6 de julho de 2020

haicais visuais



☆ FOI UMA SURPRESA para mim, nos anos 1970, a descoberta dos cartuns e das charges sem texto. Passei a admirar profundamente a capacidade que os artistas tinham de expor suas ideias por meio de imagens desenhadas a nanquim e sem palavras. Chamavam a minha atenção, particularmente, as tirinhas de humor, com suas sequências de três a quatro quadros. Nesse curto espaço, seus autores desenvolviam histórias. Edgar Vasques com sua revista Rango, Luis Fernando Veríssimo com As Cobras, Henfil com o Fradim e algumas publicações alternativas, como o jornal Movimento e o Pasquim, que também tinham no desenho de humor uma forma de resistência política. Cartunistas, chargistas e caricaturistas formavam um grupo atuante que aliviava com humor crítico a dura realidade política e social do país, o momento difícil que o governo militar impunha aos brasileiros.

☆ Nessa época, influenciado por alguns amigos, produzi uns acanhados cartuns, que felizmente não vieram a público. Mas o desenho de humor me levou ao traço da caricatura e, mais adiante, à ilustração. ☆☆

 Parágrafos iniciais do posfácio para o livro HAICAIS VISUAIS, de Nelson Cruz @nelsoncruz @editora_positivo (2015) p. 52 #FiqueBem #FiqueFirme #FiqueEmCasa #AbreAspas2020


UMA LEITURA CRÍTICA, ANTES DA PUBLICAÇÃO
peter o sagae, em novembro de 2014

Descrição e gênero. O novo trabalho de Nelson Cruz opera curiosamente nos limites de três diferentes categorias textuais e das relações entre palavra e imagem. Temos, inicialmente, (a) um livro de imagem, mais especificamente um imagiário, oferecendo-nos (b) uma coletânea de micro narrativas que se resolvem na sucessão de três quadros, ao modo das tirinhas de jornal com os habituais traços de humor, crônica, crítica e os mais variados aspectos do mundo. No entanto, já o título da obra orienta a leitura rumo a uma proposição poética, ou seja, (c) uma articulação de imagens de forma análoga aos haicais.

A força do haicai não vem apenas de uma estrutura em três versos, mas principalmente de um intervalo intencional entre dois versos que podem, inicialmente, descrever uma imagem do cotidiano e a última parte do haicai que tradicionalmente transmite um conceito. No aspecto formal, nosso autor mineiro respeita este movimento de jogo ideogramático ou dialético, apresentando dois quadros de caráter descritivo, numa só abertura em página dupla e, com a virada da página, finaliza a sequência do novo haicai com um salto, uma quebra de expectativa, um disparate, uma surpresa, um elemento imprevisto. Verificamos assim a homologia estrutural, fazendo o haicai transitar da inscrição verbivocal-métrico ao puramente visual.

Títulos dos haicais. O olhar não adentra solitariamente cada pequeno e breve texto. Há sempre um título que dá conta de anunciar, denunciar a trama de intertextualidades para o leitor. Esta marca permite ampliar o campo da recepção.

Lendo “Magritte ao vento”, o título mobiliza um conhecimento prévio a respeito do pintor francês. Na visão dos dois primeiros quadros, um vento passa e leva embora o chapéu da cabeça de um homem e uma mulher. Onde estará o esperado clima de surrealismo? No terceiro quadro, onde vemos que o vento levou embora a cabeça de alguém. A mesma exigência parece vir da sequência que o autor denominou como “A hora da estrela”. Mas haverá um imperativo maior do que a lembrança da queda e a morte de uma personagem de Clarice Lispector. Em uma skyscape, ou silhueta de uma cidade recortada contra o céu noturno, uma estrela-cadente corre do alto abaixo – mas a surpresa vem com uma bateria ou buquê de fogos de artifício, colorindo o céu como flores de luz.

Ora, a leitura perfaz um caminho entre idas e vindas, voltas, leituras em retrospecto... Do haicai visual ao conhecimento literário e cultural: o que é a hora da estrela? quem foi Magritte?


Já na sequência de “Mensagem para mim”, com o recurso da metonímia, vemos uma mão e imaginamos uma criatura de pele negro-azulada que encontra uma mensagem dentro de uma garrafa na beira da praia. A imagem relaciona-se livremente com a figura de muitos náufragos e à ideia de ‘message in a bottle’. Trata-se do alter-ego do autor? A mim, o título me levou à figura de Caliban, à peça O Livro de Próspero (A tempestade). Enquanto não encontro motivo para essa associação, vemos o duplo de Nelson Cruz, com unhas pontuadas, fazer um aviãozinho de papel e arremessar a mensagem adiante...

Em especial, o haicai visual “Três gatos” fica-nos como o ponto alto do livro, sem amarras verbais ou literárias explícitas, implícitas. A imagem mostra-se e se diz, silenciosamente. O título que nada entrega de especial, além da mera informação: três gatos, em três quadros, e isto já permite aos leitores escolher entre três diferentes gatos ou três aparências de um gato só... Ah, sim, as relações permanecem em aberto, a continuidade na passagem do tempo vs. a contiguidade da vizinhança espacial dos telhados, a reverberação das sombras que se projetam sempre à esquerda... No segundo quadro, a cor arbitrária de um gato verde prussiano, como o céu, em um clima fauvista.


Força e ordem dos haicais. Se acreditarmos que a leitura é uma descoberta individual e, em certas medida requer a razão aventureira do leitor; que as camadas intertextuais necessariamente não precisam ser lidas por todos; que as diferentes idades do leitor garantem a riqueza dos níveis de leitura, podemos pensar que os títulos dos poemas tornam-se às vezes dispensáveis. É preciso também ver e assumir que o título desta coletânea é HAICAIS VISUAIS, o que reclama independências do código verbal, com sua pressão simbólica, estabilizadora dos significados, determinante.

A linguagem da imagem é dada a operar no nível da indexicalidade, como pistas de uma construção, bem como o haicai tradicional se faz através de um confronto dialético – ou seja: a síntese, a leitura, a palavra deverá pertencer ao leitor... Se todo haicai é um jogo diagramático, o diagrama é uma ponte entre a imagem e a metáfora, no rol dos hipoícones poéticos. Ora, para uma criança não importam as questões semióticas, nem os diferentes gêneros textuais intencionalmente mesclados; no entanto, inscrever-se e ler à sua maneira a estrutura do pensamento lúdico e filosófico do haicai.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...