27 de setembro de 2014

árvores de vida e boa sorte

quase crônica, Peter O'Sagae outra vez...



Todos nós temos um sonho das coisas que desejamos ser para não perecer. Joaquim sonhava em ter uma semente no umbigo. Ele era um menino destinado à liberdade das coisas da natureza, como o vento, o morro e o rio, particularmente um rio da largura de seus ombros mais belo que qualquer outro que um poeta poderia inventar, porque corria pela cidadezinha onde nasceu o menino: um rio que lava a alma e leva um pouco de sua pessoa a um outro mais caudaloso, percurso de rio afora...


Com uma prosa delicada, Fábio Monteiro escreveu COMO NATUREZA, um texto que deságua na companhia das aquarelas de Elisabeth Teixeira (Abacatte, 2013) para representar um lugar mais distante que o infinito. Em uma primeira leitura, este lugar é própria infância e sua psicosfera especial que se abre, cresce, ilumina-se e pode se desenvolver através de belezas, ainda que uma dor se enfie como agulha pelo umbigo de Joaquim... Numa noite fria, veio o sintoma da rápida doença que o médico descobriu, então, enraizada pelo corpo do menino. “A mãe baixou a cabeça para esconder os olhos que choviam. O pai entendeu a gravidade e foi embora para sempre.” Porém, Joaquim sorriu. Compreendia que uma vida nova transbordava dentro de si. Viraria semente para ser plantado na terra. E assim foi.


Através de uma narração ligeira, o infinito desdobra-se na segunda leitura como o campo onde se cultivam as saudades, onde cresceu bela uma grande árvore – porque existia amor!

É essa imagem viva de otimismo de que necessitam a literatura infantil e seus leitores, resposta compreensiva e consoladora para uma ocorrência natural no percurso humano. Como as plantas e os animais, nascemos, crescemos, desenvolvemos e fenecemos – mas, também se extinguiria o sentimento que não é matéria, no mesmo instante? Uma mensagem de esperança vem aninhar-se em muitos corações, nos livros para crianças, sob o simbolismo da árvore da vida que se renova a cada semente lançada na direção do futuro.


Regina Chamlian e Helena Alexandrino, com intensa suavidade e alegria, convidam o leitor iniciante a caminhar com uma família de tartarugas terrestres e a pensar na importância de uma vida muito longa como o tempo quarando histórias. Não era à toa que vovô sempre fechava os olhos para ver melhor as aventuras nas antigas tardes cheias de sol... e batia forte o coração de Albertina, a menor de todas as tartaruguinhas. Se passa o tempo, passa também o vento para tirar o mundo de seu lugar e uma lengalenga apressa a morte do avô. Albertina não disse uma palavra, não chorou uma lágrima. Porém, chovia. Dentro de seu coração.


Com o livro VOVÔ VIROU ÁRVORE (Edições SM, 2009), as autoras revelam que os sentimentos jamais terminam e não há esquecimento para quem costura histórias de uma vida em outra vida, com os frutos mais doces dos laços familiares colhidos pela memória!


* * *

P.S. Ontem o começo da tarde era azul, retirei a caixa do esconderijo de presentes que guardo meses e anos, sem abrir. A caixa veio um pouco amassada para cima da mesa. Dentro, livro, literatura, segredos, sete envelopes contendo sementes de crisântemo, girassol, cravo vermelho, cravo branco, camomila, amor-perfeito mais amor-perfeito de Regina Chamlian e Helena Alexandrino. Gratidão por essa companhia palavra e imagem, doze horas da noite, doze horas do dia. No entanto, não sou eu hoje o aniversariante. Meu pai é quem nasceu no dia 27 de setembro – e isso faz muito tempo. Para ele dedico a amizade com escritores e ilustradores...


Se a literatura para crianças
também não nos serve, a quem servirá?


25 de setembro de 2014

ouvindo conversa alheia

Peter o.O'Sagae


É interessante observar como, na criação de textos para crianças, uma mesma cena pode gerar ou promover narrativas completamente diversas. Ou não?

Eva Furnari conta:
Era uma vez uma cidade bem pequena. Tinha seis habitantes. Todo fim de tarde eles iam para a praça conversar. Sentavam-se sempre no mesmo lugar e diziam as mesmas coisas: 
— Puxa, que calor! 
— Calor horrível! 
— Como vão os negócios? 
— Vão mal. 
— O ano que vem vai ser pior. 
— Vai. 
E conta Hermes Bernardi Jr...
Morria a árvore no centro do vilarejo. De pés descalços, os habitantes do lugar desfrutavam do conforto de suas casas. Nunca pisavam do lado de fora. Temiam machucar os pés. Todos os dias, as janelas das casas se abriam. 
— Vai chover. 
— Acho que vai. 
— Vai nevar. 
— Talvez. 
— Mãe, posso passear? 
— Vem aí uma tempestade. 
— Se vem! 
— Até outro dia! 
— Até!


A sátira dá o tom. As personagens de Eva Furnari são cômicas e a ilustração contribui para completar e ampliar o efeito da mensagem – em suas banquetas de assento baixo, pés paralelos, pernas cruzadas, mãos no joelho ou no colo, braços fechados, mãos segurando a cabeça, o pescoço torto, um ouvido espichado, o nariz virado de lado, os olhos procurando alguma coisa, o silêncio, um fio de cabelo fora do lugar etc. Existe, na cena, um equilíbrio incômodo: seis personagens em busca de um assunto, debaixo de uma árvore de galhos simétricos, debaixo de seis passarinhos sentados... O que eles contam? Uma piada?


Pois o livro COCO DE PASSARINHO (Companhia das Letrinhas, 1999, Moderna, 2013) pertence ao gênero das anedotas.


Entre o ridículo e o desânimo, a crítica de Hermes Bernadi Jr. é contrabalanceada por uma ilustração sem figuras definidas, ou definitivas. A árvore voa da tinta para o papel, mostrando-se aos poucos. Hermes lançou mão dos pincéis e do movimento rápido para sugerir uma árvore que página a página vai ganhando seu colorido: sapatos ou flores? O texto de PÉ DE SAPATO (Biruta, 2011) conta-se como uma sugestão de lenda.


* Conheça a história na [postagem anterior]...

23 de setembro de 2014

das árvores textuais

Peter O'Sagae


Diferentes histórias para crianças lançam suas raízes sobre os gêneros da literatura oral, na forma de apropriação ou estilização dos velhos esquemas textuais. Sentemos à sombra das palavras e das alegorias, por favor...


KAMAZU é o reconto de uma lenda angolana, com texto e ilustrações de Carla Caruso (Mundo Mirim, 2012). Órfão e escravo entre os negros de sua terra, após ter sido empenhado como pagamento por um tio, Kamazu sonha e muito trabalha para libertar-se. Ao final do dia, descansa protegido por um baobá, árvore robusta de imensa força simbólica: longevidade, paciência, permanência... Então, veio, uma noite, uma voz que o levaria à visão de um rio. Porém, Kamazu não deu a devida importância à mensagem da natureza que sempre penetra o sonho dos homens. A voz voltou para acordá-lo e, então, o fez caminhar para o curso de seu próprio destino: conhecer os segredos das plantas para curar a dor dos animais e dos homens, libertando o próximo para libertar a si.


Nesta apropriação de uma narrativa tradicional, Carla Caruso deu um nome ao herói e acrescentou outros elementos da cultura mágica africana, como as sombras que se movem alimentando os bosques de mistério e uma verde pedra calubungo, espécie de pedra filosofal que potencializa as propriedades medicinais das ervas combinadas.


SABELÁONDE é um livro ilustrado de Cristiana Valentini e Philip Giordano, com tradução de Maria Amália Camargo (Caramelo, 2012). Trata-se de um apólogo a respeito do amadurecimento interior: enquanto muitas sementes esperam a passagem do vento para caírem no mundo, e virarem árvores, e começarem a falar, sabeláonde, sabeláquando, uma semente pequenina preferiu agarrar-se à copa de uma cerejeira no alto de uma montanha deserta, ou melhor, quase deserta. Lá permaneciam a árvore e sua semente, recebendo abrigo e agasalho contra a chuva, o sol ardido, as ventanias frias, por mais um dia, um dia, um dia... A sementinha no entanto não aprendia a falar. Confiante e contente, apenas sorria a todas as perguntas que a árvore perguntava, até que um pássaro roubou a companhia entre ambas em uma manhã de outono. Seria o fim, ou o começo de uma nova estação, em outra montanha, não muito distante, sabeláonde, do outro lado da campina?


No diálogo com o passado fabular, o apólogo moderno ainda se concentra em temas do cotidiano, humanizando uma aprendizagem. Contudo, a figura do ouvinte tradicional, preocupado em defender-se dos interesses e das imposturas sociais, passa a reviver uma relação mais íntima, familiar e existencial.


PÉ DE SAPATO, com texto e ilustrações de Hermes Bernadi Jr. (Biruta, 2011), traz uma alegoria ou uma história de muitas histórias. Enquanto uma árvore morria, bem no centro de um vilarejo, os habitantes recusavam-se a sair do conforto de suas casas. Eles viviam descalços, verdadeiramente presos, com medo de machucar os pés. Por isso, bem pouco conversavam na hora que um e outro abria ou fechava a janela. Um sapateiro chegou ao lugar, sem que ninguém lhe desse atenção, tão bem pareciam viver as pessoas descalças dentro de casa... Mas o sapateiro fez tamancos bordados, chinelas de seda e fitas, sapatos de couro, botas pintadas, sapatilhas e sandálias de várias feitios que se acumulavam sob a árvore, depois em seus galhos ao modo de flores coloridas – e, como os pássaros da ilustração, Hermes conta que os olhos viriam espiar e pousar sobre os sapatos através da fresta das janelas.


O clima pertence à natureza dos contos mágicos, com vocação para a lenda: uma menina se achega da árvore e escolhe calçar o primeiro par de sapatos! Ela é uma espécie de Cinderela abrindo caminho para as pessoas daquele lugar, inventando histórias e voando por outras estradas porque os pés jamais viverão nus, dentro de casa, outra vez.

21 de setembro de 2014

Bartolomeu e a árvore

Peter O'Sagae


O que caracteriza um texto de Bartolomeu Campos de Queirós?

Em A ÁRVORE, livro com ilustrações de Mario Cafiero (Paulinas, 2010), é uma aptidão lírica para tornar presente um objeto, primeiramente por uma relação de pertencimento e uma qualidade sensível: “Eu tenho uma árvore. Minha árvore é verde e...”, acomodando, em nossa retina, uma visão rememorativa em estrutura, forma e cor. A imagem da árvore ali está: em meio às palavras.

Soma o poeta rapidamente uma metonímia, lembrando que uma árvore “suporta um mar de folhas”. Então, adensa a descrição com adjetivos e uma humanidade que só poderiam vir do próprio observador: “Minha árvore tem uma copa redonda e crespa copiando o mundo.” E, frente às demais coisas, sua árvore torna-se uma paisagem singular... “A brisa sopra nas folhas e faz ondas na superfície. O barulho das folhas parece água correndo entre cascalho.” E, da tangibilidade de vários elementos, desse roçar palpável e sonoro, Bartolomeu abre o convite e a ordenança. Claramente diz: “Para escutar, é necessário afinar as conchas dos ouvidos. Só as conchas gravam o barulho do mar.

Em um repente, a imagem salta da palavra e parece já distante, diluindo-se... Contudo, sabendo o efeito que provocou, o escritor puxa leitor para mais perto de sua realidade: “A sombra de minha árvore se estica pela sala da minha casa. A sala fica na penumbra. Na penumbra eu penso com mais preguiça.


A árvore de Bartolomeu torna-se, como dizem os filósofos, inteligível. Criança ou adulto pode compreender sua existência e amá-la. Deixado o primeiro parágrafo para trás, as relações da árvore com outros seres viventes fatiam o tempo, congelam-no em quadros: a árvore é casa para passarinhos, sala de esperar borboletas, esconderijo de cigarras, grilos, lagartas com vocação para rendeiras, formigas interessadas em açucares – e, mesmo tendo debruçado o homem sobre a janela, a alma do poeta voa dentro da árvore que lhe pertence. É assim que ele dela extrai a seiva e a substância ideal, buscando palavras para transmitir esse conhecimento.


Mas não é um conhecimento tecido em conceitos científicos. É uma experiência para ampliar os sentidos – da visão, da escuta e do tato, andando por lembranças de sabores, cheiros e temperaturas diversas – a fim de ampliar os significados que a mente, alerta, sonolenta, acolhe para decifrar. Quando se apercebe de si, o leitor pode ter todas as árvores em um só texto, com seus botões e flores, mistérios e perfumes, e novas relações, descobertas, desenhos que se multiplicam por um caprichoso exercício com a linguagem verbal. Já a árvore não é uma, porém milhares. Ou um milagre.

O universo tão imenso parece pequeno e verde, cheio de esperanças entre a folhagem que cresce e estampa o céu.


19 de setembro de 2014

verde para ver todas as cores

Peter O.o'Sagae


“Quem espera”, diz Christina Dias, “logo vê que a cor que arromba a visão não é o verde. É o vermelho.” Pois era vermelho o fruto que se destina a chama a atenção do Uirapuru – não era, porém, macio ou maduro como qualquer pássaro poderia supor, tinha uma casca de pedra!


Uirapuru cantou e convocou para o alto o Bicho-pau que chamou o Rei e a Rainha Cupim que foram buscar o Tamanduá de Colete que, enfim, conseguiu, com o próprio peso, derrubar o fruto redondo e duro. Mas a bola como pedra não se partiu... O MISTÉRIO DA BOLA CASTANHO-AVERMELHADA, com ilustrações de Aline Abreu (Frase e Efeito, 2009, Jujuba, 2010) é uma narrativa em lengalenga inventada por Christina Dias, ao sabor dos contos acumulativos tradicionais, com um fraseado bonito e elegante para o pequeno leitor habituar-se com o colorido da linguagem literária.


Os animais da floresta vão se reunindo para abrir e descobrir quê fruto é esse. Pouco pode a Preguiça, também pode pouco quem tem quatro pés, Paca, Tatu-galinha, Anta ou Quati. Nem a suçuarana de pelagem vermelha que não teme confusão. Nem Jacaré-açu, Boto ou Pirarucu. Fruto redondo e duro! Bichos do ar, da terra e da água nada conseguem e o fruto castanho-vermelho vai rolando pela floresta, enrolando o leitor pelo emaranhado de traços e rastros da fauna brasileira até as mãos de uma menina Kaiapó. Ela pega do facão e, num golpe só... estará resolvido o mistério!


Nas planícies da África, contra o vento seco, crescia uma árvore maravilhosa, carregada de frutos também vermelhos, bem vermelhos, redondos como melões, suculentos como tâmaras e o aroma... Ah! o aroma das mais doces mangas. Porém, uma enorme serpente vivia enrolada ao tronco e apenas cederia passagem àquele que dissesse o nome da árvore.

O Elefante, a Girafa, a Zebra, o Macaco e a Tartaruga andavam famintos – mas, você sabe, a fome dá coragem, garra, velocidade e persistência. Um a um, eles vão consultar o Rei dos Animais que muito longe morava a fim de descobrirem o nome da árvore e do fruto cobiçado.


BOJABI, A ÁRVORE MÁGICA, de Dianne Hofmeyr e Piet Grobler, tradução de Carolina Maluf (Biruta, 2012), é outra narrativa em lengalenga. O perigo não estava no caminho a ser desenrolado debaixo do sol, que é rei de calor, nem na força do monarca da floresta africana que é o Leão... A Zebra tropeçou na língua e disse: Bongani! O Macaco coçou a cabeça: Munjani? O Elefante, justo ele: Umfani! Quem haveria de guardar consigo e lembrar-se do nome da árvore mágica, a Tartaruga ou a Girafa? Pois saiba, o perigo à conservação da vida sempre é perder a memória!


17 de setembro de 2014

não importa onde

Peter O'Sagae


Já não importa onde você esteja, quando possui um sonho, uma imaginação aberta para as demais pessoas, porque sonhar fechadamente é sinal de timidez e egoísmo. Mente fechada, fachada sobre a qual o tempo pousa e seca, não oxigena, não transforma o que permanece secretamente guardado no peito, na alma, na correnteza do sangue. Sonhar exige coragem. É, eu penso hoje assim. Amanhã desejo mudar. E também gostaria de ler poucos livros. Talvez você não compreenda isto, nada me fadiga tanto que um livro ser igual aos livros do dia anterior.


Pois, acordo toda manhã buscando temas de inspiração. E escrevo, quando os encontro... “Era uma vez um rei. E o rei se chamava Alexandre.” Seus olhos estão sonolentos, olhando ainda uma página que já passou... Um pássaro à esquerda, página que é rápida passagem para o pequeno e grande leitor. O pássaro, no entanto, tem o corpo vermelho e chamará nossa atenção por trás das grades de metal delicado, feito Alexandre sentado entre as colunas de mármore. O trono é vermelho, um par de asas. E isso é uma me-tá-fo-ra...

E fora do castelo, terras e terras, mares e mares, Anna Cunha pintou uma paisagem verde para o texto de Alaíde Lisboa: O AVIÃO DE ALEXANDRE (Peirópolis, 2013). Em uma linguagem simples e pausada, que as palavras se repetem sem repetir ideias, a história narra o desejo do menino rei abarcar,
 

num só lance, o vasto olhar sobre os domínios do mundo. Como muito ainda teríamos de aprender, antes que Santos Dumont pudesse inventar o avião, será um barco que Alexandre arremessará para o alto no rastro de duas águias... Sem limites para o sonho, o menino pensava, inspirava-se e pesquisava as oportunidades tão próximas de si. Sonhar o futuro é uma bela aprendizagem para o leitor.



E o vislumbre pode unir pessoas – tal é o argumento do austríaco Heinz Jansich, a bordo de O AVIÃO DOS SONHOS, registrando o diálogo de dois meninos sentados no banco de uma praça. Enquanto esperam os pais, seus olhos encontram um superjato cruzando o céu, um trem, um barco a vela, piratas, caubóis, índios, uma lesma com propulsão ultra-veloz, uma baleia voando como nuvem cheia de tempestade... Samuel e seu amigo alimentam a imaginação um do outro, é isso o que importa e aí está toda a cena da brincadeira. Com tradução de Elisa Zanetti, as ilustrações do dinamarquês Søren Jessen fundem os dois espaços: o banco da praça e o abraço da fantasia (Biruta, 2012).


Talvez o maior o sonho da linguagem seja vestir um poema. E aí podemos crer que tudo durma – cegonha, enguias, e vislumbre um futuro – fogo, aleluia, cavalinhos-marinhos – e, por fim, agite-se – tapete, coruja, rio, arranha-céu... Um dos maiores livros em minha estante, 40 por 28 centímetros, bem lembra o jornal que todo dia Oswald de Andrade abriria no Esplanada hotel: uma janela. É um livro, um livro cujo título é um convite para pensar...


O TAMANHO DO MEU SONHO, do escritor Przemyslaw Wechterowicz e da ilustradora Marta Ignerska, premiados autores poloneses, conta com uma recriação sugestiva de Bronislawa Altman Mello (Biruta, 2010).

Na língua original, Wielkie marzenia significa apenas “grandes sonhos”, e a obra poderia ser vista e lida como uma galeria exibindo o grande sonho de diferentes animais e objetos habitualmente inanimados. Mas temos aqui um pouco mais. No título em português, uma presença que diz “meu sonho” e comigo vem conversar, e vejo-me a pensar também qual o tamanho do meu sonho. Pois a tradutora personificou cada coisa, cada criatura. E o que era quase uma legenda, um verso rápido com gosto de trava-língua, virou uma pequena sequência narrativa. Se não era possível traduzir todos os sons, a escolha foi manter uma insólita visão sobre o mundo.

Jetka: 
jeszcze jeden dzien zycia.

Aleluia (ou efemérida): 
mais um dia de vida. 

A aleluia reclama:
nessa minha vida tão curtinha, eu tinha
de viver mais um dia de muita alegria.
Piec: 
chociaz na godzinke 
zamienié sie w chmurę. 

O forno: 
uma hora, porém, 
me transformo em nuvem.

O forno pede gritando:
eu queria ser uma nuvenzinha
nem que fosse por uma horinha.

* Acima, o texto original em polonês, seguido de uma tradução +/- literária/literal e as soluções narrativas de Bronislawa Altman Mello, respectivamente.

14 de setembro de 2014

outros brasileirinhos

Peter O'Sagae


Todos os meninos de rua são diferentes – ainda que passem através da gente tão iguais no compasso imóvel do rinoceronte da cidade. Dizia Maria Dinorah (1986) que o abandono tem pés de cimento e o peito de ferro. E pergunto qual a ponte entre os negros, loiros e pardos... Talvez seja “um ar de pouco tempo sobre a idade”, porque o problema não é mesmo a cor, é crescer. Na rua. E arranjar um lugar para ficar, passar o tempo e dormir. E, então, um pedaço de papelão para se arranjar. E mais outro pedaço de algo para matar. A fome. E tomar cuidado com ela. A fome. E não folgar demais. Que ela devora...

Um livro de retratos – para todo mundo não esquecer de olhar as ruas – escreveu Délcio Teobaldo com os olhos tardonhos e flagrantes de PIVETIM (Edições SM, 2009) Prêmio Barco a Vapor 2008.

Não se trata de um moleque de oito anos, somente. Talvez ele tenha onze, não dá para saber, corpo pequeno, onze anos e meio, sem registro de identidade. Um dia, viu a família dar as costas e fugir. Sim, às vezes a família é quem foge da gente, do primeiro campo de visão e afetos. É assim, vivendo hoje em situação de rua e – que dirá se amanhã vai dar para contar com confusão ou trabalho. Vender flores para os casais nas mesas dos restaurantes. Ou castanha, ou amendoim. Pivetim, Pivetim, acostumado a entrar pela porta dos fundos, um bico aqui, outro ali, rumo à cozinha, lavando pratos, ganhando o possível e o devido, entregando metade do dinheiro nas mãos do guarda, que é a coisa erroneamente certa que se faz pra continuar vivo. Na paz, sem inimigos, em trânsito.

E eu digo: não é apenas um. Tem Pivetim, tem a comuna – Carol, Maravilha, Bala Perdida e Dimba. Mas poderiam ter quaisquer nomes de guerra: Dora, Professor, Sem Pernas, Gato ou Pedro Bala. Que diferença faz? Se é Carol, essa ou aquela menina, a violência não amaina. Poucas sobrevivem. Maravilha é esperança e fé, comprou um álbum para guardar os pais que encontrava nas bancas de jornal e revistas. Bala Perdida mostrava sempre a cicatriz no alto da cabeça para inibir. Dimba logo, logo vira sujeito-homem e terá muito mais a perder...

Em um estilo cinematográfico de capítulos curtos, os retratos adquirem movimento e expressão; os diálogos são rápidos, por vezes incompletos ou cifrados com as gírias que podemos ouvir nas praças e debaixo das marquises no Rio de Janeiro, São Paulo ou Salvador. É um livro cheio de vozes e afetos, um romance que acaba chamando o leitor para dentro das cenas. É uma roda viva, máquina viva das cidades com seus rinocerontes de cimento e ferro, pedra e navalha, fazendo desaparecer afetos, fazendo ressurgir um rosto mais adiante... Estamos todos à espreita. E muitas histórias que não vemos, pressentimos entre os intervalos desses novos encontros.

O primeiro romance juvenil de Délcio Teobaldo não toma apenas meninos de rua como personagens, contudo vem dar voz e presença à fome. Não sinto que o autor tenha pensado apenas em uma alegoria literária. Ela é espírito vivo, má conselheira que assedia o corpo e a alma, mastigando os pensamentos de Pivetim, manobrando seus passos. E é, na subordinação da fome aos problemas econômicos, que se permite a visão de uma psicologia social totalmente à espera por libertar-se de toda forma de exploração e das obsessões que se transfiguram na violência contra a educação, as oportunidades de trabalho e as referências familiares das crianças. Afinal, já somos muitos buscando o caminho. Outros brasileirinhos.

E então eu digo: não é apenas um. Tem Pivetim e todos nós.

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11 de setembro de 2014

eu vi um rino’ voar

Peter O'Sagae


Dizem que o medroso é o verdadeiro pai do medo – ao congelar a própria percepção e o raciocínio, permitindo que outras pessoas exerçam sobre ele uma opressão moral ou física. Muitas histórias de vida e ficcionais podem começar por aí, bem por aí, e... sob um incontrolável sentimento de admiração! Por exemplo, o que você faria ao saber que um amigo tem um rinoceronte escondido no quarto dos fundos da casa?


Cláudio Fragata mostra o fascínio de Jurandir pelas invenções de seu colega, um convicto mentiroso, fisgando igualmente o leitor junto do livro JURA?, com ilustrações bastante precisas e dinâmicas de Eugenia Nobati (DCL, 2011). A ousadia do texto não está em traçar o final em que um menino pode acabar vítima de suas mentiras – expediente narrativo bastante tradicional, mas traduzir a intimidação na voz daquele que é responsável por bulir com o mais fraco. O narrador em primeira pessoa compreende muito bem a força que possui o rinoceronte alimentado às custas da inocência alheia. “Não existe contentamento maior para quem mente do que alguém que acredite.” É este todo o seu orgulho: caçoar do medo do Jura, torná-lo cativo.

Porém, a mentira também escraviza – com muito mais força, o mentiroso. O quarto descoberto vazio já não consegue prender a atenção do ouvinte, nem o imaginário paquiderme. É preciso conduzir a ambos através da mata ao fundo do quarto dos fundos da casa... “Vem, Jura! Vem, que o rinoceronte é mansinho!” Neste novo cenário, a solução da história chega ao som surdo dos passos, tum, tum, tum... e uma baforada quente no pescoço... Se era gente ou bicho, juro, ninguém viu!


E você já viu um rinoceronte voar? 

Pois é preciso ter outra sorte de coragem. Ver um rinoceronte pousado na sombra do deserto é coisa rara, diz Ana Terra (aka Ana Thomas), por causa da escassez ensolarada da paisagem... Rinocerontes solitários são mais comuns, quase sempre na companhia de um pássaro. No entanto, como descobrir que o imenso animal acabou de descer como a folha leve de uma árvore que atravessou o céu?


No livro PRA SABER VOAR (Abacatte, 2013), Ana pousou seus olhos nos olhos miúdos do rinoceronte e aterrissou em seus sonhos de liberdade e grandeza. É como uma silenciosa entrevista, em que ela mesma adivinhou poeticamente um arrepio, palavras, flores, nuvens – e um segredo. Que agora desenha e deseja compartilhar.


Juro, eu vi um desses rinocerontes que sabem voar.