31 de agosto de 2014

a lição do passaredo

Peter o.O'Sagae


Chico Buarque e Francis Hime certamente não pensavam em literatura infantil ou fazer uma canção para crianças, quando escreveram a letra e a melodia de “Passaredo” para o filme A noiva da cidade, de Alex Viany (1976), cuja história, a partir de um argumento desenvolvido pelo cineasta e pioneiro Humberto Mauro, tomava como cenário a cidade ficcional de Catavento, em meio à zona da mata mineira, onde uma famosa atriz busca resgatar e viver a paz de suas raízes interioranas. Contudo, os políticos do lugarejo assediam a estrela no intuito de usarem sua influência nas causas que defendem... Ora, o tema musical funde-se a esse ambiente de tranquilidade prestes a romper-se – existe, realçada pelo arranjo instrumental, uma carga de aflição entre os sons das madeiras e a percussão acelerada cheia de estrídulos e alarmes. Bico calado, toma cuidado! Só um ouvinte incauto perguntaria: que homem vem aí ameaçando a liberdade do passaredo humano?


É viva a escolha lexical na construção do poema, com o chamamento das interjeições e os verbos no imperativo: ei, oi, ai, foge, vai, xô, xô, xô, some, anda, te esconde, voa, voa... E tamanho passaredo rapidamente viria pousar, com um arranjo mais calmo e as vozes do conjunto MPB-4, na trilha sonora de O sítio do pica-pau amarelo (1978). Humberto Werneck (1989) lembra como Chico trabalhou a letra, caçando pássaros nos livros e nas enciclopédias, e comenta que
Famintos por visibilidade, alguns urubus de plantão logo quiseram vincular Chico Buarque à tão nobre causa ecológica. Profundo conhecedor desta espécie de urubus, quando indagado se havia aderido a algum movimento ecológico, o compositor, irônico, foi categórico: “Eu não entendo nada de bicho. Aliás, eu não gosto de bicho. Pra falar a verdade, eu detesto bicho.”
Pois bem: na poesia para crianças, há mais amor aos pássaros ou às palavras?
Voaram agorinha três livros para cima da mesa...


No mesmo ano de 1976, o poeta português Sidónio Muralha entregava aos leitores brasileiros A DANÇA DOS PICA-PAUS, com ilustrações de Isabel Pires, hoje com traços e cores de Eva Furnari (Global, 1997). Brincando com a repetição e a divisão de umas poucas palavras, o autor não veio apenas falar de pássaros e outros bichos; ele solfeja ritmos e dialoga com a criança nos diferentes níveis da imaginação, dos afetos e dos valores que pretende despertar.


Nos últimos anos, tem sido grande a investidura em um discurso ecológico, solicitado pela Escola, e a própria poesia muitas vezes se repete nas aliterações e paronomásias exploradas no passado. Vamos ver e ouvir a nova informação literária?


FEIRA DAS AVES, de Jorge Fernando dos Santos e Cláudio Martins (Prumo, 2010), usa de rimas paralelas e traz um desabafo frente às gaiolas de um viveiro, despertando pena em gente e silêncio, tristeza, carranca e padecimento no passaredo aprisionado. O livro faz parte da coleção Natureza Viva e coube à ilustração um papel preponderante ao exibir vinte e duas aves coloridas, ainda que os traços de Cláudio Martins tendam para a estilização, como sempre, humanizando plantas e animais com olhares e expressões várias.




PASSARINHOS DO BRASIL: poemas que voam, de Lalau e Laurabeatriz (Petrópolis, 2013) apresenta-se às nossas mãos como um catálogo ilustrado de espécies que habitam os seis biomas brasileiros – pampas, mata atlântica, pantanal, cerrado, caatinga e floresta amazônica. O nome de cada ave funciona como o título de um texto muito breve, praticamente uma frase simples para as crianças não tropeçarem na linguagem, ao modo de slogans. É Laurabeatriz quem capricha nos detalhes ao retratar as particularidades de pássaros tão belos, quanto exóticos de nossa fauna.

28 de agosto de 2014

diante de nossos olhos

Dobras da Leitura 45, mai. 2007


Gosto dos antigos filmes de Georges Méliès.
Suas imagens caprichosas piscam em minha retina e


sobrepõem-se à figura de Pedro, a cabeça desprendendo-se leve para o alto. Cabeça de lua. Na página em preto e branco, nanquim vertido sobre o croqui, nada se parece pedra, nem peso parece possuir... Todo leitor sabe como
é doce deixar-se iludir pelas palavras. No entanto, uma imagem poderia mentir diante de nossos olhos?

Não sei... A primeira dupla-página do livro de Odilon Moraes: PEDRO E LUA (Cosac Naify, 2004) é, pois, essa surpresa e interrogação. Para os leitores mais experientes, a obra pode ser tomada como uma sincera homenagem a Manuel Bandeira, Raimundo Correia e Carlos Drummond de Andrade, apenas para chamar atenção aos nomes de uns poucos poetas e autores de “Satélite”, “Plenilúnio” e “No meio do caminho”, respectivamente.


Pois no meio do caminho de Pedro tinha um livro, onde lera que a lua era
uma grande pedra flutuando no céu. Então, o menino todo se encantara! Encontrou, encoberta por algumas palavras, uma afinidade mágica, admirável e mítica, que o faria sonhar e seguir adiante... A cada noite, Pedro ia juntando as pedrinhas que ele mesmo cismou e concordou consigo terem caído do alto


e, com essa alma mais lá que aqui embaixo, foi subindo uma montanha e asilou todas as pedras para ficarem mais próximas de casa, a lua... O esforço rumo ao aparente inútil é, realmente, sempre belo.

E, no meio do destino de Pedro, outra pedra o fez tropeçar na felicidade
– uma tartaruga – tão bonita quanto uma lua esverdeada no golfão dos ares. Daí, o correto batismo: Lua.


Esta é uma história de amizade verdadeira. Mas, por quanto tempo, durariam
as pedras, o inalcançável satélite, a solidão e a saudade? Eis o outro encanto do livro, a descoberta e a afirmação que o essencial permanece invisível aos nossos olhos.

Peter O'Sagae

26 de agosto de 2014

vejo a lua... e você?

Peter O'Sagae


Uma das imagens literárias mais cálidas e recorrentes, na voz dos poetas, é a lua. Também toda mãe e pai atento, ’vó coruja ou professora orgulhosa certamente têm na lembrança uma coleção de frases, analogias, análises e olhares infantis sobre o satélite móvel. É realmente um dos primeiros mistérios que interessa às crianças – nem todas, é verdade, mas àquelas que nascem com instinto de investigação. Afinal, como pode algo sempre no alto modificando sua forma, cor e localização? Por que a Lua exige que a gente se veja toda noite a procurá-la?
O que acontece quando ela desaparece?




Maria Amália Camargo que tem mania de mexer com as palavras, encontrou explicações que nenhum cientista concordaria... e descobriu como se deu o primeiro eclipse lunar! Imagine que a Lua andava cheia da vida e suas tarefas. Olhava o rosto no espelho das águas, via-se cansada, inchada, a pele inteira esburacada e, então, decidiu sair de férias. Só não pense que foi coisa fácil, as estrelas armaram uma grande confusão! Tudo isso se conta em tom de comédia no livro QUANDO A LUA TOMOU CHÁ DE SUMIÇO, ilustrado com caras e bocas, sorrisos e uma tonelada de piscas-piscas por May Shuravel (Caramelo, 2013).


II 

 A autora belga Anne Herbauts sonha um percurso ilustrado com imagens do cotidiano. Porque dorme durante o dia, a velha Lua quando acorda, acaricia o gato, desenha milhares de estrelas nas paredes do céu e sai para fazer a ronda: recolhe névoas, leva os ruídos para longe, cerra cortinas e janelas... Ah, sim! Semeia sonhos e varre os pesadelos embora – até que seja hora de regar o amanhecer de orvalho. QUE FAZ A LUA À NOITE? é um livro faceiro e bucólico representando uma lógica de ações bastante linear para crianças pequenas – e sonhadores de qualquer idade (DCL, 2013).


23 de agosto de 2014

o caminho das pedras

Peter O'Sagae


A pedra possui um forte simbolismo e quase não há escritor que escape a seu apelo. No livro A CIDADE DOS CARREGADORES DE PEDRAS, de Sandra Branco, com ilustrações de Elma (Cortez, 2008), desde o título já se adivinha o peso da metáfora, na tradição literária e oracular, como um fardo difícil que se carrega às costas. Na cidade onde Pedrinho nasceu, era natural ver as pessoas carregando pedras: algumas com devoção, outras com pena de si; a maioria com o esforço próprio, mas outras passando a responsabilidade adiante... E não faltavam aqueles que escapavam a levar apenas algumas lascas de pedra – julgando-se espertos, sem se aperceberem que o acúmulo também lhes traz o preço incômodo dos caminhos a pagar.


Pedrinho se impõe a pensar – quem foi o primeiro homem a carregar pedras? E por que todos deveriam levar seu peso vida afora? O narrador da parábola atualiza a lição na voz de um personagem apresentado como o velho e sábio senhor Pedroso que trabalhava na pedreira da cidade. Tudo é, então, muito bem explicado, pedra sobre pedra, sem espaços para as inferências do leitor. Rompendo pedras, quebrando a tradição, as pessoas passaram a crescer sem os sentimentos do medo e da culpa, um pouco mais leves e felizes.


Em outro livro para crianças, perguntas também ocupam o pensamento da personagem Mariana, uma menina de olhos azuis como muitas outras meninas de olhos de outra cor, sempre feliz, iluminando a vida dos adultos desde o seu nascimento. Até que... Chega a idade dos porquês, cujas explicações quase sempre dão ensejo a terminar com um desabafo peremptório da criança – “Não é justo!” Em A PEDRA DO CONHECIMENTO, de Sergio Napp, com ilustrações de Anelise Zimmermann (Paulinas, 2010), o escritor tem enumerado pequenas peripécias domésticas no cenário rural dos pampas e conduz Mariana a um riacho de águas claras, onde fortuitamente encontra uma pedra de forma ovalada com vários tons de azul – um pedaço de céu que caiu na Terra, assim imagina a menina.


A pedra do conhecimento transforma-se em uma espécie de talismã para resolver qualquer mistério que houvesse no caminho de Mariana. Contudo, isto é um despiste que o narrador espera que o leitor descubra: não está na pedra o poder, mas no olhar de quem a segura – um olhar que vai além, que perscruta, que não se conforma...

“Cabe a cada um escolher o que fazer.” Esta é a palavra de toque de Tino Freitas, a última frase do livro KURIKALÁ E AS TORRES DE PEDRA, que conta com as ilustrações de Lúcia Brandão (Salamandra, 2014).


O menino Demócrito Kurikalá é um dos muitos brasileiros mestiços: filho de homem branco e mãe indígena, vivendo ainda em um pedaço de chão karajá sem energia elétrica, afastado dos divertimentos pela televisão e a internet. O seu olhar aprofunda-se pela mata do cerrado e através das histórias que sabe o avô – e a vida, assim pertinho das águas frias do Rio das Almas, vai se preenchendo de significados.

A mãe faz bonecas de argila para vender na cidade e, no caminho... As pedras do caminho pedem o calor da mãos de Kurikalá, e o menino vai construindo pequenas torres equilibrando pedras por onde passa. É essa toda a sua natureza: semear diferenças, como se estivesse brincando. Mas, não está! Tino Freitas soube tirar proveito de um universo interior em construção em que a atividade de trabalho funde-se a uma forma de razão e alegria moral. É assim que o menino faz a sua parte – e ainda que venham outras crianças de outros lugares com outras visões de mundo, por curiosidade ou ignorância, destruir o caminho que só ele soube escolher –, Kurikalá retoma o equilíbrio entre as torres, pousando pedra acima de pedra, sem peso algum.


21 de agosto de 2014

ninguém apressa o rio

Peter O'Sagae


Quem vê o escuro peneirado de estrelas e ouve os grilos brilhando no capim? Com imagens sensíveis – transmitidas através do desenho e da palavra –, Lúcia Hiratsuka vem tocar a percepção do leitor para as distâncias que unem a terra ao céu, o perto e um horizonte desconhecido, o presente às lembranças. E é assim que as primeiras páginas do livro ilustrado ORIE (Pequena Zahar, 2014) mostram o vento a passar, preenchendo a madrugada, uma garça voando em direção ao leste, uma pequenina borboleta branca no alvorecer dos passos de uma menina. Ela é Orie.


Na beira do rio, um barco balança e espera a família, acolhe cestos e fardos, tudo ali parece acomodado. A água dança com os peixes, com o remo que corta o caminho para a viagem acontecer. Então, a cidade chega com suas cores e tanta gente... Orie não sabe por quê é mais demorado voltar para casa! O barco nem parece um berço, o chão é duro. O remo de bambu vai e vem, recorta a água, mas – ninguém apressa o rio...


Lúcia Hiratsuka narrou, com frases curtas (o verbo caminhando sempre no presente do indicativo) e ilustrações singelas (traços sempre muito indiciais com o grafite correndo no sofisticado e rústico papel craft), um tempo de descobertas para a menina Orie, como a primeira viagem de barco para a cidade. É, pois, um tempo que não se apagou da memória e passou da experiência da avó da autora para o imaginário da artista, como uma presença revivida ou uma duração mágica das coisas que jamais terminam.


Pelas antigas paisagens do Japão, sons, cores e sensações despertam em um mundo apto a refazer-se a cada dia. E a narrativa balança serenamente como um pêndulo: o barco vai, o barco vem, o olhar através, as surpresas também...

A vida segue sua viagem e o leitor haverá de encontrar Orie, alguns anos depois, apressando os pés até o rio. Todavia, pai e mãe já partem com o irmão mais novo no colo. O remo toca Orie, os sentimentos a balançam. É um tempo para renovar os afetos, um tempo próprio: eternamente Orie...


20 de agosto de 2014

macacos me mordam!

peter o,sagae



Qual a quantidade ideal de macacos, pra gente aprender a contar? Um dá um salto, outro senta ao lado do primeiro (já são dois) e mais outro espera sua vez, então pula... São três macacos no galho. Um a um, eles vão entrando na jogada – e, não demora, lá são dez!

Maurício Veneza e Jean-Claude R. Alphen reuniram talento e humor em um livro para crianças pequenas, apresentando os números às voltas com algumas brincadeiras, caras e caretas que diferentes símios podem fazer; ora é um sagui aqui e ali, um mico-leão-dourado debaixo de uma coroa, um chimpanzé castanho, outro de pelagem mais escura... O galho já estava pesado, quando veio mais um macaco: um gorila, essa não! Foram todos para o chão!


Leitores e professores, olhem lá: MACACADA (Positivo, 2011) é um livro de contar, selo ‘Altamente Recomendável’ da FNLIJ e um dos 30 Melhores Livros Infantis do Ano (Revista Crescer) 2012.


Mais de dez macacos gritando e balançando aparecem no livro de Sílvio Costta, ilustrado por Liza Petiz: CADA GALHO COM SEU MACACO (Paulinas, 2014). Contrariamente à diversão, a intencionalidade do texto é a advertência: folia demais pode acabar em desastre...

18 de agosto de 2014

quando ele voltar

Peter O'Sagae


Há um touro a correr na areia, aponta o poeta maranhense Ferreira Gullar nos versos do poema que virou livro: O REI QUE MORA NO MAR, com ilustrações de Rogério Borges (Global, 2000). O autor resgata e reconta uma das lendas mais lindas que cruzou o tempo-oceano de Portugal ao Brasil e a fé, ainda que cega, praticamente inabalável de que Dom Sebastião voltará para libertar o povo da fome e toda forma de opressão. Mas, sentenciam seus versos que, se o povo conseguir matar o touro encantando – afinal –, quem se liberta é o próprio povo da opressão que a crença encerra!


Cláudio Rodrigues nasceu também no Maranhão e, no livro O REI QUE VIROU LENDA, il. Guazzelli (Girafinha, 2009), volta às terras de outros tempos para lembrar do nascimento e a infância do rei-menino Dom Sebastião. Escolheu para narrar a forma do romance ou rimance popular, com versos organizados em dísticos que melhor dão as batidas dos cascos dos cavalos no chão. É a marcha das palavras, mas também a marcha dos homens que vão à guerra contra os muçulmanos.


E é sobre o extenso areal do Saara que o rei destemido desaparecerá: quando tudo tornou-se silêncio e escuridão, a certeza de as miragens do deserto encobrirem razão e verdade. De fato, foi o deserto que venceu... Porém, como as histórias heroicas viajam, a figura de Dom Sebastião teria ressurgido na forma de um touro reluzente, mensageiro de um reino encoberto pelas areias das dunas brasileiras na ilha dos encantados Lençóis Maranhenses. Cláudio Rodrigues assim evoca a folia do Bumba meu Boi urrando no terreiro.

Por fim, Wilson Marques é autor de um reconto em cordel: A LEDA DO REI SEBASTIÃO E O TOURO ENCANTADO, com ilustrações de Dedê Paiva (Mercuryo Jovem, 2011). Seu tom é admonitório e fatalista; anuncia que Dom Sebastião foi “um rei que queria ser/ forte, temido e galante,/ mas teve sina terrível (...)

Consumido pelo sonho,
Por desejos de grandeza,
Esse homem, para a vida,
Não teve muita destreza,
Tanto almejava a glória,
Por prêmio teve a tristeza.

O perfil que se adivinha, desde os anos de juventude, é um Sebastião mimado, ambicioso e exigente, apesar da veneração que o povo lhe dedicava. No contexto das chamadas guerras santas, o autor dá ênfase à falta de apoio de Filipe II, rei de Espanha, e a derrota na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos (1578) que faria Portugal perder a autonomia à dinastia filipina por longos sessenta anos.

Finda a narrativa, no entanto, já a partir da metade do livro, os comentários perdem o mesmo tom e cobrem parte da dor e da esperança das pessoas pelo retorno do rei, o que se tornou lenda, o rei desejado, o rei adormecido que, dizem, vaga e pena por seus excessos do passado, sob a forma de um touro que possui uma estrela na testa.