É o curupira quem brinca nos desenhos e dá cara nova, vida nova
aos animais da mata... A fila nunca termina, transforma-se em um desfile atravessando dia e noite adentro – e o sol, quando ressurge, ergue-se lisonjeiro e vermelho. É uma festa e um espanto para os bichos, vendo-se tão peculiares e bem vestidos, cada qual no seu padrão, com um motivo tão brasileiro. Mas...
toda história tem um ‘mas’, uma coisa aconteceu e aconteceu mesmo fazendo todos abrirem o bico, reclamarem com aquele ilustrador gaiteiro.

Quer saber?


Este é o terceiro livro de imagem brasileiro com uma narração espacial, após  IDA E VOLTA, de Juarez Machado (1976), e OUTRA VEZ, de Angela Lago (1984), com uma estrutura verdadeiramente circular que perpassa as páginas e a capa do livro. Marcelo Pimentel brincou também com elementos indígenas diversos, sem uma preocupação etnográfica específica, revelando um pedaço de nossa alma e nossa fauna. Ao procurar o fim da fila, o leitor pode imaginar quantas fábulas quiser, em cada gesto, em cada fala, em cada piada que está para ser contada...
Sabe a última do macaco?
E o que deu no tucano,
quando deu com o bico
no espelho?

Pois, agora, eu vou contar! No tempo em que caçadores não havia e o curupira ficava o dia inteiro sentado, folgado, debaixo da sombra de uma mangueira, um tamanduá-mirim chegou com uma novidade para todo mundo ouvir...

10 de dezembro de 2013

um limite e suas fronteiras

peter ô.ô sagae


Quanto uma possibilidade de revisão histórica a respeito do primeiro livro de imagem brasileiro para crianças, Maria Laura Pozzobon Spengler indica a existência de uma obra anterior ao Ida e volta, de Juarez Machado (1976): tratar-se-ia de Limite, do mesmo autor, publicada em 1970 pela Livraria Francisco Alves. Não conheço o livro, a não ser poucas informações e a foto registrada pela pesquisadora, no ateliê do próprio artista, mostrando a capa da primeira edição do livro.

Três questões importantes aí se impõem para quem deseja ratificar ou contrariar a provocativa hipótese. Do contexto: é certamente o primeiro livro de imagem de autor brasileiro a ter sido publicado em nosso país e, a qualquer momento, poderia ser resgatado por uma casa editorial... Da destinação: era uma obra que abriria portas à criança e, portanto, viria somar uma perspectiva aos estudos de literatura infantil? Do texto em si: Limite é um texto independente ou a segunda parte de uma versão preliminar da narrativa que deu origem à Ida e volta, que o tempo cuidou em ceifar os excessos?

* * *

P.S.3 P.O’S. fazia estranhas anotações no bloco de papel ao lado do telefone, sendo o mais comum o diagrama com as letras DS LH BRSA. Os vizinhos asseguram não terem presenciado a visita de pessoas estranhas ao condomínio, mas a investigação prossegue na desconfiança de outros envolvidos no assunto dos livros ilustrados para crianças.

8 de dezembro de 2013

onde vai com essa animação toda?

peter ô.ô sagae


É interessante observar como os desenhos animados de televisão, nos últimos tempos, contam com uma transmissão mais escassa nas emissoras de sinal aberto, passando a integrar quase que exclusivamente a programação de alguns canais por assinatura dedicados às crianças. Simultaneamente, as técnicas de animação proliferam no cinema e, em número crescente, as produções logo se encontram disponíveis nos suportes de videodisco e formatos variados de internet. Isso pode nos levar a consideração de que uma nova geração de leitores tem acentuada uma diferença quanto a recepção de narrativas audiovisuais, assimilando ritmos e padrões estéticos mais diversificados, ou defasados, em relação às crianças de décadas atrás... Ora, mas o que isso tem a ver com os livros de imagem?

Há mais de dez, em uma sala de aula, eu tentava explicar a um grupo de professoras a consistência dos movimentos e a continuidade de ação do adorável e meigo personagem de NOITE DE CÃO, o livro de imagem de Graça Lima (1991), diante da perplexidade de não entenderem a narrativa e o senso de humor lúdico poético. Hoje, em cima da mesa, tenho dois livros de Laurent Cardon que compõem a série Que bicho sou eu?, da editora Biruta, e poderia pensar: os desafios da leitura se ampliaram, em busca de um resposta criativa a essas histórias.


ARANHA POR UM FIO (2011) já é um título curioso. Se a aranha vive do que tece, está também sempre a um instante do perigo: na iminência de ser descoberta, de ver desfeita a teia, de perder um fio que era toda a sua vida. Por uma ironia sorridente, na capa do livro, a personagem balança suspensa da esquerda para a direita: é uma aranha-criança, é uma aranha-menina que já mostra muito bem a que veio...


A narrativa começa desde o berço e os primeiros passos da filha aprendendo com dona Aranha a subir pela parede sem escorregar, fixar-se no teto e... tecer a seda do próprio corpo! Das reações de susto, medo, incredulidade, a aranha-menina é estimulada a imitar os gestos da mãe. Claro que ela se enrola, embola, se enfeza, enfrenta todas as dificuldades para criar geometrias perfeitas, inventa e sente-se uma artista incompreendida, mas descobre um caminho de estudos, artes e rendas, para viver bem a sua natureza... sem depender de ninguém!


SAPO A PASSO (2012) não é um manual de sobrevivência, mas poderia ser... No seu mundo aquático, o girino-menino mal sabe que pode se afogar com o ar e arrisca-se a espiar acima da superfície! Mas é preciso aprender a esperar a hora certa e suportar a vidinha anfíbia entre a infância e a fase adulta. E esperar, esperar, até o dia de subir e cantar como o mais irresistível batráquio da lagoa...

* * *

Mais do que utilizar recursos das histórias em quadrinhos, Laurent Cardon introduz a linguagem e a lógica do story-board, que é o roteiro visual para filmes e desenhos animados. Isto favorece que o desenho repense e se refaça na dinâmica do próprio movimento que pretende sugerir, criando um encadeamento contínuo, mais orgânico e melhor organizado no espaço da página – um espaço que, muitas vezes nos livros de imagem do autor, funciona como o único cenário. É como se os personagens pudessem caminhar em cima da prancheta de animação e reconhecessem os limites impostos pelos quatro lados – tal como a aranha que sobe a parede ou... o canto da página à direta?


Sem cenários trabalhados detalhadamente, os personagens podem expressar velocidade nos gestos, uma rápida alteração nos estados de humor e, em especial, um trânsito de pensamentos e afetos se comunicando por rostos cheios de personalidade. Temos nos desenhos de Laurent uma verdadeira animação – mas, como ele mesmo afirma: “É bom não se esquecer de que a criança, apesar do que possa parecer, tem dificuldade, quase preguiça, de ler um livro de imagem porque a leitura pede mais concentração do que uma história narrada (...) A criança, muitas vezes, não entende por distração; basta fazer umas perguntas precisas e a compreensão se desencadeia.” Concordo, concordamos com Cardon.

5 de dezembro de 2013

é livro de imagem ou...?

peter ô.ô sagae


Os quatro títulos da coleção O que é? O que é?, de Guido van Genechten (Gaudí, 2009), pertencem a classe daqueles “livros difíceis” para os estudos convencionais de literatura infantil e seus gêneros. Afinal, o que eles são? Livros de imagem ou livros-brinquedos? No vira-desvira de páginas, há alguma coisa para uma criança ler? E o leitor adulto, sério e perspicaz, como reagiria? Aliás, quem pode ter mesmo certeza de que há página aí? Eis uma longa folha de papel cartonado, resistente e brilhante, que se desenrola sobre cinco vincos, cinco dobras, e alcança setenta centímetros. A sequência de imagens dá leitura?

Pois bem: este experimento se articula divertidamente com nossas perguntas sobre o objeto, em cada título de Genechten que aqui será aberto como um jogo de adivinhas em encaixe. Afinal, não é a adivinha uma forma literária?

É UM RATINHO? Sim, é... e o pequenino carrega um queijinho e o seu focinho vira um tremendo bico de pinguim. É um pinguim? A ponta do “nariz” vira o rabo de um macaco, que vira rabo de cobra, que deu nó no próprio pescoço, que vira... a tromba de um elefante! Nada seria mais inteligente ou importante, se a mesma extremidade não unisse, num só livro, o pequeno e o gigante, o ratinho e o elefante...

É UMA RÃ? Ou poderia ser perereca ou um sapo sorridente e verde? Talvez uma tartaruga, um cágado ou jabuti de casca dura? Uma lagarta mole, um largatão em pé, um dinossauro a passeio? Um jacaré deitado ou um crocodilo esticado? De fato, não seria mesmo atraente ou interessante, se soubéssemos apenas os nomes de todos répteis e anfíbios, quem tem e não tem veneno, onde se esconde o perigo verdadeiro, se um bicho desses viesse pra cima da gente...

É UM CARACOL? Ou um caramujo que um mosquito vê passar pelo gramado? Será que é uma borboleta com sua espirotromba enrolada ou uma mariposa que errou de hábito, hora e entrada? E de novo verei o rabo pelado de um rato... ou rato vestido de óculos escuros e maleta? É uma minhoca que alguém desenterrou? Ou... Cuidado! É a língua pegajosa que desenrola o camaleão camuflado no verde, salivando pelo mosquito... do outro lado! Sem a fome e a beleza, nada mais é tão surpreendente ou emocionante, por entre os seres do tamanho mais insignificante...

É UM GATO? Ou um miminho do mato que estica a ponta da orelha? É um pato de verdade ou de plástico? Quem abre a asa é o papagaio, ou o periquito ou a cacatua, qual parente aí se insinua? É uma lula, um calamar, que bizarro molusco marinho tem os pés na cabeça? É entranha toda essa coisa mole e estranha? E quem aí sabe que é oco o belo bico do tucano? Não seria nada diferente ou mirabolante, se bichos de pena ou pelúcia, domésticos ou selvagens, vivessem bem a sua vida, ora perto ou longe da gente!



E enfim: que livros são esses? Sempre penso o quanto é chato todo papo que um livro ajuda, serve, estimula, bah! se o livro não pula para dentro da nossa imaginação, se não provoca cócegas nos neurônios, nem dá corda aos nossos sentimentos... Ora, vale pensar quanto a função pedagógica realmente só funciona, quando toma corpo de uma função poética e lúdica da linguagem. Devemos, pois, distinguir se um livro vem apenas transmitir às crianças noções básicas para uma aprendizagem qualquer ou somente busca afastá-las das atribulações da vida dentro de casa. Entreter para ter os pequenos leitores distantes? Não há maldade maior... Agora, se um livro de imagem – nesta margem possível dos livros-brinquedos e dos livros-jogos – consegue transformar-se num livro-vivo, um livro-surpresa, muito bem. Com certeza está dentro do campo literário! 

 *

P.S. Revisto em 19.nov.2022