29 de dezembro de 2017

que 2018 seja


“Resolvi montar uma loja
pra vender piadas por saco.
Adivinhas vendo por quilo,
e parlendas vendo por nacos.
Histórias da carochinha,
da galinha pintadinha
e do galo carijó que veste paletó
conto aos bis e em todas elas
acrescento mais um xis.
E pra quem gosta de verso
do joelho ao tornozelo,
do dedão até o pulmão,
pelo sim e pelo não,
ofereço de montão
poeminha e poemão.
Até a perereca da vizinha
que tá presa na gaiola,
sentada no penico tomando coca-cola,
vem na minha loja, sim, senhora!” 

Terminando o ano, olha eu aqui limpando as caixas que coaxam, as antigas e novas leituras. O que merece ser compartilhado e deve permanecer nas estantes?


Livros que me deem bons enredos, divertimento, imagens na palavra e verbo criativo nos desenhos. Livros feitos para rir, para chorar e para chorar de tanto rir contra o cinza e a chatice que aí andam. Que a virada de página não corrompa o ritmo, nem o design afrouxe nosso interesse. Livros que contenham tramas fabulosas com um jeito heroico ou ingênuo, quando o personagem se revela maior que o leitor e venha surpreendê-lo.


Um exemplo, a deliciosa leitura que traz este livro, completando 20 anos – QUE NEM ELAS QUE NEM, uma parlenda de Cecy Fernandes de Assis e ilustrações de Anaraquel (Formato, 1998). Remédio para quando a gente não tem o que dizer e apenas deseja ouvir um texto bem bolado!

22 de outubro de 2017

SIMPLESMENTE



Querida amiga,
um dia nossas mãos se entrelaçaram e ouvi o silêncio que vinha de seu coração vaidoso, assustado, forte e intempestivo. Você me leu o destino nessas linhas que carregamos na própria palma... Não, não era você, era uma cigana de nome sonoro. Rimos. Talvez fosse o reencontro de outras vidas ou mesmo um desses jogos que inventamos para afastar o medo que habita o mundo e, de repente, vem e nos pega no colo.

Se existia muito antes essa espécie de amor, uma devoção que se traduzia nos assuntos em torno dos livros para crianças, houve, naquele instante, a certeza de que seu sorriso era uma linguagem de longa data apreendida para nos curar. No lugar de Angela Lago, era possível vislumbrar outras psiques à beira da vertigem encantada pelo nascer, morrer, viver além das fronteiras comuns. Você, querida amiga, como quem escolheu dizer-se nau frágil, agora contudo evolui rumo ao sem limites.

Aguardarei notícias, claro – sei que os recados chegarão de imprevisto, assim que puder vir e contar alguma coisa do eterno. Mas penso também: qual outro segredo você guardaria que não estivesse já nas histórias que recontou e desenhou, nos seus poemas e reflexões? Jamais deixarei de ouvir Bach sem ter o acompanhamento de suas imagens. E suas mãos celestiais, suas mãos me dirigem hoje a esta fotografia com sua figura tênue e tenaz, passageira entre cânticos amáveis.

Também tenho palavras suas para compartilhar com outros amigos, minha amiga. Que possamos responder com alegria a esta viagem que é uma folha, uma abertura entre duas páginas. Simplesmente.

“Tenho a impressão que o conto “O Livro de Areia”, de Borges, adivinhou a Internet. Adivinhou também meu trabalho, que começa aos sete anos, assim que aprendo a escrever, e vai se transformando vida afora, sem nunca se concluir. Há uma beleza e um fascínio no livro de Borges que sei que não irei alcançar... Basta que ao final a folha se perca na floresta. Que é o melhor lugar para perder uma folha. E meu livro se perca na biblioteca que não termina.”

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* Foto de Angela Lago (17 de dezembro de 1945 - 22 de outubro de 2017) durante a abertura da exposição Linhas de Histórias, realizada no Sesc Belenzinho, em São Paulo, 12 de julho de 2011.

** O depoimento da autora, quase sempre desejando ser breve ao falar de si e de seu trabalho, tomei em entrevista em 2014 para introduzir o artigo “O livro ilustrado, uma invenção que nunca termina”, reunindo três outros textos seus.

30 de junho de 2017

pedra, pessoa

de volta a Neide Medeiros Santos
Nas Trilhas da Literatura


no meio do caminho de nossas vidas
esta pedra sobrevoa agora minha memória
meu carinho por suas lições
por fazer-me acreditar em poetas
o muito obrigado por esta pedra, pessoa

esta pedra guriatã das asas de suas mãos
vem me contar a história de suas artes, todas
silenciosamente, silenciosas outras

esta pedra, como fala, esta pedra passagem
ensina a não sentir-me onde estou...
esta pedra voa em versos de ocasião
de almas habitando-me, alma pintora


28 de junho de 2017

O que há de criança em Machado de Assis?

Uma fábula, uma lengalenga do Bruxo de Cosme Velho.


CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela...
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?

(Machado de Assis, 1878) 

Soneto publicado na Revista Brasileira, junho de 1879,
e no livro OCIDENTAIS, lançado em 1880.


[aqui] uma bonita página com retratos e caricaturas
[aqui] grafia e aspectos notacionais estabelecidos
[aqui] reprodução do manuscrito, acervo APESP

24 de junho de 2017

de volta ao boi

peter O sagae


Boi não é livro. Boi não é faixa de disco. Nem mesmo um vídeo, essa espécie de fotografia sonora em movimento... Boi é função, quem o confina? Festa popular, alegria, ritmo, lírica, fantasia, devoção – Boi é o brilho do sol à noite, quando incendeia, aquece e ilumina. Boi assim se escreve com letra maiúscula, não é brinquedo para crianças. É para todos. Esta é a ordem que São João mandou...

Talvez por isso, outras razões, talvez pelo bem de quem gosta de cantar vivas toadas, Marilda Castanha confesse as dificuldades de admirar o festejo, apenas por uma janela. Em uma das mais bonitas homenagens ao Boi-bumbá que a literatura infantil pôde produzir – o livro PULA, BOI! (Scipione, 2012), enfrentamos a luta entre a vida e a morte, entre o espaço e o pedaço do que foi, do que é, do que será o Boi.


Como num teatro sem chão e sem teto, o livro se abre com um proscênio de páginas brancas: bem ali, pássaros, pousados no corpo longo do mandacaru, tagarelam. Que o público saiba imediatamente: esta é a história de uma menina que adora exposições e museus, gatos, cachorros e bichos-preguiça. Mas, o principal é – esta é a história de um encontro! A personagem com chapéu, vestido quase sempre abaixo dos joelhos, óculos atentos, levando uma máquina fotográfica ou uma caderneta onde registra tudo que vê, pulou de outros livros para dentro de uma nova aventura. Pra dizer a verdade, a menina de Marilda saiu de dois livros de imagem para encontrar o Boi-bumbá em uma paisagem bem maior que qualquer museu de artes ou ciências naturais. Daí, pressentiram elas – autora e personagem – uma janela só, a linguagem visual, seria insuficiente para comunicar o Boi, seu mundo, seu universo.


Cores cantam e um galo eleva um céu sentimental, rosa. Palavras despertam a manhã. Boi-bumbá não é homem, não é carcaça de veludo bordado apenas. É um ser único, ardente, animal e humano, na tranquilidade dos afazeres diários... A primeira refeição, depois ouvir as notícias locais, e cuidar de seus pássaros, e trabalhar o roçado sob o sol quente do sertão. Vindo lá do fundo da estrada que começa no longe dos livros, entra a menina na história...


A visitante quer logo saber qual é o segredo do Boi-bumbá, mas ele a convida para conviver um tempo com sua família até o dia da festa.


A menina participa da vida daquele lugar: plantar, colher, preparar os alimentos, ir à feira – que também é dia de trabalho, porém festivo, diferente, entre a venda e a troca, os produtos da terra, o artesanato, as notícias boas e ruins que trazem as pessoas. A festa (que é preciso esperar ainda) será a continuidade desse andar para conhecer. Boi é participação, as horas em véspera. Boi é enredo de muitas encruzilhadas no caminho das histórias e da ação coletiva. E Pai Francisco e Catirina comparecem, debaixo do céu estrelado de junho. A menina descobre que Boi é a morte e é a vida que magicamente se levanta todos os dias nos ritos da natureza.

Ao fim de uma sequência descritiva, apaixonada, rememorativa, prenunciando o inverno que é a estação das chuvas para o sertanejo, Marilda Castanha desvenda o segredo que não precisava de pergunta, nem espera por resposta. O Boi é realmente muito amplo. E é promessa de estar de volta, na próxima festa, se mais um ano permitir...


Boi é confiança que o Céu há de querer.


Ora, das mãos de Marilda às asas de Josimar Fernandes de Oliveira – Jô Oliveira!, vamos ao Boi celebrado em cores na vibração de 1974, 1975, quando o artista pernambucano escreveu, ilustrou e publicou um trabalho sobre o Bumba meu Boi, pela Escola Superior de Artes Industriais... na Hungria. Como uma série de tableaux vivants, os personagens típicos da Zona da Mata retornam agora contornados pelas trovas do poeta Marco Haurélio, através do livro MATEUS, ESSE BOI É SEU (DCL, 2015).



Aqui se resgata um fragmento do Boi, o entrecho cômico-dramático, em uma das muitas variantes; conta-se da paixão de Mateus por Catarina e da prova de amor que a caprichosa morena lhe exige: arrancar o coração de Mangangá, o boizinho mais belo e estimado do Coronel, aos cuidados do jovem vaqueiro. Nem Santo Antônio parece ajudar a alguém ter juízo!


E a carreira tem lugar, incluindo diversas figuras do folguedo dançado por ocasião do ciclo natalino, por vezes até o Carnaval, na companhia do Cavalo-Marinho, representando o chefe da polícia que leva Mateus para mofar na prisão, os soldados, o Curumim, os Caboclinhos que defendem o vaqueiro... e está armada a confusão, a luta entre os brincantes.


A narração é bastante resumida, ágil para os pequenos leitores, deixando as entrelinhas para a memória dos mais velhos que alhures já conheceram o desígnio do Boi, em encenar o encontro de três culturas.


Eu quero ver quem vai à rua, eu quero ver acontecer! 


Boi é outra brincadeira nas mãos de André Neves a inventar o TOMBOLO DO LOMBO (Paulinas, 2016), a partir de duas tradições populares.

O que se mostra desde o título é o bem-conhecido brinquedo cantado do tangolomango que vem emprestar a fórmula repetitiva da lengalenga a fim de nos ensinar a contar ao contrário, como que subtraindo a cada vez um elemento da sequência numérica. Quase sempre, há uma família, ou uma casa com nove pessoas, uma velha com nove filhas, e elas vão misteriosamente desaparecendo até sobrar apenas um – para contar a história. Ou nenhum! Todos conhecem a parlenda. Mas, aqui, no lombo do boi, vão nove músicos com seus instrumentos.


Preenchendo a estrutura da brincadeira, estão os personagens encontradiços em algumas das variantes do Bumba-meu-boi, a exemplo do Coronel com o tamborim, a Índia que não sabe tocar trompete, o Padre batendo o sino, o vaqueiro Bastião levantando a cuíca, o Jaraguá parará parapá, sem faltar, no cortejo de "Mestre" André Neves, as figuras centrais do folguedo. O mote principal é descobrir quem deles quis comer um pedaço da língua do boi...

O divertido do tombolo não é apenas ver, um a um, os brincantes tombarem para trás. Não, mesmo. O divertimento está em dar movimento ao Boi. Página a página, o que estava embaixo foi para cima, o que havia em cima desceu... o livro gira em nossas mãos, da esquerda para a direita, como os ponteiros do relógio ou quando se fecha a torneira, como se dependesse apenas do leitor derrubar os personagens para fora do lombo do boi.


Esta função participante do livro, digamos, cria uma imagem cinética – uma coreografia para as mãos. Seria o pequeno leitor o décimo brincante, aquele que se esconde, a tripa vivente dentro da carcaça do boi?

Além de bailar explicitamente com o suporte material, encontramos um importante emblema da cultura nordestina nas reinações de André Neves – a chuva, a renovação, o nordeste que renasce para viver o Boi outra vez.


Lá vai, lá vai, lá vai...
Rasteirinhas pelo chão!
Borboletas no Inverno, é meu boi,
Andorinhas no Verão.

22 de junho de 2017

sem pressa... para encontrar

peter O sagae


Novelo sonoro, a poesia é quase sempre definida pela escrita em versos, brotando por força e forma dos estados de alma. Contudo, existe na poesia um apelo diferente afora a rima e além do ritmo verbal. Na poesia, existe uma disposição para as imagens que não se veem em qualquer lugar, no entanto passíveis de admirá-las no terreno invisível e fecundo da linguagem, no momento em que são nomeadas, isto é, tiradas de um esconderijo, da semente do cotidiano.

Vejamos um exemplo.
Dentro da mesa tem um cavalo.
Taque taque taque taque
A sala é um campo
e o relógio de parede é a lua.

Taque taque taque taque
Taque taque taque taque

O cavalo que dorme dentro da mesa
galopa pela casa
a cada noite.
Este poema pertence a um livro que não pode passar escondido de sua leitura. O que há dentro do livro também não poderá passar escondido a seus olhos, ouvidos e imaginação. ESCONDIDO, um pequeno livro da escritora chilena Maria José Ferrada, revela um horizonte que transcende os objetos imediatos e vai nos levando ao lugar onde o desígnio da poesia transforma-se em desenhos. Ou quadros, dentro de nós.


Publicado com a tradução de Carla Caruso e Fernando Vilalba, mais as ilustrações em fotomontagem de Rodrigo Marín Matamoros (ÔZé Editora, 2016), este pequeno livro abre-se amplo para abrigar a alma – ou a mente pré-lógica das crianças e adultos que não perderam tal essência e sentem-se tentados sempre a olhar as coisas como se fossem outras, em sua estrutura visual e linguística.


Os poemas de Maria José Ferrada não possuem título, ou seja, não há para eles qualquer mediação ou antecipação de sentidos. Cada primeiro verso é, pois, o convite e o caminho necessário para percorrermos. Se, dentro da imagem da mesa está escondido um cavalo, uma verdade aí se funda e projeta-se com efeito pela semelhança de suas quatro pernas – e taque taque taque o som anima seu galope na palavra. Por contingência, a sala é assertivamente um campo, lugar ilimitado, e o relógio, uma lua. Através da analogia das formas visuais, tudo o que pertence ao cavalo-universo escondido desperta...

Compassado, o trote transita igualmente entre os segundos do relógio. A onomatopeia cresce e toca dois diferentes objetos, permitindo que – cavalo e lua – dialoguem em uma única linguagem, em identidade sonora. O cavalo era um animal suposto, dentro da mesa, dormindo nas horas claras do dia. No silêncio encoberto pela noite, ele galopa, movido pela voz do relógio. Ou faz este relógio mover-se ao comando de seus cascos de madeira... Em qualquer hipótese interpretativa, o poema grávido de imagens perfaz um rodeio, um carrossel sobre as próprias ideias.


E, dentro da sopa tem um mar que não aparece nos mapas, dentro das pedras uma cordilheira adormecida e, na fumaça das chaminés, o que vive escondido? No jogo com a criança, geralmente os poemas jamais chegam destituídos de imagens. Contudo, seria preciso separar estes daqueles que apenas poluem a retina da imaginação com o excesso, o grotesco e lugares comuns. Observando o mundo com sensibilidade e afeto, Maria José Ferrada, muita perceptiva, sem pressa, permite aos leitores encontrarem a beleza de cada coisa além da coisa vista, ao investir-se de liberdade criadora.



Também a poesia se dá na combinação de duas ou mais imagens visuais. O trabalho de colagens de Rodrigo Marín é quase todo pautado numa intervenção silenciosa. O incurso acolhido à fotografia reafirma o ponto de partida dos poemas, com os objetos vistos cotidianamente na realidade – velhos conhecidos talvez nublando a visão –, conquanto o processo de montagem é o que ilumina, com simplicidade e economia, novos lugares para respirarmos.


ESCONDIDO é um pequeno livro, do tamanho de nossas mãos, e pede para ser levado embora. Amanhece. Ele e você partirão para longe, aposto, unidos.

a quem interessar possa


abro livremente um livro e encontro um poema
que me faz bem, às vezes numa manhã cinza ou já azul,
raramente à tarde, quem sabe à noite, e penso
compartilhar no dia seguinte, num instante depois

OS MEUS LIVROS,
de Jurema Barreto de Souza
Os meus livros me conhecem
pelo tato quando os toco
arrepiando suas páginas
como um gato fiel a casa,
casa que sou das palavras
das histórias que li de outros
dos poemas que escrevi de mim.
Os meus livros me olham
quando entro na sala
e sabem que os amo no silêncio
passando os dedos por suas lombadas.
Os meus livros passaram comigo
pelas provas de fogo da vida
pelas angústias de crescer.
Janelas, me deram paisagens.
Oráculos, me deram respostas.
Naves, me deram viagens interestelares
e fugas mágicas rumo a alegria.
Meus livros que me conhecem
impregnados estão da minha vida
aqueles que li e os que escrevo
darão, a quem interessar possa,
breves notícias de mim.

SOUZA, Jurema Barreto de. “Os meus livros”
In: Policromia. Santo André, SP: A Cigarra Edições, 2010 p. 27.
O’Abre Aspas, contato com a autora [aqui].

21 de junho de 2017

chuva de haicais, 1

peter O sagae


A propósito do livro de Sônia Barros: NAS ASAS DO HAICAI, com desenhos de Angela-Lago (Aletria, 2016), encomendo chuva. Que a poesia desça quente agora no inverno e amiga nas demais estações. E tenhamos olhos de voar, uma vez que
Este livro é vivo,
em cada haicai um voo
terno ou divertido.
Este livro... tem feitio de ABC, onde tudo repentinamente se move: seres da natureza, objetos inanimados e coisas também invisíveis – a fofoca e a web à nossa volta. E, livro dentro do livro, no desenho da letra, este
Livro se transforma
em tapete voador
quando tem leitor!

Vem do prefácio, no entanto, a melhor lição. Sônia Barros sobrevoa nomes que a precederam na aventura do haicai. “Aqui no Brasil, grandes poetas contribuíram para divulgar a arte do haicai, como, por exemplo, Guilherme de Almeida, Paulo Leminski, José Paulo Paes, e, ainda hoje, Leo Cunha, Alonso Alvarez, Nelson Cruz, Angela Leite de Souza e outros.”

Para uns, esta forma especial de poesia é uma pintura em palavras em rápidos movimentos que traduzem as transformações dos seres da natureza e do próprio homem, sem jamais o poeta deixar confessos um pensamento particular ou seus sentimentos. O haicai, em sua origem, é um estado de contemplação, exercício ainda possível mesmo em meio ao tremor e o murmurejo urbanos. É preciso manter-se zen.

Para outros, importa a originalidade, uma vez que o léxico de imagens de animais, plantas e fenômenos da natureza tende à repetição através dos séculos – e é preciso renovar. Assim, na escolha de temas, ocidentalizando-se, o haicai tem abandonado a atmosfera aparentemente despreocupada para alcançar algo mais: humor, ficção sensualidade, crítica social.

Vale a pena rever.
* Seleção de outros livros >> chuva de haicais, 2


chuva de haicais, 2


Guilherme de Almeida, em MEUS VERSOS MAIS QUERIDOS (1967) retoma cinco haicais publicados em POESIA VÁRIA (1947) e é, deste volume anterior, que a Internet me traz uma CHUVA DE PRIMAVERA.
Vê como se atraem
nos fios os pingos frios!
E juntam-se. E caem.
Então, Paulo Leminski – LA VIE EN CLOSE (Brasiliense, 1991) –
chove no orvalho
a chave na porta
como uma flor no galho


Um pulo no JARDIM DE HAIJIN, livro para jovens leitores de Alice Ruiz S (Iluminuras, 2010) PNBE 2012 –
dia de chuva
orquídeas na cozinha
espiam pela janela
Haijin é a pessoa que faz haicais ou HAI-KAIS, como o irreverente Millôr Fernandes (L&PM Pocket, 1997), com sua métrica e velocidades próprias:
Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.

Então troco José Paulo Paes por Maria José Palo, para entrar na poesia para crianças com a lembrança do livro HISTÓRIAS EM HAI-KAI (Vale-Livros, 1992), em parceria com a artista plástica Kris Palo na composição visual, que se inicia com uma chuva de sementes coloridas semioticamente reais:
eu te ofereço:
sementes de luz e cor
no fundo do mar!

E logo colhemos, das mãos de Angela Leite de Souza, TRÊS GOSTAS DE POESIA, primeiramente com ilustrações de Marilda Castanha (1995) e depois com Lúcia Hiratsuka (Moderna, 2002).
Lá vai meu boné
volteando pelo céu...
Cabeça-de-vento!

Esta é a chuva que um livro dispara em nossa mente, em uma nuvem carregada de poetas, cada qual com seu posto-espírito de observação e... metalinguagem também, como neste haicai dos HAICAIS PARA FILHOS E PAIS, de Leo Cunha, um livro “recortado” [espie] com amostras de cor por Salmo Dansa (Record, 2013) –
As quatro estações
não moram nos calendários
e sim nos haicais.


Nas asas do verso, termino PREGUIÇOSO que só:
Levanto-me cedo...
Deus condói-se e manda chuva,
num livro adormeço.
* Ler a primeira parte desta seleção >> chuva de haicais, 1

15 de junho de 2017

um pouco de junho e outros meses

peter O sagae


João chegou!
Trouxe com ele uma vontade de falar.
Trouxe um pouco de junho e outros meses.
João não é só um menino, são dois.
Talvez mais, em outros meninos chamados João.

É hora de apresentar UMA NOITE PARA JOÃO e outros poemas, com as delicadas ilustrações de Sandra Jávera (Paulinas, 2017).


Os poemas foram escritos entre junho e julho de 2015. Não eram intencionalmente poemas para crianças, quando dei início a uma homenagem aos três padroeiros das festas juninas, buscando evocar a missão de cada um deles – A caminho de Antônio, Entre os sonhos de João e Até o coração de Pedro. Meu gosto pelos temas do bumba-meu-boi me faria incluir São Marçal, louvado, em torno das fogueiras do Maranhão, no dia 30 de junho.

No entanto, o poema para João, ao retratar os sonhos do menino em um diálogo sem palavras com sua mãe, antes mesmo do nascimento, conduzia-me a novas imaginações... O que aconteceu, quando João deixou a noite do ventre? Como viveria João com seus segredos, ouvindo o vento ou o avô inventando uma desajeitada parlenda com nomes de inseto? Encontrava assim o fio condutor para um livro para crianças – puxei nomes e símbolos de lendas medievais, juntei vozes que atravessam o medo e a magia das noites.


Não sei bem como, apareceram duas figuras à minha frente, conversando como se estivessem em um arraial ou na porteira de um livro:
Vô, quem é
aquele menino
com o carneiro
na mão?

Aquele é João.

Ele também?

Também, João.
Sandra Jávera desenhou este João e o avô como se fossem caminhar para o fundo da página, o menino apontando o estandarte. No alto, o pequeno João Batista aparece de olhos fechados e também assim o carneirinho em seus braços. Ambos dormem. Ou fazem de conta... Virando a página, adentramos outro tempo e lugar. Isabel aquece o corpo grávido perto de uma fogueira. Na abertura seguinte, a mulher segura o filho no colo, enquanto uma fumaça branca, distante, aberta em bandeira, sobe ao pano de um céu lilás. As estrelas de Sandra são pontos e flores. O chão é outro tecido, azul.


No poema IV – “Canção do tempo”, uma porção de pontos espalham-se ao pé da página como sementes e poeira cósmica. Caminhos tracejados vão unindo pontos e estrelas, formam as raízes e o tronco de uma árvore. O menino parece que paira sobre um espaço infinito. Apenas um João, os galhos, as folhas e as bagas douradas da alfarroba têm cores encorpadas.

Índice de sonhos, dinâmico, o azul ressurge em diferentes tons – nas asas de um inseto, nas paredes do quarto do moderno João, na manta pontilhada de branco e no travesseiro, nos círculos concêntricos que envolvem o menino – o que, afinal, representam?


O azul ainda domina as bandeirinhas...


Em nossas conversas, Sandra Jávera escreveu: “Encantei-me com os quadros do Volpi. Eu já gostava de suas pinturas, e saber da relação com a Festa Junina me deixou ainda mais interessada. Penso que pode ser bonito uma dupla central cheia de cor e mais abstrata.” Ao fim de seis poemas sobre João, comparecem outros meninos. A segunda parte do livro começa em uma noite cinza...


No poema VIII – “Felicidade tem sete filhos”, o Sol é um gigante devorador de um olho só, enquanto a Lua personifica o bem possível, derramando sua cor de luz e leite. No poema IX, o vento vem e desenrola um tapete no alto de oito colinas, alinhava pétalas de rosa e dentes-de-leão e, por fim, costura sua história com a agulha do tempo – porém, talvez nada disso exista, ou existe, sonho de um menino enquanto brinca, Pedro que não é São Pedro.

Em meio a cores e traços delicados, o vocabulário visual de Sandra Jávera revela agradáveis surpresas. Certos detalhes se mostravam desde os esboços, como três pedras que formam a letra M no poema X – “Trás as histórias de Marçal”, enquanto o menino alimentava algumas aves. Na ilustração final, a ideia de generosidade se traduziu em um gesto entre suas mãos e as mãos de um macaquinho marrom. Todos os personagens de UMA NOITE PARA JOÃO e outros poemas foram vestidos com simplicidade, vivendo fora do registro histórico, porém bem próximos de nós. Viajamos por outros meses que talvez nem existam no calendário.


O livro vai terminando com uma sequência narrativa em três poemas, com o Menino Jesus, ele mesmo!, brincando no barro com água de chuva e riacho, numa manhã de sábado, para amolar e espantar José, seu pai... Querem saber?

No site da editora, você pode baixar um trecho do livro. Espero que gostem!