2 de outubro de 2009

naquela floresta de abraços

por Peter O'Sagae


Taisa Borges, no livro de imagem A BELA ADORMECIDA (Peirópolis, 2007), remonta a versão de Charles Perrault, em meio à estamparia floral que evoca os longos braços de folhas e espinhos que circundaram o velho castelo.

São finíssimos os traços que detalhadamente desenham rostos e vão contornando os volumes todo-brancos do cenário e do rico figurino. Como que assinalando faltas e ausências, as imagens surgem tingidas por um vazio de cores — um amarelo apenas esmaece ao fundo do casal real; um vermelho pouco rubro mancha a toalha da mesa, onde se reúnem sete fadas elegantes, durante a celebração do nascimento da princesa; mais adiante, existe um verde que a esperança do príncipe exige sobre seu manto... E branca será a floresta por onde o amado há de passar. Somente o vestido de Bela tem sempre cores, da ansiedade juvenil ao sono irrevogável: vermelho, azul, amarelo, o corpete, o recortado das mangas, a saia, a floração que ali se insinua em giros e onde mesmo há de brotar um novo matiz para a sua história.

Pois bem: ao escolher a versão francesa do conto, Taisa Borges reserva as páginas centrais para uma seqüência, por vezes, desconhecida dos pequenos leitores. Sob a proteção do castelo, no aconchego da floresta de abraços, Bela e o príncipe tiveram dois filhos — e é mais do que chegado o momento dele apresentar a nova família, em outro reino, perante seus pais. E as cores, as vestes escuras, o rosto mal iluminado da Rainha-Mãe antecipam o destino sombrio que está para acontecer!

Neste trabalho, que encerra uma trilogia de homenagens aos contos de fadas, Taisa Borges enfrenta o desafio de cenas mais estáticas e estancadas, principalmente na primeira parte do livro, como se os personagens estivessem posando para um quadro ou parados à beira de um palco. As páginas são verdadeiramente rememorativas, exibindo certos momentos do conto, sem encadeamento de ações, o que exige conhecimento e esforço da memória para o leitor completar a narração.

cores e ambientes instintivos

por Peter O'Sagae


Da voz à palavra escrita, os contos tradicionais guardaram imagens sabiamente mágicas na medida em que libertam a mente para o sonho. Mesmo um conto que se inicia tristemente e desperta sentimentos de desamparo, possui nuances de força, brilho e otimismo. Assim, para escapar da floresta, João e Maria ludibriam a má sorte com pedrinhas brancas cor de lua e encontram o caminho de volta para a casa. No entanto, ao marcarem a trilha com pedacinhos de pão, as crianças são conduzidas à ventura em bico de passarinho...

Inspirado no conto registrado pelos Irmãos Grimm e nas pinturas de Kirchner, o segundo livro de imagem de Taisa Borges: JOÃO E MARIA (Peirópolis, 2006) parte do Romantismo no início do XIX para refugiar-se nas cores e nas formas do Expressionismo, às vésperas da Primeira Guerra. A autora adivinha e alinhava tradições pictóricas e literárias num gesto particular de contigüidade. Entre a angústia e a pobreza, existe, pois, um mal estar social representado “nas formas quase sempre pontiagudas e nas cores, às vezes sombrias, e outras puras e quase sem nuances, criando ambientes instintivos e, em certos momentos, agressivos”, de acordo com Taisa.

Ao instinto, então. Que o leitor se deixe capturar — e, mais que compreender com a razão, sinta o efeito das cores em sua sensibilidade. Desde as paredes internas da casa, tingidas de vermelho intenso e dramático, à noite sem fim através da floresta, a trama visual evoca o estado de abandono das personagens. E João e Maria têm figuração em branco e preto, alheios às cores, de fato, às outras dores.

o silêncio e canto inestimável

por Peter O'Sagae


Um livro de imagem nem sempre narra uma história; poderá ser um portfolio de ilustrações, tal como mostra Taisa Borges ao rememorar um velho conto de H.C. Andersen: O ROUXINOL E O IMPERADOR (Peirópolis, 2005). Suas experiências, nas artes plásticas e na criação de estamparia têxtil, habilitam-na a sugerir cenas com riqueza de padrões coloridos, decoração farta e elementos figurativos sobrepostos, auxiliada pelos recursos e recortes da computação gráfica. Contudo, as cenas que Taisa ilustra pedem que o leitor tenha conhecimento prévio da história sobre um imperador, donos de largas terras e um imenso jardim que se confundia com as florestas e chegava até as franjas do mar. Longe de seus olhos e de seu coração, apenas os mais simples pescadores conheciam o canto de um inestimável pássaro, um pardacento rouxinol.

Nesse livro, notas e claves musicais são projetados do bico do pássaro por todos os quadros, atravessando páginas e transformando-se em flutuantes mensagens escritas na forma de ideogramas. O texto de Andersen revela que, somente através de notícias do estrangeiro, o poderoso imperador tomou conhecimento da existência do sonoro rouxinol e fortemente o desejou para si. Contudo, ninguém em seu palácio, fosse nobre, fosse conselheiro, ou qualquer outro cortesão, sabia de seu paradeiro. Apenas uma simples e jovem cozinheira o ouvira cantar...


Para os pequenos leitores talvez seja impossível adivinhar a trama que une o verdadeiro pássaro ao rouxinol mecânico, com penas de ouro e cravejado de pedrarias que o imperador recebe de presente — pois o livro de imagem de Taisa Borges não apresenta a continuidade de uma ação à outra; entre os quadros, um intervalo extenso se interpõe. O livro assemelha-se ao tradicional ‘kamishibai’, uma modalidade de entretenimento em que contadores profissionais ou missionários budistas narravam histórias e fábulas a partir de desenhos, previamente feitos, apresentados em pranchas com o texto escrito no verso, a uma platéia de populares, entre adultos e crianças. Depois da década de 1920, as folhas ilustradas do ‘kamishibai’ foram recuperadas por vendedores ambulantes de doces e também por agentes de ensino, como estratégia para garantir-lhes a venda e a atenção do público infantil. Para nós, a relação palavra&imagem, aí perpassada da voz aos ouvidos e dos desenhos aos olhos, caracteriza O rouxinol e o imperador como um livro de ilustrações que procede do texto verbalmente escrito e a ele retorna.

11 de setembro de 2009

bem do seu tamanho



Ana Terra
RUA JARDIM, 75
(Larousse, 2008)

Ligue a antena de seus olhos e siga adiante: vem, vem para dentro do livro, ver ler-ouvir o que Ana Terra tem para contar: a história de um bicho que encolhe, vira, ajeita, espicha, acode... Um dia, mal-humorado acorda o caracol e começa ele a desenrolar o caminho em busca de um lugar para viver. E ele abandona a concha por um tilim, tilim, tilim, depois encontra um plect plect, quando, de repente ploft e já vai lá andando ele no chap chap chap bem protegido, numa casa-lugar que ele pode carregar. Tudo que ele vê, ele quer, mas — ô caracol insatisfeito, onde é que pretende chegar?

De braços dados com a tradição da fábula de animais, agora num passeio pela Rua Jardim, 75, Ana Terra conduz o pequeno leitor por um exuberante jogo de linguagens que só mesmo textos contemporâneos da literatura para crianças podem oferecer. É bem fácil reconhecer que os códigos verbal visual e sonoro brincam pelo espaço das páginas, sempre muito coloridas e movimentadas — porém, a leitura aqui não pode parar naquilo de olhar saudar analisar apenas a acrílica e a colagem de materiais diversos, uma técnica presente no trabalho de toda uma geração de ilustradores. Às vezes, é possível procurar um pouco mais e pensar nas estruturas plásticas e rítmicas que Ana Terra vai construindo.

O texto (aí compreendendo palavra&imagem) organiza-se como uma performance de signos impuros — desde o código verbal (carregado das sonoridades da rima e configurando um espaço coreográfico onde os tipos/letras mimetizam vozes, onomatopéias e movimento) até a escolha e a distribuição dos elementos visuais. No nível figurativo, a concha do caracol é sucessivamente substituída por um sino, uma bota, um regador, etc. reproduzindo objetos fotografados. Mas — antes mesmo de ilustrar certa idéia ou uma passagem da história, não seriam a troca e os novos arranjos visuais da casa do caracol o que motiva o desenvolvimento da narrativa?
Como uma contadora de histórias que se utiliza de objetos em cima de uma mesa, o livro re-encena a prancheta e o processo da ilustradora ao descobrir, em cada forma, a cada instante, um elemento narrativo funcional. Isto é intrinsecamente lúdico, fazer literatura como quem brinca — a criação ainda se processando no livro às nossas mãos.

Ana Terra também investe numa composição de perspectivas profusas que descentralizam o olhar, multiplicando postos de observação para o leitor aventurar-se. A cada página, Ana desterra um ângulo diferente — e o projeto do livro, como um todo, parece obedecer à lógica líquida da videografia, com suas cores inquietas, os cenários inconstantes, o olho-câmera que zapeia por rápidas sequências visivas ou atravessa camadas de imagens editadas verticalmente. Vejamos três fragmentos do livro: uma admirável visão área das anteninhas do caracol pensando sino; a montagem ou trocadilho visual da bota que virou casa; e a sobreposição espacial de imagens que representam o curto intervalo em que o caracol carregou um regador nas costas: uma linha tracejada explicita o deslocamento da casa, da mesma maneira que ensina um caminho de leitura.

De braços dados com a simplicidade das histórias para pequenos leitores, Ana Terra, na Rua Jardim, 75, conduz qualquer pesquisador a um intrincado campo de observação.

Sempre em casa


Tatiana Belinky questiona o valor das máximas populares e das convenções sociais nelas alicerçadas, no texto Quem casa quer casa? (Global, 1995), ilustrado por Alcy. A felicidade não depende das promessas, mas do puro exercício da convivência. Com o outro. E consigo mesmo, como demonstra Ana Terra, na Rua Jardim, 75 (Larousse Júnior, 2008). Ou com todos os outros, com todo mundo — e o mundo: no livro de imagem O caminho do caracol (Studio Nobel, 1993), Helena Alexandrino guarda o mito de um jardim de maravilhas numa grande concha, uma grande casa.

7 de setembro de 2009

O jogo do era uma vez



Glaucia Lewicki
il. Gonzalo Cárcamo

ERA MAIS UMA VEZ OUTRA VEZ
Edições SM, 2007

ISBN 9788576751595
12 x 19 cm 64p.


De repente, o narrador de uma velha história sente uma nova emoção: o livro de conto de fadas onde mora, anos e anos esquecido e empoeirado na estante, é decididamente retirado dali por uma pequena leitora. Já não era sem tempo! Relembrar e contar mais uma vez a narrativa da casa! E, como o narrador é quem deve fazer tais honrarias e abrir porta da história para os leitores, ele bem sabe que deve conferir se tudo está em seus devidos lugares e os personagens prontos para entrar em cena. À saída das primeiras linhas, no entanto...

O narrador logo compreende que o "era uma vez" não era mais coisíssima nenhuma do que fora, outrora, e deveria ter sido para todo o sempre. Pulando de página em página, antes que o livro seja aberto pela futura leitora, Sir Narrador desbrava um mundo totalmente diferente daquele em que havia deixado os personagens. Está armada a confusão: cada um se arranjou com o próprio destino, criando uma história diferente... O famigerado Dragão de Sete Asas — na verdade, nem sete eram suas asas! — optou por comprar o castelo do rei e mudou o nome do reino!
O rei, ora essas, está muito bem, obrigado, numa praia tropical. A Princesa Priliana de olhos adoráveis tem ainda os olhos adoráveis — mas onde foi parar? Somente Sapristo, um monte de músculos e pouco cérebro que era o príncipe, continua tão inteligente e forte quanto antes...

Glaucia Lewicki atrai o leitor para uma história descontraída em que os personagens cansados dos papéis tradicionais de um conto de fadas, dão tratos à bola para viver com bem entendem — um jogo literário que retoma uma tendência da década de 1970. Questionando os valores do passado, à sua vez, Lewicki dá também ao texto a irreverência da metalinguagem, ironiza o status do narrador, põe em cheque sua onisciência, re-considera o lugar que o leitor ocupa em relação às obras e dá evidência à existência material do livro, ora como cenário, ora como suporte.

Sir Narrador é visto, nalgumas das ilustrações de Cárcamo, correndo para as margens da página como quem irá saltar para fora do livro. Mas o inverso acontece igualmente: uma sombra insinua a passagem do leitor “para dentro” da história, em diálogo com os personagens que estão sob seus olhos. Viu?

19 de agosto de 2009

Um parafuso a mais para a literatura




Tino Freitas
il. Mariana Massarani
CADÊ O JUIZO DO MENINO?
Manati, 2009
ISBN 9788586218590
21 x 21 cm 24p.


Tino, substantivo masculino, um quê de instinto, certo discernimento: juízo natural. É isso o que ensina o dicionário. Um menino sem tino é um menino sem juízo, sem o senso do perigo, com um parafuso a menos: assim dizem as pessoas. Quando acorda esse menino, o dia todo se entorta com ele: do quarto bagunçado ao banheiro, onde está o juízo do menino que contente, contente, penteia os cabelos com uma escova de dente?

Tino também é um tipo de roedor. Em especial, um roedor de livros ;-) um menino sem juízo, naturalmente. Aí se escreve o nome dele com letra maiúscula: Tino. E um Tino sem tino é o mesmo que um menino sem parafuso? Ou um parafuso sem menino? Porque, neste livro em que o Tino Freitas poetou, Mariana Massarani afrouxou parafusos por todas as páginas para o leitor encontrar. Está dentro do armário, no frio da geladeira ou guardado na mochila? Por onde o menino passa, vai deixando sua marca, sua idiossincrasia, sua mania de fazer as coisas a seu modo... Podem falar à vontade, comentar, reclamar, criticar, chiar: o menino passa. Passa adiante.

Quando chega a noitinha, o menino — que é míope para a ordem ordinária do mundo — aventura-se. Num livro... E a ilustração abre o diálogo do presente com os textos da tradição literária para crianças e jovens, desparafusando mais horizontes para a leitura de O gênio do crime, de João Carlos Marinho, Pluf, o fantasminha, de Maria Clara Machado, Drácula, de Bram Stoker, O patinho feio, de Andersen, Robson Crusoé, de Daniel Defoe, Alice no país das maravilhas, de Carroll, obras de Monteiro Lobato e Júlio Verne.

Em seu livro de estreia, Tino Freitas compõe trovas bem quadradinhas para cantar a história de um menino sem juízo — e aparece ele próprio, Tino, todo colorido com seu violão, ajuizando o parafuso da leitura bem lá no final do texto. A voz narrativa cede lugar à mensagem do autor, transformando o livro em uma peça de atividade leitora: é necessário recomeçar e procurar os parafusos soltos na ilustração. Mas, será que a gente não tinha visto, não?



Com os Roedores de Livros: sacola e juízo.

18 de agosto de 2009

Um livro para fisgar poesia


De Lalau e Laurabeatriz, HIPOPÓTAMO, BATATA FRITA, NARIZ: tudo deixa um poeta feliz! (DCL, 2009)

Poesia sobre quase tudo: bicho, planta, gente: o que deixa um leitor feliz? Uma aliteração alinhavando Lalau e Laurabeatriz, ou a rima do nome dela com seu nariz? É divertido e oportuno começar a trocar as coisas de lugares, desde a capa do livro. Então, veja bem: as imagens aí se espalham num bailado — ou, num diagrama coreográfico, em que a relação palavra&imagem começa a movimentar a atenção do leitor. Tem hipopótamo, claro que tem — e batata frita também? O que evoca uma cor e lembra certa forma são analogias tantas! Vamos buscando elos de sentido aqui e acolá, compondo pares, comparando elementos, uma palavra, um desenho, outro desenho — e uma ideia qualquer, gaiata e ligeira, surge. De repente, vai embora...

Um processar de descobertas acontece igualmente antes de o poema bater no papel — é preciso um fisgar raio-como-quê para dar palavra a um alumbramento. E bem assim, ou quase assim, saem estes poemas de Lalau, sortidos e livres, brincando num vai-bem de semelhanças: sono é nuvem de mel, chuva são guizos, criança não tem diferença de uma estrela-do-mar, cobra fica igual à mola, quando se enrola e prepara o bote...

Mas, muito mais que comparações inusitadas ou feitas a partir do perfil de um triângulo ou de um círculo, Lalau se divertiu com outros lances de relação. Veja só que o livro tem um poema para o que tem embaixo das coisas, um poema para o que tem dentro das coisas e outro poema para o que tem fora das coisas — textos que jogam com o óbvio e o inesperado, nalguns versos a mostrar que “Embaixo do pinguim, / Tem gelo. / Embaixo do beduíno, / Tem camelo.”, “Fora do tatu, / Tem buraco”, ou “Fora da lâmpada, / Tem Aladim.”, lembrando letra de canções de Nando Reis e a simplicidade bem humorada de José Paulo Paes, dando voz de criança à esperteza que existe/resiste em todos nós. É muito saboroso também “Um poema para os professores” que encerra o percurso de treze textos desenhando ideias e ideais de um mundo melhor rimado.

E os desenhos de Laurabeatriz? Indefectíveis, mantendo a sobreposição de seres viventes, voadores, caminhantes, com pétalas, bico, olhos e rabo de cometa.

17 de agosto de 2009

roseana nas alturas


Roseana Murray
il. Mari Ines Piekas
POEMAS DE CÉU
Paulinas, 2009

ISBN 9788535623888
20 x 28 cm 24p.


Dizem que os poetas habitam o céu. Não sei... O que me dão por verdade é que, durante séculos, tiveram olhos para as estrelas e outros astros, fazendo versos sentimentais de toda métrica. Apenas um Manuel Bandeira, certo dia, teria decidido demissionar a lua de atribuições (e atribulações) românticas. No entanto, parece que nem todos estiveram de acordo para abandonar a mansidão escura e imensa da noite — e por lá ficaram muitos: como Roseana Murray.

Parece também que o céu tem funduras e Roseana continua pescando versos com a mesma linha com quê imaginou o cais de outros amores, desertos, jardins e madrugadas. Neste livro, o eu-lírico salta ao quintal do céu para colher uma estrela cadente — no entanto, numa insistente e curtida solidão como se fosse apenas possível o mergulho para dentro de si. Ora, direi efeito fazer soar na voz de poeta uma voz que adolesce, sentindo “essa coisa esquisita” que é como um pedaço faltando, um buraco negro dentro da alma... Assim, contrariando a própria ciência que lança sondas aos confins e encanta-se, nem mesmo o cosmos é percebido e explorado por um olhar poético que extravaga por espaços de belezas astronômicas e siderais.

Poemas de céu é uma coletânea que traz auroras, sinos de vento e prata, crepúsculo, via Láctea, sonho, arco-íris, força da gravidade, extraterrestres, constelações distantes, caminho de estrelas — tudo que atravessa e habita o céu, impondo unidade temática. Porém, a janela desses versos não é aberta unicamente para o leitor juvenil, como seria de suspeitar. Alguns poemas são destinados a crianças menores; embora poucos, são eles que deram o tom para o projeto gráfico e a ilustração de Mari Ines Piekas: sem mistério e didaticamente diagramado.



7 de agosto de 2009

Carinho também é uma forma de obediência



Elias José 
AS HORROROSAS MARAVILHOSAS
l. Rosinha, bordados de Iane Costa
DCL, 2009

ISBN 9788536802435
20,6 x 27,5 cm 40p.


Haveria ela de casar, um dia, tanto que rezava e pedia para Santo Antonio. Contudo, parecia mesmo que o santinho propositalmente deixava para atender seus pedidos depois. Por isso, a moça chorava. E chorava... E a mãe resolveu ajudar. Ajudou? Pôs olho no mundo, procurando moço bonito e trabalhador, encontrou Tonico, dono da loja do lugarejo e pôs-se, então, a prosear com o escolhido para genro. Porém, saiba já, mãe que fala demais atrai pra filha muitos ais... E deu no que deu: a mulher alardeou que não havia quem bordasse tão perfeito e tão rapidamente como sua filha — e isso chamou a atenção do rapaz que ofereceu para ela o melhor linho e meadas de cor variada. Mas, a moça!

A moça não sabia nada. Tentou, bem que tentou. Furou os dedos inutilmente. Mal aprendeu a enfiar a linha na agulha e a dar um nó. Deu pontos grandes, desajeitados, e acabou sujando o linho com tanta lágrima. Correu, enfim, para pedir ajudar a três velhinhas horrorosas, bordadeiras maravilhosas...

Elias José empresta seu jeito de minerar histórias a um velho conto da tradição européia que aqui chegou nalguma caravela portuguesa, tendo sido também compilado nas coletâneas feitas por Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso. Classificado como um conto de exemplo, pelo folclorista Câmara Cascudo, esta é a mesma história das três fiandeiras que ajudam uma mocinha em troca de um favor: um convite para o casamento que irá ser celebrado proximamente e ser recebida como tias da noiva. O que parece apenas uma prova ingênua acaba transformando a sorte da jovem, pela magia do reconhecimento do favor prestado e pelo fervor de uma obediência carinhosa.

Nas ilustrações, obediente à temática, Rosinha Campos divide o traço de seus desenhos com retalhos de linho colorido e os bordados de Iane Costa. O livro transforma-se quase todo numa toalha de cenas e florzinhas emoldurando o texto com delicadeza.

Desenrolando diferentes histórias



Linho: a viúva deseja o melhor para a filha bordar, na perspectiva de Rosinha para o reconto de Elias José, As Horrorosas Maravilhosas (2009) [saiba+]. Seda tecida por Lúcia Hiratsuka em duas versões de O Passáro do Poente (1993 e 2007).

Em silêncio e seda


Lúcia Hiratsuka
HISTÓRIAS TECIDAS EM SEDA
(Cortez, 2007)

ISBN 9788524912870
18 x 28 cm 48p.


Como tecidas em silêncio e seda, três belas jovens atravessam a paisagem de antigas narrativas japonesas. São três histórias de segredos que começam quando uma moça vestida de quimono branco surge inesperadamente através dos campos de neve, uma princesa com o rosto escondido por um vaso foge pelos jardins de um palácio e uma tennin celestial vem banhar-se em um lago na terra...

Na lenda d' O Pássaro do Poente, Otsû é a moça misteriosa que pede pousada à casa de um aldeão. Parecia perdida por aqueles caminhos que a neve apagou e Yosaku aceitou sua companhia, por uma noite... Mais outra... E outra mais — até que um tempo melhor viesse e ela pudesse prosseguir. Mas não foi bem assim que a trama da convivência envolveu os dois, quando abriram as flores da primavera e do casamento feliz que tiveram. Para ajudar o marido, Otsû pediu um quarto com um tear e, durante três dias, ali permanecia tecendo fios e desenhos em seda — e Yosaku deveria esperar, sem procurá-la ou espiar seu trabalho...

A segunda história do livro de Lúcia Hiratsuka é um conto mágico, semelhante em estrutura e sonho à ventura das donzelas obrigadas ao trabalho e ao borralho. Hachikazuki é uma princesa que recebe a benção materna na forma de um estranho vaso posto sobre sua cabeça. Todavia, aos olhos do príncipe, não passarão despercebidas sua delicadeza, inteligência e sensibilidade.

A história de Tanabata possui diferentes versões que, muitas vezes, aproximam o conto e a lenda, em um só texto, e que se ligam intimamente ao Festival das Estrelas. É bem assim o comecinho: preso aos galhos de um pinheiro, Mikeran encontra o raro e leve manto de uma tennin e, cautelosamente, o recolhe e esconde. Mesmo quando a bela jovem, mergulhada nas águas do lago cristalino, pergunta-lhe se vira seu manto mágico, contando que não poderá voar, sem ele, de volta ao reino acima das nuvens, Mikeran faz segredo, oferecendo sua casa e companhia. Porém, tudo o que se guarda, um dia, é encontrado — e Tanabata recupera seu precioso hagoromo e o desejo urgente de voltar.

Estas três histórias tecidas em seda já haviam sido compiladas pela autora em diferentes volumes (Estação Liberdade, 1993 e 1995) de uma coleção, esgotada há um bom tempo. Reunidas em um só livro, as narrativas receberam novas roupagens em texto e ilustrações, compondo também nova unidade: em todas as três, é sempre uma promessa e a necessidade de perseverança que enredam os personagens, seus segredos e destino.


« Um dia, ao limpar a casinha dos fundos onde se guardavam objetos em desuso, Hachikazuki encontrou um velho koto. "Ah, que saudades da mamãe. Sempre tocávamos juntas." Dedilhou as treze cordas, fazendo soar o delicado som daquele instrumento. Logo, seus dedos pareciam se mover por conta própria, relembrando as melodias que tocava junto com a mãe. O príncipe ouviu aquelas notas. "Que linda música... Quem será que toca tão bem?" »

27 de julho de 2009

por todas as cores da afeição







Cristina Biazetto 
AURORA
Projeto, 2009

ISBN 9788585500757
24,2 x 24,2 cm 40p.


Aurora é um instante, um retrato do próprio tempo, o alvorecer. Um lugar, um caminho, uma cidadela inteira além da ponte. Um nome de princesa, um regresso à própria infância. Oh, aurora de minha vida, aurora de nossas vidas. Um pouco sonho, um pouco invenção: pois são diversos os fios que se cruzam à leitura-aventura do primeiro livro de imagem de Cristina Biazetto, tecendo manhãs de significação, conforme visitamos suas páginas-paisagens.

Imagine você o amanhecer acima de uma extensão de terras sem cores, galhos secos e pássaros pousados num canto ou outro, um casal de camponeses: é ele quem acaricia o solo com a enxada, é ela quem abraça o trigo enfeixado. No horizonte, a silhueta de uma cidade distante... Na janela, a menina e seu gato estendem o olhar sobre o mundo. Ela segura uma pequena bolsa, onde guarda pedras de cores preciosas; é a menina quem irradia as cores da aurora de um novo dia.

Ao casal, ela entrega uma brilhante gema verde, qual fosse uma esmeralda, e ganha uma bicicleta entalhada em madeira do tamanho da palma de suas mãos. Num abrir e fechar de olhos (ou páginas)... Lá vai ela cinderelamente pedalando rumo à cidade suspensa por esguias palafitas. Algo de magia, suponha você, aconteceu num piscar. No céu distante e cinza, um dirigível flutua.


Ilustração extraída de cristinabiazetto.com.br/blog

Antes de atravessar o portal, a menina encontra um homem de vestir antigo, túnica e manto compridos, e estende-lhe uma pedra de brilho azulante. A sentinela não é, senão outro, o poeta Dante Alighieri, coroa de louros, com um grosso caderno debaixo do braço. À entrada da cidade que alvorece, é como se pudesse propor versos aos leitores, feito que
“A mente humana se aprofunda tanto
Que a memória se esvai, lembrar tentando.”
(Paraíso I, 8-9)
Eis a chave que me dou para adentrar o labirinto de vielas, praças, palacetes e casarios renascentistas, qual Florença, qual Veneza, ou qualquer outro lugar de sonhos e vitrais, aonde a menina vai abrindo cores... E a memória juntamente se esvai, joga com as tentativas de enquadrar o tempo e o espaço imaginados por Cristina Biazetto. Numa rica fantasia, a autora embrenha por referências das artes e das ciências, territórios tão próximos porque propícios ao engenho inventivo pertencente a diferentes épocas. Do alvorecer cultural em fins do século XIII, as citações visuais estendem-se até as beiradas do XIX para o XX, com as rodas e máquinas de voar, ícones da alvorada tecnológica industrial.

Além do Novo Mundo descortinado por Dante, a menina encontra-se com um jovem Da Vinci, a quem oferece uma preciosidade vermelho rutilante. Ganha, de ambos, inventos — do poeta, o que parece ser um delicado alfinete com galinho, mais quatro pontas indicando as direções norte-sul-leste-oeste: um tradicional cata-vento que ela não hesita em fincar no bagageiro da bicicleta; — do pintor, um olhar sereno e uma mongolfiera, balão de ar tipo bulbo, azul, adornado em amarelo e dourado, com signos astrológicos e o sol espalhado em suas próprias pétalas.

Às páginas centrais do livro, está o ponto de virada da narrativa. A imagem da timidez da personagem, ante um jovem com a miniatura de um balão aeromóvel entre eles, encerra a primeira etapa da história que apresenta a menina, o caminho, o gato que lhe acompanha a viagem, os sucessivos encontros e as três trocas de uma pedra preciosa verde, azul e vermelha por pequenos objetos que imediatamente revelaram-se mágicos, tal como aconteceria em um tradicional conto de encantamento. Como lâmpada do mundo, a mongolfiera se eleva acima dos telhados, levando consigo a bicicleta de madeira equipada com o cata-vento: voa a menina e voamos com ela. A nova perspectiva revela, então, outra personagem com que Cristina Biazetto propõe uma continuidade mítica e outro ritmo às imagens.

Envolvida em mistério e saias que, à vista distante, são como asas de escuras penas, uma figura de mulher parece caminhar sobre uma ponte (ou voa?) rumo à outra parte da cidadela renascentista; atrás de si, um imenso véu sem cores... Ela leva consigo uma atmosfera sóbria, mas revela simpatia no sorriso de lábios negros. Quem poderia ser igualmente semelhante à Rainha da Noite? Não há mais rua ou rastro de claridade, um escuro embala a menina. Parece não existir mais tempo, ou espaço, apenas um manto sem fundo.

Biazetto passa a enumerar imagens, fazendo lengalenga de segredos: a mulher dá um cofre de prata à menina, cofre de prata que esconde a lua — a lua dá uma caixa dourada, caixa dourada que esconde o sol — o sol que sopra um prisma de cristal, prisma que a menina deu: e surge um arco-íris, arco que escorrega do céu ao chão, menina que escorrega... E retorna à paisagem campesina em uma aurora cheia de cores.

Mais que a técnica de desenho e pintura com nanquim e acrílica, distingue-se, neste livro de imagem, a técnica de construção de um mundo fantasioso. Em sua estréia como autora ficcional, Cristina Biazetto explorou diferentes auroras, ao mesclar elementos dispersos pela esteira histórica em um delicado e inventivo pastiche de referências visuais, cruzando saberes e sonhos; faz também o leitor percorrer olhos sobre uma narrativa que aspira uma estrutura circular, mais voltada para a poesia que à prosa. No entanto, se a forma não se fecha plenamente sobre si mesma, a temática culmina num gesto cíclico do movimento do sol e dos afetos do alvorecer, da lua e do brilho das estrelas. O ir-e-vir dos astros já estava bem prenunciado no desenho que cobre a falsa página de rosto e reaparecerá, logo após o final da narrativa. Livro que exige uma leitura contemporânea e pode fraternalmente abrir as janelas do instante atual sobre os versos de Dante:
“Dali nascia a luz; daqui viera
A noite; e um hemisfério branquejava
Enquanto ao outro a treva enegrecera.”
(Paraíso I, 43-45)
Na capa, o título em alto-relevo metálico e o recorte da janela revelando a cidade de sonhos e vitrais sobre palafitas. Ao lado, vinheta de abertura do livro.


21 de julho de 2009

...uma flor é uma flor, e...


Roger Mello
A FLOR DO LADO DE LÁ
Global, 1999

ISBN 9788526006201
20 x 20 cm 36p.


Tem gente que já conhece o animal que aí está, na capa, mas tem gente que ainda não — por isso, me isento de contar o bicho que é. De fato, o divertimento deste livro é descobrir a sua identidade, caro leitor! Pois Roger Mello criou um personagem ambivalente, com traços e cores de cartum, exagerando algumas características, deixando encobertas outras, que, às vezes, torna-se quase impossível descobrir onde estão os olhos ou as orelhas. Dá para ver que tem pêlos ou patas com grandes unhas? Pode ser um mamífero, então? Que seja...
Na hora de colocá-lo “em ação”, o autor vai deixando mais evidente como são suas patas ou onde está a boca.

Na seqüência das páginas, a influência do desenho animado é uma marca muito forte; e a imagem consegue congelar as posições mais engraçadas e mais escancaradas do estranho animal. Seu humor também oscila de alto e baixo, entre o estado mais alegre, espantado, esperançoso, derrotado e, novamente, entusiasmado, surpreso, sonhador e verdadeiramente sem forças... Por duas vezes, o pequeno personagem parece perceber a presença do leitor — no início, com ares de irrevogável tédio, como quem pergunta: “O que é que ’tá olhando, nunca viu?” e já no fim de sua desventurada história, como que pego no meio do movimento, de repente, virado numa estátua, mas aí já são muitas possibilidades de interpretação: Gulp! Hein? Que foi?

Os enquadramentos da página não estão fixos. A cada nova cena, o olho-câmera de Roger se aproxima e afasta-se do personagem, ao mesmo tempo em que vai cruzando três pontos de vista: (1) um plano que permite ver tanto o animal, quanto a flor de pétalas vermelhas e brancas; (2) um plano em perspectiva, quando o expectador vê somente o cálice verde da planta e a borda da ilha do pequeno mamífero pouco mais distante; e (3) um contra-plano que inverte este último. Como o personagem, não pára quieto, estica para cá, pula, deita e rola no chão, talvez seja mais fácil detectar as três relações espaciais pela presença da água que encobre a base de ambas as ilhotas, apenas de uma ou de outra.

Toda página sempre traz uma surpresa, mas surpresa maior acontece quando o campo de visão é aberto para o leitor e somente o leitor compreende a situação tragicômica em que o pobre animal se meteu... Mas (como sempre), isso não é tudo. O final é ainda mais terrivelmente engraçado para quem descobre que esse personagem só podia ser um-... Ops!

Ambivalente nos traços, ambíguo nos sentidos que constrói com ironia, A flor do lado de lá é um jogo com o próprio suporte material: nas viradas de página, a flor permanece sempre do lado oposto ao pequeno e incurável animal. Mas isso, já estava estampado na capa:


Só não vale ler a quarta-capa,
antes de abrir o livro, ok?