8 de setembro de 2014

outras mãos embalam a taba

Peter O'Sagae


Já faz largo tempo que a literatura infantil respira um clima de etnocentrismo no que diz respeito à circulação de narrativas do complexo universo indígena brasileiro, cujo resultado, por vezes, contrariamente ao esperado de enriquecer nossas leituras, tem contribuído para a folclorização das diferenças. É quando entra em cena a figura do bom selvagem, sem vestígios da dimensão mítica ou humana que poderiam revestir os vários personagens. É a lição desaprendida do “tupi or not tupi”, enquanto certos textos esquecem da confluência entre os povos de todo mundo que para cá vieram em busca de um caminho e futuro comuns.

Não poderia deixar de pensar o parágrafo acima, antes de mostrar três livros de três autoras sem marcadas raízes indígenas – são outras mãos que embalam a taba, a taba dos leitores.


A contadora de histórias Ana Luísa Lacombe relembra um mito civilizatório dos Wapixana, em A árvore de Tamoromu, com ilustrações de Fernando Vilela (Formato, 2013). A narrativa exemplifica quão universal é o desejo dos antigos de comer e viver fartamente à sombra, sem se preocupar com o arado, a conservação das sementes ou da natureza, a necessidade de provisões ou o controle sobre o tempo. Tudo começa quando dois irmãos levam para a aldeia uma cutia que só quer saber de brincar e dormir na rede. Volta e meia, ela desaparecia pela mata, e mesmo recusando a comida que os índios ofereciam, tornava-se mais gorda e preguiçosa porque... Porque havia encontrado Tamoromu, a árvore mágica que oferecia todas as frutas e os alimentos da terra. Descoberto o segredo, os imprevidentes homens da aldeia derrubaram a árvore e colocaram-se tão ocupados em fazer o carregamento, que mal perceberam a vida extinguindo-se. Os pássaros voavam embora, as plantas e rios começaram a secar, a própria árvore transformou-se em pedra. Como todo mito impõe uma explicação necessária, o grande deus Tominikare revela sua contrariedade e ordena que cada homem passe a plantar a semente da fruta que tem em sua posse, cuidando da árvore que irá nascer para sua subsistência. Para sempre.


O livro está muito bem produzido – apresentação da antropóloga Betty Mindlin e Fanny Abramovich –, contendo CD de áudio com a narração de Ana Luísa Lacombe, trilha e sonoplastia de Sérvulo Augusto. Trata-se de um reconto, uma adaptação onde se inserem onomatopeias nhac! glub! e alguns puns soltos na intenção de fazer gracejo com o pequeno leitor. Apenas é pena, por duas vezes, pp. 13 e 23, a revisão de texto não esteve de acordo com o nome da árvore: Tamoromu ou Tomoromu?


Maria Inez do Espírito Santo reconta também um mitologema da tribo dos Anambé sobre a constante luta do homem contra a Fome, representada por uma criatura da floresta chamada Ceiuci, a velha gulosa, em um livro com as vibrantes ilustrações de Taisa Borges (Escrita Fina, 2013). Um menino, tendo saído muito cedo de casa para pescar, fora capturado pela velha que tudo devora: peixes, mamíferos e até mesmo gente. Todavia, consegue escapar com a ajuda da filha de Ceiuci que predestina ao pássaro cancão alertar o índio toda vez que velha canibal estiver por perto. Sem descanso, ele corre e percorre um longo caminho de perigos – e, quando alcança sua aldeia, não é mais um curumim, mas homem feito, de cabelos quase brancos... Com um ritmo de conto acumulativo, a narrativa recolhida por Couto de Magalhães, em 1865, torna-se facilmente comparável a muitas outras que, simbolicamente, relaciona o motivo da perseguição mágica e inúmeras provas ao processo de amadurecimento do herói.



Por fim, Socorro Acioli nos ensina que é possível criar histórias novas com temática indígena, inspirando-se em elementos tradicionais das várias culturas – como guardar as sementes ou a castanha de uma fruta para contar a passagem dos anos, hábito bastante comum em aldeias tupis do litoral brasileiro. Lançado originalmente em 2008, pelo Governo do Estado do Ceará, Tempo de caju, recebeu depois ilustrações de Maurício Negro (Positivo, 2010), e narra a fuga do menino Porã e sua tribo, quando perceberam a iminente chegada de inimigos em suas terras. O texto não esclarece, intencionalmente, a presença do “homem branco” ou guerreiros de outra tribo... O foco está nos laços de parentesco entre os personagens: durante a viagem, o curumim leva uma cabaça com mais de setenta castanhas que pertenceram ao sábio Tamandaré, seu avô. Contudo, ao chegar a outra margem de uma lagoa, ele logo percebe ter perdido a preciosa herança, proteção para todo seu povo.


Vinte e três estações de caju mais adiante, chegariam notícias de uma nova ameaça – e, em sonhos, o conselho de Tamandaré alcança o coração do neto: “Quando a gente não sabe aonde ir, é melhor voltar por onde veio.” Impregnando o texto de um tempo cíclico e uma geografia afetiva, Socorro Acioli abre e fecha sua história à sombra do tempo bom do verão, à sombra dos ensolarados cajueiros nordestinos.


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