por Peter O’Sagae
Entre o violoncelo e o livro de imagem, entre o mestre alemão e a autora mineira, o pensamento cavalga elegantemente por épocas e signos e inspirações distantes: um espelhismo do barroco, entre a música e a literatura, nas gavotas que percorrem a Suíte N.6 de Johann Sebastian Bach e a dança que serpenteia O Cântico dos Cânticos, de Angela Lago (Paulinas, 1992; Cosac Naify, 2013).
Volto recentemente da admiração silenciosa aonde os cânticos sempre me levaram, volto com o gesto de um galanteio tímido. Volto de tramar um estudo* para aclarar e acalmar, em mim, as questões de leitura do livro de imagem, questões que sempre voltam. E volto a ouvir a voz da autora a voar
“que se permita o devaneio poético.”
Volto de escrever que
Existe um livro de imagem descritivo de qualidade poética, representado por uma única obra que dialoga com toda uma tradição de textos do passado e do futuro, mil e uma histórias, mil e uma possibilidades de leitura que se desdobram nas volutas e arabescos das folhas, nas rosas e nos espinhos do tempo presente nas molduras página a página. Ver, ler e lembrar são três experiências que se igualam no mergulho através de O Cântico dos Cânticos, por Angela Lago (1992), e das imagens que encenam o encontro-desencontro de um jovem casal. Do encantamento dos textos bíblicos ao desvelamento do amor adormecido de Eros e Psiquê, em Fernando Pessoa (1934), o livro assemelha-se na forma e no conteúdo a um labirinto de lembranças e evocações que aproximam o leitor das qualidades do sentimento poético e o envolvem.
Especialistas da literatura para crianças e jovens têm apontado a importante materialidade do objeto-livro para a descoberta e reinvenção de seus significados. Ora, o projeto gráfico e as marcas nele impressos induzem à percepção da proposta circular da leitura que vai e volta sobre as mesmas páginas, sem começo ou fim. É realmente um livro de imagem de qualidades desafiadoras e poéticas que... contém outra figura de construção ainda mais poderosa que traduz o movimento de busca da moça pelo jovem e dele para ela, atravessando páginas de beleza, xadrez e ruelas: é o quiasmo, ou cruzamento na visão dos caminhos que se unem e separam-se no centro espiritual da obra.
Angela nos ensinou a contemplação, a visita às perspectivas de Escher e aos versos do rei Salomão que espio, no exercício intertextual, ao nome de uma rosa. “Era, tento agora entender, como se todo o universo mundo, que claramente é como que um livro escrito pelo dedo de Deus, em que cada coisa nos fala da imensa bondade de seu criador, em que cada criatura é como escritura e espelho da vida e da morte, em que a mais humilde rosa se faz glosa de nosso caminho terreno, tudo em suma, de outra coisa não falava a não ser do rosto que a custo entrevira nas sombras odorosas...”
Enfim, permitida a crença de tudo o que evola mergulha, volto às criações de Angela Lago que vieram depois, tão depois dos cânticos: e encontro as dobras de uma leitura intratextual pelo conjunto de sua obra, pelos compassos em Psiquê e Rilke à passagem pelos mesmos temas e temperamentos: em um só encanto, eterno canto. Exultemos! Ao primeiro passo, prelúdio...
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