27 de julho de 2009

Por todas as cores da afeição



Cristina Biazetto 
 Aurora 
Projeto, 2009

ISBN 9788585500757
24,2 x 24,2 cm 40p.


Aurora é um instante, um retrato do próprio tempo, o alvorecer. Um lugar, um caminho, uma cidadela inteira além da ponte. Um nome de princesa, um regresso à própria infância. Oh, aurora de minha vida, aurora de nossas vidas. Um pouco sonho, um pouco invenção: pois são diversos os fios que se cruzam à leitura-aventura do primeiro livro de imagem de Cristina Biazetto, tecendo manhãs de significação, conforme visitamos suas páginas-paisagens.

Imagine você o amanhecer acima de uma extensão de terras sem cores, galhos secos e pássaros pousados num canto ou outro, um casal de camponeses: é ele quem acaricia o solo com a enxada, é ela quem abraça o trigo enfeixado. No horizonte, a silhueta de uma cidade distante... Na janela, a menina e seu gato estendem o olhar sobre o mundo. Ela segura uma pequena bolsa, onde guarda pedras de cores preciosas; é a menina quem irradia as cores da aurora de um novo dia.

Ao casal, ela entrega uma brilhante gema verde, qual fosse uma esmeralda, e ganha uma bicicleta entalhada em madeira do tamanho da palma de suas mãos. Num abrir e fechar de olhos (ou páginas)... Lá vai ela cinderelamente pedalando rumo à cidade suspensa por esguias palafitas. Algo de magia, suponha você, aconteceu num piscar. No céu distante e cinza, um dirigível flutua.


Ilustração extraída de cristinabiazetto.com.br/blog

Antes de atravessar o portal, a menina encontra um homem de vestir antigo, túnica e manto compridos, e estende-lhe uma pedra de brilho azulante. A sentinela não é, senão outro, o poeta Dante Alighieri, coroa de louros, com um grosso caderno debaixo do braço. À entrada da cidade que alvorece, é como se pudesse propor versos aos leitores, feito que
“A mente humana se aprofunda tanto
Que a memória se esvai, lembrar tentando.”
(Paraíso I, 8-9)
Eis a chave que me dou para adentrar o labirinto de vielas, praças, palacetes e casarios renascentistas, qual Florença, qual Veneza, ou qualquer outro lugar de sonhos e vitrais, aonde a menina vai abrindo cores... E a memória juntamente se esvai, joga com as tentativas de enquadrar o tempo e o espaço imaginados por Cristina Biazetto. Numa rica fantasia, a autora embrenha por referências das artes e das ciências, territórios tão próximos porque propícios ao engenho inventivo pertencente a diferentes épocas. Do alvorecer cultural em fins do século XIII, as citações visuais estendem-se até as beiradas do XIX para o XX, com as rodas e máquinas de voar, ícones da alvorada tecnológica industrial.

Além do Novo Mundo descortinado por Dante, a menina encontra-se com um jovem Da Vinci, a quem oferece uma preciosidade vermelho rutilante. Ganha, de ambos, inventos — do poeta, o que parece ser um delicado alfinete com galinho, mais quatro pontas indicando as direções norte-sul-leste-oeste: um tradicional cata-vento que ela não hesita em fincar no bagageiro da bicicleta; — do pintor, um olhar sereno e uma mongolfiera, balão de ar tipo bulbo, azul, adornado em amarelo e dourado, com signos astrológicos e o sol espalhado em suas próprias pétalas.

Às páginas centrais do livro, está o ponto de virada da narrativa. A imagem da timidez da personagem, ante um jovem com a miniatura de um balão aeromóvel entre eles, encerra a primeira etapa da história que apresenta a menina, o caminho, o gato que lhe acompanha a viagem, os sucessivos encontros e as três trocas de uma pedra preciosa verde, azul e vermelha por pequenos objetos que imediatamente revelaram-se mágicos, tal como aconteceria em um tradicional conto de encantamento. Como lâmpada do mundo, a mongolfiera se eleva acima dos telhados, levando consigo a bicicleta de madeira equipada com o cata-vento: voa a menina e voamos com ela. A nova perspectiva revela, então, outra personagem com que Cristina Biazetto propõe uma continuidade mítica e outro ritmo às imagens.

Envolvida em mistério e saias que, à vista distante, são como asas de escuras penas, uma figura de mulher parece caminhar sobre uma ponte (ou voa?) rumo à outra parte da cidadela renascentista; atrás de si, um imenso véu sem cores... Ela leva consigo uma atmosfera sóbria, mas revela simpatia no sorriso de lábios negros. Quem poderia ser igualmente semelhante à Rainha da Noite? Não há mais rua ou rastro de claridade, um escuro embala a menina. Parece não existir mais tempo, ou espaço, apenas um manto sem fundo.

Biazetto passa a enumerar imagens, fazendo lengalenga de segredos: a mulher dá um cofre de prata à menina, cofre de prata que esconde a lua — a lua dá uma caixa dourada, caixa dourada que esconde o sol — o sol que sopra um prisma de cristal, prisma que a menina deu: e surge um arco-íris, arco que escorrega do céu ao chão, menina que escorrega... E retorna à paisagem campesina em uma aurora cheia de cores.

Mais que a técnica de desenho e pintura com nanquim e acrílica, distingue-se, neste livro de imagem, a técnica de construção de um mundo fantasioso. Em sua estréia como autora ficcional, Cristina Biazetto explorou diferentes auroras, ao mesclar elementos dispersos pela esteira histórica em um delicado e inventivo pastiche de referências visuais, cruzando saberes e sonhos; faz também o leitor percorrer olhos sobre uma narrativa que aspira uma estrutura circular, mais voltada para a poesia que à prosa. No entanto, se a forma não se fecha plenamente sobre si mesma, a temática culmina num gesto cíclico do movimento do sol e dos afetos do alvorecer, da lua e do brilho das estrelas. O ir-e-vir dos astros já estava bem prenunciado no desenho que cobre a falsa página de rosto e reaparecerá, logo após o final da narrativa. Livro que exige uma leitura contemporânea e pode fraternalmente abrir as janelas do instante atual sobre os versos de Dante:
“Dali nascia a luz; daqui viera
A noite; e um hemisfério branquejava
Enquanto ao outro a treva enegrecera.”
(Paraíso I, 43-45)
Na capa, o título em alto-relevo metálico e o recorte da janela revelando a cidade de sonhos e vitrais sobre palafitas. Ao lado, vinheta de abertura do livro.


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