27 de abril de 2016

Impossível não era

Peter O'Sagae


Imagine ouvir a chaleira chiando e um repentino miado na cozinha. Gregório sente coisas estranhas acontecendo. Pela manhã, seu pai saiu para buscar a mãe, avisando que as coisas iriam mudar em casa... Nesta obra de Anthony Browne, os objetos se transformam diante do leitor – mas outra mudança se dá intimamente num clima de expectação imaginosa até a chegada da irmã que acabou de nascer! TUDO MUDA (1990) #pequenazahar (2015) #literaturainfantil #anthonybrowne trad. Clarice Duque Estrada


Impossível não era. Observar a capa e captar o trocadilho original: KETTLE (chaleira) e KITTY (bichano), ou A KITTEN AT KITCHEN (um gatinho na cozinha). Por que as coisas sempre se transformam em algo muito próximo ao que já são... Sem alertar o pequeno leitor para o tema principal – perder seu lugar como filho único – , Anthony Browne vai dispondo de curiosas brincadeiras visuais ao longo das páginas, criando um outro interesse para desvendar a obra.


Inequívoca alusão ao quadro que retrata o quarto de Vincent van Gogh em uma pensão na cidade de Arles, na França, onde o artista viveu e se lembraria com muita saudade quando esteve internado no hospício de Saint-Rémy-de-Provence. E, dentro da ilustração, outro quadro do mestre pós-impressionista. Trata-se de A noite estrelada... São dobras instigantes para compreendermos como se sente o menino Gregório.


Então ele viu o chinelo. Acordando como um pássaro? SLIPPERS são mesmo pantufas ou chinelos de quarto. O trocadilho é sonoro e visual em língua inglesa, THE SLIPPER WAS SLEEPING. O chinelo estava dormindo.


Não é nada surreal, de outro mundo. Outro jogo com a linguagem, Gregório foi lavar o rosto no lavatório – e lá deixou o sorriso. E olhe o gato no pé da pia... Todo o clima psicológico é trabalhado com muito bom humor. Grite algo bom, como Viva Magritte!


A poltrona e o gorila. Sem dúvida, um dos destaques do livro é esta sequência de transformação. Em primeiro plano, o rabo do gato é uma cobra – e o jacaré já vira coiô com um rabo de banana. Na televisão, a trama da vida: um pássaro que voa, ovos dentro do ninho e o filhote se alimentando do boca do pássaro-pai. E gato passeia agora dentro do porta-retratos.


Um chute na bola que sempre quebra uma janela, ou não...


22 de abril de 2016

... fazer da vida um grande moitará

Peter O'Sagae


Dia do Descobrimento do Brasil é também Dia Mundial da Terra, uma data que nos remete às lições do passado rumo à visão urgente de um futuro sustentável. PINDORAMA, TERRA DAS PALMEIRAS, de Marilda Castanha (1999), não é apenas um livro informativo, mas um livro de afetos e ideias para quem sabe que vive em uma aldeia global.
“No tempo de Pindorama, o índio era dono sem comprar, produzia sem pensar em lucros e dividia o que caçava entre os parentes e membros de sua tribo. “Uma ajuda num parto, a confecção de um arco, ou a cura de um parente também eram pagos com um pedaço de caça ou um colar, dependendo do que se tinha naquele momento. “E havia o moitará, que acontecia quando as mulheres se reuniam para trocar aquilo que não queriam ou de que não precisavam mais. No centro da aldeia, trocavam um objeto por outro.
“Hoje em dia, povos diferentes também trocam entre si aquilo que têm por aquilo que não fabricam. Quem faz belos potes de cerâmica, bancos de madeira, sal ou pendentes de orelha pode trocar com outros povos que fazem a pasta de urucum ou gamelas de madeira. “Desse jeito, divisão e soma andam juntas. Em cada troca confirmam que bicho, gente, terra, água, peixe, árvore e ar podem fazer da vida um grande moitará. “Um montará onde cada povo indígena possa continuar a viver.” 
A obra de Marilda Castanha conquistou o reconhecimento de Melhor Livro Informativo – FNLIJ 2000, Prêmio Jabuti de Ilustração, Runner-up no Concurso Noma do Japão e o Prêmio Octogonal da França, tendo sido reeditado pela Cosac Naify em 2008.

 * * * Ver mais no blog de Marilda Castanha
<> marildacastanhailustradora.blogspot.com.br/2011/10/ilustracoes-do-livro-pindorama-terra.html

21 de abril de 2016

poemas e paisagens

Peter O'Sagae


Angela Leite de Souza escreve e ilustra poemas e paisagens que tem conduzido o leitor de todas as idades a breves visões de nossa História, paralelamente a um dedicado resgate de brinquedos falados e poesia de tradição oral. Após cinco anos de pesquisa, trabalho com as palavras, com bordados e colagem em tecido, surgiu o livro UM VERSO A CADA PASSO (2009). Vamos espiar e ouvir, além do mar de ondas azuis, dos minérios e das águas preciosas das montanhas, os versos que homenageiam a cidade e o patrono cívico que percorreu outros caminhos, em procissão, em uma manhã de 1792. 
“Se alguém fala
em Tiradentes,
o pensamento
já vem rimado:
foi um valente
inconfidente
foi um soldado
que simplesmente
tinha o desejo urgente
de libertar sua gente.
...............................”

* * *
Saiba mais...
<> O passado e os nossos dias

19 de abril de 2016

Lá está, Naro Gambá!

Peter O'Sagae


Ciça Fittipaldi há muito tempo vem trabalhando com uma linguagem inspirada na expressão gráfica dos povos indígenas, tendo realizado inicialmente uma série de desenhos e recontos em oito livros para coleção Morená (1986-1988). Do especial convívio com a cultura yanomami, o exemplo de NARO, O GAMBÁ que preserva em ritmo-palavra e imagem o sabor mágico tradicional.
“Já estou vendo, está lá, o Gambá! Se esconde nas raízes das árvores. De gente, vira bicho, gambá debaixo das folhas secas. Agora é gente de novo, corre por um descampado... O medo faz o gambá voar. Crescem as penas rapidamente, toma altura. Olhem como voa! Não é mais que um ponto minúsculo lá em cima! Pica-Pau subia mais alto na árvore: – Desapareceu!... Apareceu de novo, um pontinho no céu. Entrou na toca do tatu. Saiu. Uma pedra o esconde... Lá está ele, vai se desviando para a Serra do Trovão. Sentou lá em cima... acho que vai ficar por lá... Não! Já se levantou! Pica-Pau tava nas pontas dos pés, no galho mais alto. Esticava o pescoço: – Lá está, Naro Gambá! A caminho do Morro Quebra-Facão. Vai parar... Lá tem uma pedra enorme, muito dura de quebrar!” 
Pela importância de sua obra, a artista já recebeu vários prêmios nacionais, como o selo Altamente Recomendável, da FNLIJ, o Prêmio Jabuti, APCA e o Prêmio Bienal de São Paulo, além de candidata ao Hans Christian Andersen em 1996 e 2016.

 Obrigado, Ciça Fittipaldi!


* * *
Outras imagens de NARO, O GAMBÁ 
<> cicafittipaldi.com/2013/01

* * *
AS MUITAS TABAS DE CIÇA
Extraído de Resumo do Cenário, 19 de abril.2009  
<> resumodocenario.blogspot.com.br




Ilustrações de NARO, O GAMBÁ (mito dos índios yanomami), O MENINO E A FLAUTA (nambiquara), A LENDA DO GUARANÁ (sateré-maué) e A LINGUAGEM DOS PÁSSAROS  (kamaiurá), respectivamente. Outros títulos da coleção: SUBIDA PRO CÉU (bororo), BACURAU DORME NO CHÃO (tucano), TAINÁ, ESTRELA AMANTE (karajá) e A ÁRVORE DO MUNDO E OUTROS FEITOS DE MACUNAÍMA (macuxi, wapixana, taulipang e arekuná).


Nas páginas pares, Ciça Fittipaldi usou imagens em sua função informativa (que descobrimos ao ler as notas no final de cada livro da série Morena). Acima, a representação de costumes dos Sateré-Maué: a festa da Tocandira de iniciação dos meninos à vida adulta, dançando com luvas de palha cheias de formigas e o beneficiamento do fruto do guaraná para transformá-lo em uma bebida, o çapó.


15 de abril de 2016

dentro de um dicionário

Peter On Instragram


Nunca fui grande admirador de fábulas, só algumas (as ainda possíveis de ler uma segunda vez...) Aqui vai um apólogo que acontece dentro de um dicionário. As palavras não aguentavam mais ser mal usadas, e a Verdade e a Mentira se unem para desfazer os mal-entendidos e os malefícios entre as pessoas, e vão bulir com o jogo de figuras sem escrúpulos que alteram o sentido da realidade em uma frase, um slogan, uma manchete, uma moral falaciosa, um pensamento turvo para enganar as pessoas de boa-fé. A REVOLTA DAS PALAVRAS, de José Paulo Paes com desenhos de Angela Lago #companhiadasletrinhas (1999) #literaturainfantil #josepaulopaes #angelalago


Prêmio Jabuti 2000 de Melhor Livro Infanto-Juvenil

14 de abril de 2016

a leitura, simplesmente

O’ABRE ASPAS


I

“Para além das dificuldades de percurso em nosso país, de um mercado editorial ainda deficitário e muitas vezes perverso com seus livros caros, poucas livrarias e raras bibliotecas de verdade; para além, ainda, das políticas às vezes equivocadas, muito além mesmo, está este desejo de servir e de ser útil ao que deveria ser óbvio: divulgar os benefícios de uma prática muito elementar: a leitura, simplesmente.” (Suzana Vargas) LEITURA: UMA APRENDIZAGEM DE PRAZER, fevereiro 2009 p. 17

II

“Ler literatura significa ler a vida, e não se pode aprisionar a vida entre metáforas e metonímias, classificações de narradores ou de personagens, estilos de época etc. Descobrir que leitura de prosa ou de poesia é conhecimento da vida e significa perceber, por meio da ficção, nossa história e o que o homem pode formular em torno disso tudo. Significa também descobrir a linguagem do imaginário e seu poder transformador, de como nos diria Roland Barthes, descobrir a margem móvel do texto, o retorno da cultura por meio dele.” (Suzana Vargas) LEITURA: UMA APRENDIZAGEM DE PRAZER, 2009 pp. 42-43.

III

“O entendimento da ficção requer também a compreensão da história lida como um todo. Essa compreensão exige uma prática já um tanto esquecida, mas muito comum no meu tempo de escola: o resumo. Os resumos me parecem importantes na medida em que, com eles, posso reduzir a narrativa a sua unidade mínima e, com isso, mostrar a simplicidade dos enredos. Chegamos, dessa forma, a diversas conclusões e entre elas a uma descoberta essencial: o que importa na narrativa é o que nos é revelado durante o tempo de narração.” (Suzana Vargas) LEITURA: UMA APRENDIZAGEM DE PRAZER, 2009 pp. 53-54.

*

13 de abril de 2016

muitos os cantos pra passear

Peter O.o Sagae


H. J. Koellreutter certa vez comparou o trabalho da composição musical ao trabalho das rendeiras de bilro: é o som que se trama, linha que se leva de um lado para o outro até aparecer o desenho sobre o tecido do silêncio. Pois lembro agora dessa imagem e não sei bem por quê... Talvez seja a simplicidade com que se pode fazer um livro.




Lúcia Hiratsuka atravessa os seus silêncios com palavras, desenhos e ruídos para revelar o espírito familiar, as brincadeiras, a máquina de costura da mãe, o tamanco das meninas, um trem que se inventa no quintal... São muitos os cantos pra passear, por onde passa um fio de brisa também passa alegria, memória e afeto.



Para leitores pequeninos, sim. E para quem viveu outros TANTOS CANTOS na infância. #editoradcl (2012) #literaturainfantil #luciahiratsuka capa, projeto gráfico e fotos adicionais: www.deborabarbieri.com.br

12 de abril de 2016

Mariana abriu o livro antes de dormir e...

Peter O.o Sagae


Uma noite aconteceu: Mariana abriu o livro antes de dormir e um O correu em disparada – mas a mãe nem liga, lava louças e costura as tarefas do fim do dia, não acredita na menina que vê O O O de montão, O de tamanco, O de guarda-chuva, O palhaço, O verde doidão, O de todo tamanho e feitio pulando pra fora da página... “Amanhã tudo estará no lugar novamente.” Mas, não é nada fácil ler, nem dá para dormir quando falta uma letra na vida – e assim é o pequeno caso de O SUMIÇO DO O, de Sandra Ronca #editoraprumo (2012) #literaturainfantil #sandraronca




11 de abril de 2016

olhar o próximo... como a si mesmo

Peter O.o Sagae



Desde tempos imemoriais, o cão teve motivos para correr atrás do gato – mas vivem juntos e fazem de conta que são amigos, nesta história que inventou António Torrado, morando no casebre de uma pobre velha, tudo tudo por um naco de comida e um lugar onde dormir. Um dia, a velhota morreu... e os dois incorrigíveis viram-se ao mundo, com fome e com frio, até encontrarem o Gênio das Cavernas que coloca um sob a pele do outro! O CÃO E O GATO, com ilustrações de André Letria, é uma fábula de transformações que faz cada um olhar o próximo como a si mesmo. #editorapeiropolis (2011) #literaturainfantil #antoniotorrado #andreletria



8 de abril de 2016

Muitos são os caminhos para viajar.

Peter O'Sagae


Vivi uma semana em alto mar e na tarde de ontem enviei um texto para a FTD. Muitos são os caminhos para viajar. Um bate-papo com o leitor (a convite de Luís Camargo) no final do livro VIAGENS DE GULLIVER a ser publicado ainda este ano, com adaptação de Ronaldo Simões Coelho e ilustrações de Marilia Pirillo. Vivi uma semana na companhia de Jonathan Swift, entre a tradução de Octavio Mendes Cajado (1971), um velho kamishibai, o Dicionário de Lugares Imaginários e muitas, muitas ilustrações – Arthur Rackahm, Thomas M. Balliet, Sara Oddi e as mais recentes imagens que encontrei do Weberson Santiago.



Imagens extraídas da página
www.facebook.com/webersonsantiagoart

4 de abril de 2016

amor


Uma página se desprende. Cegamente a recolho. Porque o mundo é branco e as sombras transparentes. O CADERNO DO JARDINEIRO, de Angela Lago. As metáforas por aqui passeiam, flutuam. A vida é o seu próprio tempo, o meu próprio tempo é a vida. Flores e poemas. Amor. Enquanto dure nossa leitura...
ÁRVORE VERGADA
– Angela Lago –

tudo no meu corpo é ânsia de colo
sou a mãe e a criança misturadas no amor
amo a mim mesma condoída
como a um próximo distante
amo o que neste corpo velho já fui
o bicho também
e assim
o amor se estende às pedras
à árvore vergada de frutos e à água
e é tudo amor por mim mesma
ou será amor

Fonte: Babel

2 de abril de 2016

2 de abril de 1727

O’ABRE ASPAS


“LAMENTO, em segundo lugar, a minha grande falta de discernimento deixando-me persuadir por instâncias e falsas razões, vossas e de outros, muito contra a minha opinião, a permitir que se me publicassem as Viagens. Lembrai-vos, por obséquio, de quão frequentemente vos pedi que refletísseis, quando alegáveis, como motivo, o benefício público, que os Yahoos era um espécie de animais absolutamente incapazes de se emendarem por meio de preceitos ou de exemplos, o que, de fato, ficou demonstrado, pois em lugar de ver posto um ponto final a todos os abusos e corrupções, pelo menos nesta pequena ilha, como eu tinha razões para esperar, após mais de seis meses de advertências, ainda não sei de um único efeito que, segundo as minhas intenções, o meu livro tivesse produzido; pedi-vos que me comunicásseis por carta quando os partidos e as facções se tivessem extinguido; quando os juízes fossem ilustrados e justos; os advogados, honestos e decentes, com alguns laivos de senso comum; Smithfield, brilhando com pirâmides de livros de jurisprudência; quando a educação dos jovens nobres tivesse sido inteiramente modificada; quando os médicos fossem banidos; quando as fêmeas dos Yahoos abundassem de virtude, honra, fidelidade e bom senso; quando as cortes e o levantar-se dos grandes ministros tivessem sido completamente extirpados; quando o espírito, o mérito e o saber fossem recompensados; quando todos os que desacreditam a imprensa em prosa e verso fossem condenados a comer o próprio algodão e a mitigar a sede com a própria tinta. Animado por vós, eu contava firmemente com estas e mil outras reformas, como eram, na verdade, manifestamente deduzíveis dos preceitos apresentados em meu livro. E força é reconhecer que sete meses seriam um prazo suficiente para corrigir todos os vícios e loucuras a que estão sujeitos os Yahoos, se as suas naturezas fossem capazes da menor disposição à virtude ou à sabedoria; entretanto tão longe estais de satisfazer as minhas expectações nalguma de vossas cartas, que sobrecarregais, pelo contrário, todas as semanas o nosso portador de libelos, chaves, reflexões, memórias e segundas partes, nas quais me vejo acusado de criticar grandes estadistas, de degradar a natureza humana (pois, ainda tem o descoco de chamar-lhe assim) e de injuriar o sexo feminino. Vejo igualmente que os autores desses pacotes não concordam entre si, pois alguns não me reconhecem por autor das minhas próprias viagens, e outros me dizem autor de livros a que sou completamente estranho.”


Da carta do Capitão Gulliver a seu primo e editor Richard Sympson, em 2 de abril de 1727. Tradução de Octavio Mendes Cajado, em Viagens de Gulliver, de Jonathan SWIFT. Porto Alegre: Globo, 1971. Ilustração: 2013 © Sara Oddi