21 de fevereiro de 2025

eu me sinto é que nem criança

dobrasdaleitura copiando Haroldo Bruno:
O dia emendava com a noite: era a hora do poente que se anunciava. Como quem não nada, o sol se despedia em clarão vermelhaço, a brisa amaciando o capim, o voo hesitante dos pássaros e os primeiros morcegos a se debaterem contra as copas. Um galo cantou — cocoricó! — julgando por certo fosse de madrugada. Aí Zé Grande sentiu um aperto danado no coração. Nada que pudesse definir, uma sensação de que boiava, como o próprio tempo que sobre as coisas se estendia.

Mas de repente, silêncio imenso baixou nas suas pálpebras. As árvores pareceram se iluminar por dentro, até as pedras ficarem transparentes. As poças d’água viraram espelhos, tudo que era sujo e feio ganhou estranha boniteza.

— Está sonhando, Zé? — escutou uma voz tão longe que podia vir de seu espírito ou dos confins do mundo.

Sonhando? — repetiu para si mesmo, num eco. E beliscou o rosto, os braços. Não é possível. Talvez esteja sonhando que sonho, e por esse descaminho de fantasia me perco. Uma sombra, um sonâmbulo entre coisas tão exatas. Finjo que sonho, melhor dizendo, para não me espantar com o que vejo. Deixo que sobre os meus cabelos, vinda das ramagens ou das estrelas, caia essa poeira luminosa, e meus ouvidos se encham de um silêncio que agora é a mais perfeita das músicas. Um simples olhar, a posição do corpo, um jeito que se dá nas lembranças e nas ideias — e despertamos para o encantamento. É a minha iniciação no mistério, no sonho acordado. Ou será que é fome?

Nisso, no justo momento, a Voz novamente:

— Não é fome nem nada, Zé. É a poesia. Ela só vem quando nos sentimos assim, como se nus estivéssemos diante das coisas, desligados das aparências do mundo. Mas sem esquecer o mundo, a gente que mora nele. Criando outros mundos. Leves. O coração sem ódio.
— Mas eu me sinto é que nem criança, imaginando os impossíveis — respondeu Zé Grande.
— Isso mesmo. A poesia é um dom das crianças. Mas não há nada de impossível em tudo isto.
— Então é real cair chuva de luz nos cabelos da gente?
— Sim, Zé.
— E ver moças dançando? bailarinas vestidas de folhas e com lanternas na mão?
— Sim, Zé.
— E ouvir música sem saber donde vem?
— Sim, sim, Zé. Tudo é verdadeiro no reino em que você está. E lhe pergunto agora: sabe quem são estas moças?
— Não sei, mas me lembram alguém.
— Pois são Flor-do-Sereno.
— Como? Flor-do-Sereno é somente uma e mais ninguém.
— Ora, Zé. A poesia multiplica tudo. Na dança do sonho, Flor-do-Sereno é muitas e ela só.
— Não enxergo o rosto dela, os olhos, a cor da pele, o sorriso que me doma.
— Mania de que tudo seja certinho... Só porque as coisas às vezes não se apresentam inteiras, acabadas, não quer dizer que elas não existem. Vê aquele homem ali, trepado no galho maior?
— É meu pai. E aquilo que ele toca é o pífano perdido.
— Sem tirar nem botar.
Logo a Voz foi morrendo nas quebradas, se confundindo com os cochichos das plantas sonolentas. Tudo regressou à condição desencantada de antes, e a noite já era completamente. Zé Grande gritou com angústia, tentando agarrar a Voz que fugia:

— Não vou encontrar o pífano de meu pai? Não terei mais Flor-do-Sereno?

* * *

Haroldo Bruno
O MISTERIOSO RAPTO DE FLOR-DO-SERENO
Capa: Joaquim Caetano Neto
(Salamandra, 1979) pp. 20-22.

15 de fevereiro de 2025

água espiral fogo força

dobrasdaleitura | Portal cósmico, fogo fátuo, a espada –de-são-jorge é também o feminino da espada-de-iansã, e assim podemos atravessar o Poemário de Transmutação, uma publicação independente de Pérola Pessoa (2023) que deixa o copyleft como caminho para a poesia leonina circular. E circular é o movimento da leitura como água espiral fogo força que cresce e acalenta, não à toa leio seus versos geralmente à noite para acalmar demônios ou fazer-me esquecer livros ruins por onde vou pisando e desviando. Assim âncora e corpo, tenho pintando seus versos, assim grampo, amor e folhas soltas presas, copio seu
AUTORRETRATO

quando meu eu-poético
está ligado
eu desapareço
sou apenas um filtro
da substância
plasmando-se
em significados.
sou a câmara,
a lente do microscópio,
uma asceta no caos
entre pontos e vírgulas na sua typewriter, oráculo e seu próprio amuleto porque “nuvens cinzas me aconchegam em meu casulo e eu juro que flores vão nascer de um quarto escuro”, onde a quebra do verso pode ser pressentida por um hálito muito certo e rítmico. Pérola pessoa, Pessoa pérola, esse é o ventre que gesta a matéria orgânica dura a partir do grão invasor em suas entranhas, beleza e defesa, poesia em festa.

#dobrasdapoesia
@desejomaispoesianasuavida

11 de fevereiro de 2025

enigmas

dobrasdaleitura | Qual conto de encantamento não tem deixado um rastro de PERGUNTAS INQUIETAS atrás de si? Pois antes mesmo de abrir o livro de Beatriz Martín Vidal, poderíamos fazer uma lista de questionamentos sobre os importantes pontos de luz, sombras e as relações humanas, familiares, entre iguais-desiguais que as narrativas populares de magia carreiam.

À nossa percepção, instinto, memória e sentimentos de abandono, torna-se notável como o sono é uma constante nas tramas de A Bela Adormecida, Branca Neve e mesmo Chapeuzinho Vermelho, mas nunca os narradores tradicionais adentraram o sonho e registraram de lá as imagens misturadas de esperança e destruição. As ilustrações de Beatriz Martín Vidal não se propõem a ocupar esse espaço, mas chamar a atenção, com traços de realismo fantástico, a pintura a óleo, para a existência de um assombroso mundo interior iluminado de dúvidas.

Entre o selvagem negro que o lobo teme e o branco esquecimento sobre a história da menina que jamais voltou da floresta, meninas e princesas apenas parecem dormir — as pupilas da vigília sobrevoam paixões e flores de pedra. E os olhos cerrados, semicerrados, ou quase cegos pela abundância da luz, olhos amarelos, garços, cinzas, estranho estado de atenção, cabelos presos, cabelos cortados, com vigor. De repente, a beleza de uma ideia sobre a maldade como instinto ou aprendizado. Qual a nossa história, como buscamos por um final feliz?

@beatrizmartinvidal
Thule Ediciones, 2016
tradução de Márcia Leite para
Editora Pulo do Gato, 2023
@editorapulodogato

🧡 #quemtemquindimtem

9 de fevereiro de 2025

a cidade como um livro

dobrasdaleitura | O ângulo das paredes e das páginas, a cidade como um livro, o livro como as muitas cidades de que somos feitos. É através da aproximação e da justaposição de imagens que o tempo todo a cidade muda quem passa e esconde seu passado, sempre a ser redescoberto quando podemos reler os espaços. Ora é o sol que come o vermelho da tinta da impressão, apenas o azul que permanece no papel... Ora, encontramos os diferentes caminhos que a exposição do Gilberto Tomé nos traz, entre um respiro e o atordoamento. A cidade se dobra em coisas e texturas.

LIVRO, DESLIVRO E RELIVRO
até 14 de fevereiro, no Salão de Exposições
do Paço Municipal de Santo André,
das 9h às 12h e das 13h às 17h.

@tome.gilberto / @graficafabrica