18 de julho de 2015

palavra e imagem, silêncio e diálogo

Quando o carteiro chegou... 7


Muito leio e ouço falar a respeito das relações palavra e imagem, contudo poucas pessoas encontro dispostas a explicá-las ou fazer entender o que entendem com essa expressão que virou uma espécie de abre-te-sésamo para a conversaria em torno da literatura para crianças. Qual seja... hoje encontro motivos para um exercício de leitura com Marianne Dubuc que tem proposto diferentes tipos de livros para leitores de todas as idades.

Inspirado em uma parlenda, UM ELEFANTE SE BALANÇA (DCL, 2013) foi o primeiro título da autora canadense publicado no Brasil. A passagem da oralidade para o mundo impresso, em um livro ilustrado intertextual, permite-nos pensar uma parcela expressiva da literatura infantil como um gênero secundário da criação verbal em que a relação boca-ouvido (tão cheia de imagens pessoais) é resgatada e complementada por figuras visivas, despertando novas situações, brincadeiras e comentários entre adultos e crianças.

Olhemos agora ÔNIBUS (Jujuba, 2015), traduzido por Maria Viana. Olhemos a capa – a leitura se faz rapidamente. O cenário: a rua, duas árvores, o gramado, um fundo azul como algo infinito, o cinza na calçada e no asfalto, a tampa do bueiro, um ponto de ônibus. A figuração toda se faz teatral – close na personagem: menina de cabelos curtos, castanhos, vestindo um casaco vermelho, levando na mão uma cestinha. Não é preciso dizer que se trata de Chapeuzinho Vermelho, pois não é – porém, a personagem dos contos de antigamente aí se mostra por dois ou três índices unicamente seus, um objeto que carrega e a cor, associados com a identidade de menina. Já imaginamos e sabemos como a narrativa vai terminar, já. Mas o importante será o caminho...


O interior do veículo torna-se o principal cenário da história ou histórias. Marianne Dubuc oferece uma ilustração rica em detalhes e personagens espalhados por toda a dupla-página; são cinquenta e seis centímetros de comprimento, quando o livro permanece aberto. E, nesse espaço, o pequeno leitor encontra uma gata fazendo tricô, duas lebres de saias xadrez, um urso de botas, uma tartaruga, uma preguiça, um rato... A cada parada do ônibus, tudo se movimenta, as lebres deixam cair uma bala de goma de mascar, entra uma família de toupeiras, alguém sai pela porta dos fundos, um bode vende flores, uma coruja veste um chapéu, aparece uma misteriosa personagem atrás das páginas do jornal (dizem que é Marianne), as toupeirinhas vão pra lá e pra cá, e chega um lobinho aparentemente simpático... O que pode acontecer?


Como um jogo, a cada página virada, alguém mudou de lugar, algo se dá. Neste livro, a narrativa visual pede uma leitura em vai e vem, uma leitura comparativa, ora para frente, ora para trás, como muitas vezes é o balanço de um ônibus na cidade. As imagens falam, as imagens contam e até dispensariam o aparato verbal. No entanto, ele ali está, mínimo, uma sentença e outra revelando o pensamento, a curiosidade, os espantos, a admiração da menina que segue viagem, a cada acontecimento dentro do ônibus. A relação palavra e imagem é pontual ou factual, exprimindo emoções e reações da personagem, e também vincula o ato da leitura (visual) à verbalização entre a criança pequena e um leitor adulto que dá voz às frases.


Marianne Dubuc também produziu um livro de imagem, em 2007, chamado MAR (Positivo, 2014), com uma história de perseguição bastante inusitada. Na contracapa, o verbal busca encapsular toda a narrativa visual em uma sentença só: “Um gato com fome e um peixe que não quer servir de refeição.” Porém, o que faz a história tão especial não é seu caráter linear sucessivo...


É a magia ou triunfo da imagem, em seu significado mais profundo de emancipação – e poesia. Para fugir ao felino, o peixe vermelho inventa asas e voa pela sala da casa, depois escapa para os telhados da vizinhança, vai atravessando um arvoredo, alcança a lua e o gato, atrás, calça estrelas para subir ao céu... Do outro lado da cidade ou do mundo, o peixe mergulha nas águas do mar onde talvez Mar, o gato, não ousa pular! Exatamente e por que não? Uma narrativa visual deve nos permitir evocar sentimentos, o olhar perplexo, novas ideias e um modo inaugural para relacionar imagens e seus enigmas, em palavras. Pelo menos, este livro assim permite...


Uma das marcas mais geniais de Marianne Dubuc é o domínio do ritmo em todas as suas obras, empregando sabiamente a virada de página e o silêncio. No livro ilustrado O LEÃO E O PÁSSARO, traduzido por Ana Caperuto (Positivo, 2014), a narrativa demanda várias estratégias combinadas: o narrador em terceira pessoa, a voz do leão como um discurso livre, assinalado discretamente pelas letras em itálico, a narrativa visual, as cores, a alternância de cenas molduras e páginas de ilustração inteira.


Um leão trabalha em seu jardim, quando encontra um pássaro com a asa ferida, sem poder acompanhar o bando que migra para terras mais quentes. Ainda é outono, mas o leão sente que não poderá abandoná-lo e acabam passando toda a fria estação na companhia um do outro. De certa maneira, parece uma história oposta à brincadeira do gato com peixe-voador esta que trata da amizade indubitável do leão pelo pássaro. Tudo o que fazem juntos é uma sucessão de quadros felizes. Quando se quer retratar o isolamento que possuem do restante do mundo, a imagem amplia-se, ocupa duas páginas e vemos a casa algo distante como um esconderijo. O tempo bom chega com o início da primavera e os pássaros retornam pelo caminho do céu. É hora do amigo seguir com os seus iguais.

O leão naturalmente se entristece – e estar só é sentir-se todo pequeno em um barco à deriva no meio do lago. Mas, creio, que existe um sentimento que nenhuma imagem traduz fielmente. A esperança é um hálito verbal. “Um dia, o outono também volta.” Ora, passamos a aguardar o pássaro, como o leão olhando o céu...

Mas existe, na relação palavra e imagem de Marianne Dubuc, outra força. Uma força que é tempo passando no signo branco de algumas páginas, a presença de uma ausência que faz sentir e faz pensar. Ou seja, silêncio verbal e silêncio visual.


E o que rompe este diálogo?
Um assovio.

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