Mas de repente, silêncio imenso baixou nas suas pálpebras. As árvores pareceram se iluminar por dentro, até as pedras ficarem transparentes. As poças d’água viraram espelhos, tudo que era sujo e feio ganhou estranha boniteza.
— Está sonhando, Zé? — escutou uma voz tão longe que podia vir de seu espírito ou dos confins do mundo.
Sonhando? — repetiu para si mesmo, num eco. E beliscou o rosto, os braços. Não é possível. Talvez esteja sonhando que sonho, e por esse descaminho de fantasia me perco. Uma sombra, um sonâmbulo entre coisas tão exatas. Finjo que sonho, melhor dizendo, para não me espantar com o que vejo. Deixo que sobre os meus cabelos, vinda das ramagens ou das estrelas, caia essa poeira luminosa, e meus ouvidos se encham de um silêncio que agora é a mais perfeita das músicas. Um simples olhar, a posição do corpo, um jeito que se dá nas lembranças e nas ideias — e despertamos para o encantamento. É a minha iniciação no mistério, no sonho acordado. Ou será que é fome?
Nisso, no justo momento, a Voz novamente:
— Não é fome nem nada, Zé. É a poesia. Ela só vem quando nos sentimos assim, como se nus estivéssemos diante das coisas, desligados das aparências do mundo. Mas sem esquecer o mundo, a gente que mora nele. Criando outros mundos. Leves. O coração sem ódio.
— Mas eu me sinto é que nem criança, imaginando os impossíveis — respondeu Zé Grande.Logo a Voz foi morrendo nas quebradas, se confundindo com os cochichos das plantas sonolentas. Tudo regressou à condição desencantada de antes, e a noite já era completamente. Zé Grande gritou com angústia, tentando agarrar a Voz que fugia:
— Isso mesmo. A poesia é um dom das crianças. Mas não há nada de impossível em tudo isto.
— Então é real cair chuva de luz nos cabelos da gente?
— Sim, Zé.
— E ver moças dançando? bailarinas vestidas de folhas e com lanternas na mão?
— Sim, Zé.
— E ouvir música sem saber donde vem?
— Sim, sim, Zé. Tudo é verdadeiro no reino em que você está. E lhe pergunto agora: sabe quem são estas moças?
— Não sei, mas me lembram alguém.
— Pois são Flor-do-Sereno.
— Como? Flor-do-Sereno é somente uma e mais ninguém.
— Ora, Zé. A poesia multiplica tudo. Na dança do sonho, Flor-do-Sereno é muitas e ela só.
— Não enxergo o rosto dela, os olhos, a cor da pele, o sorriso que me doma.
— Mania de que tudo seja certinho... Só porque as coisas às vezes não se apresentam inteiras, acabadas, não quer dizer que elas não existem. Vê aquele homem ali, trepado no galho maior?
— É meu pai. E aquilo que ele toca é o pífano perdido.
— Sem tirar nem botar.
— Não vou encontrar o pífano de meu pai? Não terei mais Flor-do-Sereno?
* * *
Haroldo Bruno
O MISTERIOSO RAPTO DE FLOR-DO-SERENO
Capa: Joaquim Caetano Neto
(Salamandra, 1979) pp. 20-22.
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