Peter O. Sagae*
Em seu livro, o escritor ganês Meshack Asare reconta uma história que ouviu de seu avô, guardando-a, desde a infância, com os ouvidos do coração. Dá, assim, um testemunho muito recente a respeito da viva expressão oral de seu país como um manancial de fantasia e ensinamentos, abrigados ao colo da literatura impressa especialmente dirigida às crianças. Com a tradução de Cláudia Ribeiro Mesquita e ilustrações do próprio autor, dez anos após seu lançamento, em 1997, A cabra mágica dá um salto rumo a terras brasileiras através da coleção Barco a Vapor (Edições SM). Como acontece a tantas outras histórias semeadas com os grãos da oralidade, esta narrativa, próxima às lembranças e marcas da enunciação familiar, revela uma mescla de formas que os estudos convencionais separaram em gêneros da literatura de tradição. Uma fábula africana parece ter um pouco de todas as demais narrativas, sem qualquer tipo de esmorecimento rítmico ou moral.
Inicialmente, o narrador nos conduz a um tempo mítico, sem cidades ou continentes, um tempo que escoa às lendas, após a criação do mundo e sua divisão em dois reinos separados por um caudaloso rio. Isolados, viviam os homens e os animais nas margens opostas... Também pertence ao gesto verbal das lendas, o final que, mesmo não explicitado pelo texto de Meshack Asare, aponta uma nova organização da vida: cabras e ovelhas convivendo intimamente com os agrupamentos humanos, tão dóceis em sua natureza e domesticáveis à mão que lhes tomará lã e leite. O importante, na obra, é descobrir como e por que estes animais puseram-se à ventura do caminho...
Partindo em busca de um punhado de sal, a Cabra e a Ovelha caminharam brava e longamente quilômetros e quilômetros até o pôr-do-sol. Sem forças, desembocaram na casa da Onça que, muito generosa, ofereceu-lhes um quarto para o pernoite. Ora, o leitor logo reconhece a estrada dos contos populares que aí começa! A Ovelha é frágil e chorosa, mas Cabra tem gênio de malas-artes e desconfia sabiamente das intenções da imensa felina pintada.
Então, com muita esperteza e um inesperado passe de mágica, a Cabra vira-desvira a sorte, conseguindo salvar a amiga e a própria pele. Conto e fábula se equilibram do meio para o desfecho da narrativa, através da figura antropomórfica da Cabra, da Ovelha e da Onça, em uma luta de sobrevivência e convivência entre os mais fortes e os mais fracos. Mas também é uma história de amizade.
Quanto ao livro, apesar do formato aparentemente restrito, a ilustração de Meshack Asare confere estrutura às sequências da narrativa visual, levando o leitor sempre adiante. Cada personagem representado pela imagem assume um posicionamento claro nas páginas, de acordo com a função estabelecida dentro da história. Todo o interior da casa da Onça é pesadamente cinza, destacando a cor de fogo de sua pelagem, como cores metonímicas da fornalha onde a Cabra e a Ovelha se meteram, em contraste com as verdes pastagens vivas, no início e no final da obra.
* Comentários apresentados na Vitrine Literária de Dobras da Leitura 56, primavera 2008, revistos e ampliados.
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