13 de junho de 2009

Primeira cena que o leitor invade, ou que invade o leitor, está na capa, dentro de um antigo trem, o homem no escuro, o livro em suas mãos iluminado por um dia azul, a janela pendurada na paisagem, a bagagem espalhada confortavelmente. Sem que queiramos (nem adianta mais negar o que o olhar acolheu), estamos enredados na narrativa que visualmente já começou. Nas páginas de guarda, uma comprida cerca ripada é duplamente observada — tanto do ponto de vista do personagem, quando do leitor que percorre, da esquerda para direita, uma estradinha de terra que se afunda num rancho longe. Corta para — uma visão panorâmica sobre uma pequena vila, próxima da estação de trem, casas com telha de barro, janelas e portas azuis, paredes cor de branco e cor de tempo; na linha do horizonte, depois dos verdes novos em folha, a linha dos trilhos com sua maria-fumaça fumando para o céu — e virando a página, um plano em perspectiva coloca Mário de costas para nós, retirando as malas da carroça, o cavalo parado; distante, uma sombra magra de moleque correndo serelepemente. Quando a primeira linha da crônica se inicia, um mundaréu de idéias já pertence ao universo do leitor.

Embora descritivas e informativas, à medida que encarnam e representam personagens e cenas da narrativa, e expressem uma força decorativa, as ilustrações, sem fugir dessas funções e qualidades, não redundam em dizer os mesmos significados que o código verbal ou roubar-lhe poesia e metáfora. A poesia visual é outra: seus reflexos ambicionam traçar estruturas homólogas à crônica no que ela possui de subjetividade — o ponto de vista do autor Mário de Andrade, somando-se ao ponto de vista de Odilon Moraes — ambos requerem um olhar-leitor que acompanhe os cortes e tome uma posição compreensiva da nova dinâmica. O espaço compartilhado entre Mário-personagem e o menino é, inicialmente, dominado pelas distâncias que a escolha de planos em perspectiva vem reforçar e, quase sempre, a figura do cronista ocupa realmente maior dimensão sobre o papel, não apenas porque é um homem maduro e corpudo, mas também excesso de estranheza do moleque. A mudança de foco e a proximidade entre eles obviamente acontece no registro da crônica e na cineMATOgrafia das imagens. Mas, Odilon, antes faz um jogo de câmera, uma torção no eixo visual, sempre às costas do personagem adulto — o livro ilustrado é também evidentemente uma homenagem aos dias de criança, aos dias de Benedito.

Em duas ilustrações, homem e menino se conjuminam no diálogo inevitável e compartilham de um mesmo espaço diante do diretor de cinema e do seu leitor-espectador. O plano em perspectiva ilusoriamente desaparece, ao vermos os dois próximos. É bonita a imagem de Mário e Benedito, montados em cavalos, lado a lado, o adulto adentrando as distâncias da paisagem, até então dominadas pelo dono de trezes anos em “carreiras livres pelo campo”. Ora, o momento mais feliz da leitura foi, da poltrona onde assisto à crônica, a impossibilidade de tradução verbo-visual à moda de conclusão dessa experiência — “Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu sorriso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam numa brancura sem par.” — e, em troca disso, na dupla página (14-15), impõe-se nova distância na perspectiva: Mário é uma sombra mal definida, sentado em uma tora, junto ao descanso dos cavalos, abaixo do céu que é todo vibração de manchas — e o Benedito tão sem par, em primeiríssimo plano, que toda sua figura já não cabe mais na página, escapa em nossa direção, sorrindo para os leitores.
[continua]

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