Primeira cena que o leitor invade, ou que invade o leitor, está na capa, dentro de um antigo trem, o homem no escuro, o livro em suas mãos iluminado por um dia azul, a janela pendurada na paisagem, a bagagem espalhada confortavelmente. Sem que queiramos (nem adianta mais negar o que o olhar acolheu), estamos enredados na narrativa que visualmente já começou. Nas páginas de guarda, uma comprida cerca ripada é duplamente observada — tanto do ponto de vista do personagem, quando do leitor que percorre, da esquerda para direita, uma estradinha de terra que se afunda num rancho longe. Corta para — uma visão panorâmica sobre uma pequena vila, próxima da estação de trem, casas com telha de barro, janelas e portas azuis, paredes cor de branco e cor de tempo; na linha do horizonte, depois dos verdes novos em folha, a linha dos trilhos com sua maria-fumaça fumando para o céu — e virando a página,
um plano em perspectiva coloca Mário de costas para nós, retirando as malas da carroça, o cavalo parado; distante, uma sombra magra de moleque correndo serelepemente. Quando a primeira linha da crônica se inicia, um mundaréu de idéias já pertence ao universo do leitor.
Embora descritivas e informativas, à medida que encarnam e representam personagens e cenas da narrativa, e expressem uma força decorativa, as ilustrações, sem fugir dessas funções e qualidades, não redundam em dizer os mesmos significados que o código verbal ou roubar-lhe poesia e metáfora. A poesia visual é outra: seus reflexos ambicionam traçar estruturas homólogas à crônica no que ela possui de subjetividade — o ponto de vista do autor Mário de Andrade, somando-se ao ponto de vista de Odilon Moraes — ambos requerem um olhar-leitor que acompanhe os cortes e tome uma posição compreensiva da nova dinâmica. O espaço compartilhado entre Mário-personagem e o menino é, inicialmente, dominado pelas distâncias que a escolha de planos em perspectiva vem reforçar e, quase sempre, a figura do cronista ocupa realmente maior dimensão sobre o papel, não apenas porque é um homem maduro e corpudo,
mas também excesso de estranheza do moleque. A mudança de foco e a proximidade entre eles obviamente acontece no registro da crônica e na cineMATOgrafia das imagens. Mas, Odilon, antes faz um jogo de câmera, uma torção no eixo visual, sempre às costas do personagem adulto — o livro ilustrado é também evidentemente uma homenagem aos dias de criança, aos dias de Benedito.
Em duas ilustrações, homem e menino se conjuminam no diálogo inevitável e compartilham de um mesmo espaço diante do diretor de cinema e do seu leitor-espectador. O plano em perspectiva ilusoriamente desaparece, ao vermos os dois próximos. É bonita a imagem de Mário e Benedito, montados em cavalos, lado a lado, o adulto adentrando as distâncias da paisagem, até então dominadas pelo dono de trezes anos em “carreiras livres pelo campo”. Ora, o momento mais feliz da leitura foi, da poltrona onde assisto à crônica, a impossibilidade de tradução verbo-visual à moda de conclusão dessa experiência — “Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu sorriso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam numa brancura sem par.”
— e, em troca disso, na dupla página (14-15), impõe-se nova distância na perspectiva: Mário é uma sombra mal definida, sentado em uma tora, junto ao descanso dos cavalos, abaixo do céu que é todo vibração de manchas — e o Benedito tão sem par, em primeiríssimo plano, que toda sua figura já não cabe mais na página, escapa em nossa direção, sorrindo para os leitores.
um plano em perspectiva coloca Mário de costas para nós, retirando as malas da carroça, o cavalo parado; distante, uma sombra magra de moleque correndo serelepemente. Quando a primeira linha da crônica se inicia, um mundaréu de idéias já pertence ao universo do leitor.Embora descritivas e informativas, à medida que encarnam e representam personagens e cenas da narrativa, e expressem uma força decorativa, as ilustrações, sem fugir dessas funções e qualidades, não redundam em dizer os mesmos significados que o código verbal ou roubar-lhe poesia e metáfora. A poesia visual é outra: seus reflexos ambicionam traçar estruturas homólogas à crônica no que ela possui de subjetividade — o ponto de vista do autor Mário de Andrade, somando-se ao ponto de vista de Odilon Moraes — ambos requerem um olhar-leitor que acompanhe os cortes e tome uma posição compreensiva da nova dinâmica. O espaço compartilhado entre Mário-personagem e o menino é, inicialmente, dominado pelas distâncias que a escolha de planos em perspectiva vem reforçar e, quase sempre, a figura do cronista ocupa realmente maior dimensão sobre o papel, não apenas porque é um homem maduro e corpudo,
mas também excesso de estranheza do moleque. A mudança de foco e a proximidade entre eles obviamente acontece no registro da crônica e na cineMATOgrafia das imagens. Mas, Odilon, antes faz um jogo de câmera, uma torção no eixo visual, sempre às costas do personagem adulto — o livro ilustrado é também evidentemente uma homenagem aos dias de criança, aos dias de Benedito.Em duas ilustrações, homem e menino se conjuminam no diálogo inevitável e compartilham de um mesmo espaço diante do diretor de cinema e do seu leitor-espectador. O plano em perspectiva ilusoriamente desaparece, ao vermos os dois próximos. É bonita a imagem de Mário e Benedito, montados em cavalos, lado a lado, o adulto adentrando as distâncias da paisagem, até então dominadas pelo dono de trezes anos em “carreiras livres pelo campo”. Ora, o momento mais feliz da leitura foi, da poltrona onde assisto à crônica, a impossibilidade de tradução verbo-visual à moda de conclusão dessa experiência — “Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu sorriso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam numa brancura sem par.”
— e, em troca disso, na dupla página (14-15), impõe-se nova distância na perspectiva: Mário é uma sombra mal definida, sentado em uma tora, junto ao descanso dos cavalos, abaixo do céu que é todo vibração de manchas — e o Benedito tão sem par, em primeiríssimo plano, que toda sua figura já não cabe mais na página, escapa em nossa direção, sorrindo para os leitores.[continua]
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