18 de dezembro de 2014

cinquenta e cinco

Dezembro, tempo diverso


Leitura e memória, poesia e política. Um livro de capa branca. O título e o desenho em traços pretos simples, a expressão de tristeza no rosto de duas crianças, o nome de Bertolt Brecht e, antigos, outros versos me sopram o afeto de uma esperança, ecoam e ricocheteiam das páginas de outro livro para este agora...
Pequena caixinha que carreguei quando em fuga
Para que suas válvulas não pifassem,
Que levei de casa para o navio e o trem
Para que os meus inimigos continuassem a falar-me
Perto de minha cama, e para a angústia minha,
As últimas palavras da noite e as primeiras da manhã
Sobre suas vitórias e sobre meus problemas
– Prometa-me não ficar muda, de repente.
De repente, a leitura adiante impõe uma certa acústica e uma inquietação: o texto presente terá os mesmos encanto e silêncio a serem percebidos a cada linha percorrida?


Polônia, ano de trinta e nove. As cidades eram só chamas e rumores de uma estranha história. Tropas de crianças nas ruas, pequeninos retratos com frio.
Escapavam às batalhas
e deixavam a dor pra trás,
desejavam só descanso
num país cheio de paz.

Havia um pequeno chefe
que animá-los bem queria,
porém algo o preocupava:
o caminho não sabia.

Procurando um lugar entre os lugares desolados e perigosos, na neve infinita, ora marchando contra o vento, a fome, ora aprendendo as lições de caligrafia, todo dia a lição da amizade, ia o bando dos cinquenta e cinco pequeninos atrás de uma cidade sem bombas aonde ninguém sabia. Tarra-ta-ta-tá, o solitário som da caixa alta do tambor. Incansavelmente, eles, sempre com medo...
Quando fecho os meus olhos,
vejo-os perambular,
vagando de sítio em sítio
sem nenhum auxílio achar.

A partir da ascensão e o domínio do nazismo na Alemanha, em 1933, Bertolt Brecht viu-se obrigado a percorrer outros países. Embora fugindo aos perseguidores, o poeta e dramaturgo sempre escreveu seus textos como uma expressão de resistência e esperança. O contorno de suas palavras claramente testemunhou a crueldade, as injustiças, a dor, porém com acentuada ternura pelos pobres, infelizes, soldados mortos, viúvas e órfãos da guerra, e todos os demais abandonados em uma trajetória sem casa, sem descanso.

A cada página, o livro impõe o encanto e um silêncio a serem percebidos: certa vida percorre duplamente voz e imagem. É o presente mesmo que segue adiante, sem indicações seguras, apenas vibração, um golpe de vista... O poema narrativo A CRUZADA DAS CRIANÇAS apareceu publicado pela primeira vez em 1948 e foi acolhido pela ilustradora espanhola Carme Solé Vendrell, em um projeto bastante pessoal em 2011. Bertolt Brecht, assim, hoje ainda, poderá cativar novos leitores, por sua força, beleza e simplicidade. Por que somos pequeninos. Necessariamente.


Um novo ano + poético para você: 2015
com A CRUZADA DAS CRIANÇAS, de Bertolt Brecht
trad. Tercio Redondo, il. Carme Solé Vendrell
(Pulo do Gato, 2014).

*

16 de dezembro de 2014

quadras para o verão

Dobras da Leitura recebeu


Marco Haurélio nasceu no sertão baiano e reuniu quadras, umas poucas adivinhas rimadas e cantigas do ciclo natalino, celebrando a poesia popular e o verde que renasce na estação das chuvas, durante dezembro. Saborosas, as quadrinhas foram quase sempre organizadas pela repetição do primeiro verso, variando depois as sequências. LÁ DETRÁS DAQUELA SERRA, il. Taisa Borges (Peirópolis, 2013).


Lenice Gomes, que nasceu no agreste pernambucano, juntou-se ao paulista Giba Pedroza e colheram, improvisaram e arranjaram quadrinhas com quem inventa um diálogo, lembrança de moços enamorados e meninas em roda, no livro ALECRIM DOURADO E OUTROS CHEIRINHOS DE AMOR, il. Cláudio Martins (Cortez, 2011).


E Elias José convida os leitores para conhecer o cancioneiro simples e amoroso de Fernando Pessoa, a partir de exemplos colhidos do livro Quadras ao gosto popular, publicado postumamente em 1965. Elias selecionou os versos mais próximos da sintaxe, do vocabulário e da sonoridade da língua portuguesa falada e escrita no Brasil, e assim surgiu FERNANDO PESSOA: O AMOR BATE À PORTA (Paulus, 2007).

Um novo ano + poético para você!

13 de dezembro de 2014

coisas íntimas, segredos

Dezembro, tempo diverso


O final do ano trouxe-me três oportunidades para reler Augusto dos Anjos. Poeta inclassificável – para muitos dos estudiosos em história e crítica literária, não teria ele pertencido a nenhuma escola ou movimento artístico, dizem. Talvez bem pouco interesse o poeta alimentasse em fazer-se junto aos simbolistas ou parnasianos de ocasião, enquanto podia observar – inequívoco em seu modo – a carne podre dos versos e dos próprios homens.

Poeta da dor, afirmam, poeta da consciência da morte, Augusto proparoxítono, exagerado nas hipérboles, científico, filosófico, Augusto publicou um único livro, em 1912, com o título singular – Eu – reunindo textos que, anos antes, circulavam pelos jornais, familiares e colegas do liceu, faculdade e magistério... Augusto criou um lírico-eu, mais das vezes, escatológico, aos olhos de uns, porém, renovador, portanto.

Uma exposição bem aqui perto onde moro – Esdrúxulo! 100 anos da morte de Augusto de Campos, na Casa das Rosas, em São Paulo, evoca a leitura do espanto, do verme, do espírito pessimista, da boca que beija, véspera do escarro. Em diferentes espaços do pavimento térreo do casarão, a sala dedicada à cronologia do poeta é cenograficamente oclusa e preta, com letras e algumas figuras brancas – talvez, para atrair jovens leitores, alunos de cursinho – com uma byroniana rosa vermelha de gosto acetinado e veludo duvidoso. Vale, no entanto, dar um passo adiante, conhecer pela primeira vez ou reler seus versos provocativos.


As outras oportunidades para ter o poeta mais próximo, chegaram através de dois livros. Neide Medeiros Santos escreveu ERA UMA VEZ UM MENINO CHAMADO AUGUSTO (Ideia, 2014) e conta que, atrás da casa-grande do engenho onde nasceu o menino, havia um pé de tamarindo. No final do dia, embaixo da árvore, Augusto lia seus livros prediletos. “Gostava de ler, principalmente, poesia. Seu pai adquiriu alguns livros de poetas portugueses, entre eles o ‘Romanceiro’, de Almeida Garret, e o livro de poesia ‘Só’, de Antônio Nobre.”

Em quatro breves capítulos, a autora registrou a infância no Engenho Pau d’Arco, a juventude e os estudos em Recife, as andanças ao Rio de Janeiro na idade adulta e, por fim, o magistério exercido em Leopoldina, MG – um retrato “falado” do mestre memorável com o depoimento de seus alunos e outros contemporâneos. O que vai ganhando contorno é também uma faceta doméstica, religiosa, amigável e até mesmo singela da pessoa que foi Augusto de Anjos. O livro apresenta nove ilustrações de Tônio, em páginas solteiras, intercaladas ao longo do texto.


Neide Medeiros Santos também me presenteou com EU E OUTRAS POESIAS, em uma edição especial preparada pela Academia Paraibana de Letras em convênio com a editora do Senado Federal, para a qual ela elaborou um roteiro de leitura com alguns poemas de Augusto de Anjos (MVC, 2014). “Este livro”, comemora Neide, “será adotado no Estado da Paraíba e destinado aos alunos de ensino médio das escolas públicas. Procurei fazer um trabalho interdisciplinar, fugindo dos padrões que aparecem nos livros didáticos. A música e a pintura estão presentes nesse roteiro de leitura. Minha intenção foi levar o aluno a sentir a poesia de Augusto dos Anjos sem preocupação com a gramática e com o literário. É ler e sentir.”


Poeta da vulnerabilidade, sinto Augusto dos Anjos assim, poeta dos afagos íntegros que não se completam, que se desejam completos, da sombra que passeia com suas memórias. Orgânico, ontológico...
“Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...”
Em diálogo com as correntes do pensamento materialista e a metafísica, um homem híbrido, asperamente transcendental, era também – apesar do vocabulário, linguagem e temas, um poeta popular, envolvido nas próprias questões do ser e do existir. Que sabia a si próprio eterno, quando pegou do espelho em seus últimos momentos e olhando sua última imagem, exclamou: “Esta centelha que não se apaga jamais.”

AO LUAR

Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha táctil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o espaço com a minha plenitude!

Um novo ano + poético para você,
2015 com o centenário Augusto dos Anjos!

11 de dezembro de 2014

o vento é sempre bom

Dezembro, tempo de verso


Não me canso de dobrar os ouvidos sobre as CANTIGAS DE NINAR VENTO, de Gláucia de Souza, um livro com ilustrações de Cristina Biazetto, acompanhado de um disco com quinze faixas musicadas por Jorge Hermann (Kalligráphos, 2004*, Paulus, 2007). Não me canso, porque elas me chegam sempre novas!


Sabemos que sons, imagens, palavras são. Signos luminosos, e Gláucia de Souza trova brinquedos, doçuras, tristezas, e retrata a tradição em muitos versos ao modo das redondilhas em sete sílabas. Às vezes um pouco mais, às vezes menos, a forma vem livre. Livre no sabor doce-fácil, e vai brincando, trovando vai. Suas imagens brotam de uma inspiração em azul como a claridade e as cordas que tangem a noite, o dia, o céu, entre castelos e mosteiros, nos caminhos maravilhosos de um sonho...


A cantiga-título diz: para ninar vento que corre, uma trança de cabelo voando a mil e um lugares: quem poderá assim capturar o vento para dormir? Na página, um imenso pássaro com penas cor de fogo a carregar uma menina tal qual Rapunzel. Vai ela agora firme às asas, a longa trança laçando a distância e a vencer trovoada. Alegre – lá, lá... Gláucia de Souza reinventa príncipes e princesas de nosso imaginário, um tempo de acalanto, senhas e sinais, Cristina Biazetto cria reflexos bons de olhar, tomando dos voos e dos movimentos que todos guardamos no baú da memória.
“Cantiga quase sem som”

Tua voz correu lá fora,
bem em dia de virada.
Quase que ela não demora
a fugir da chuvarada...

Tua voz correndo ao longe,
não se ouve quase nada.
Parece prece de monge,
surda, leve, demorada...

Tua voz no meu ouvido
fica rouca, abafada...
Mas só nunca que eu duvido
dessa voz em mel lavada...

Trovar é assim. Trovar é encontrar uma ideia, inventar, criar. E a linha do desenho encontra a linha da melodia: os poemas tão logo nasceram, foram acolhidos no feitio de uma roda, entre cantigas de amor e de amigo, cantigas de ninar e ronda ao modo medieval. Suave é a cantiga da partida, com afetos e desejos de mãe. Em um verso, encontro um anel mágico, é a benção para a viagem que irrompe neste barco de papel, galante e musical entre a viola e o violino, bandolim, piccolo, cello, um arguto oboé, a serena flauta e uma festiva percussão, deixando bailar as vozes do barítono, um tenor, a jovem soprano e também o mezzo-soprano... Jorge Herrmann compôs gostosas melodias, Marcelo Nadruz trovou atmosferas em seus arranjos medievais. Vale a pena ler-ver-ouvir. Encantamentos para o ano inteiro.

* Dobras da Leitura 22, outubro de 2004

Um novo ano + poético para você: 2015 com
Gláucia de Souza e as Cantigas de ninar vento,
livro-CD com músicas de Jorge Hermann
il. Cristina Biazetto (Paulus, 2007).

9 de dezembro de 2014

das águas, tão ágil

Dezembro, tempo de verso


Sou um leitor que gosta de rir e talvez, por isso, goste muito de poesia para crianças. Porém – leio poucos bons poemas para crianças, enquanto outros aqui chegam sempre tão cheios de frases, receitas antigas, rimas sem imagem ou sentimento... E esqueço-os, sem descobrir com quem pretendiam brincar esses outros, versos ruins. Foi, nessa secura, porém, que ouvi alegremente Maria Augusta de Medeiros alguns anos atrás, entre bichos de água doce, criaturas do mares, seres literários:
“Serei a que canta?
Serei a que espera?
Serei a que inspira?
Serei a que encanta?”

Ainda que seguindo intimamente uma tradição que lembra e relembra Vinícius, Sidónio, aproveitando os mesmos temas, o humor e os fonemas que vêm dos animais, Maria Augusta não se intimida em explorar a transformação das palavras no próprio objeto de sua observação, como nos dois sonoros fragmentos aqui apresentados.

Frente ao pequeno leitor, há sempre o jogo da pergunta, em muitos poemas, bem como a confissão humorada do eu-lírico por trás das cenas não controlar tudo. Como é difícil focar uma foca: vira de lado, de frente, vira de costas! Mas há beleza na vida em movimento: como são molecas e malucas as marolas nas pedras costeiras, como são bonitos os olhos dos moluscos e mariscos que a poeta revela...


Ao mesmo tempo, a ilustração de Michele Iacocca mostra-se divertida, no melhor do seu traço e em cores delicadas, decorando bem o livro, sem desviar a atenção dos poemas.

O terceiro livro de Maria Augusta de Medeiros segue um programa bastante definido – a vida na água e a água que promove toda a vida, contudo de uma maneira leve, sem os resíduos de um discurso ecológico que cansam. Há um empenho e emprego muito generoso sobre a imagem e a imaginação do leitor, das cenas em movimento, dos detalhes inéditos, em meio a uma descrição simples e direta. A antologia apresenta poemas de extensão e métrica bem variadas, e seus versos... seus versos tem o feitio dos cabelos da chuva, de pingos precisos e is nos pinguins, tem ar de festa.
“Ele é um riacho que corre
Como tantos que já vi
Mas tem, na sonoridade,
Um algo que nunca ouvi:
Levando as águas em frente
Parece que está contente
Acho que o Riacho ri.”
Um novo ano + poético para você: 2015 com
Maria Augusta de Medeiros, JACARÉ COM JANELINHA: QUEM JÁ VIU QUE ME APRESENTE! E outros poemas, il. Michele Iacocca (Formato, 2009).

8 de dezembro de 2014

aguçado zelo

Dezembro, tempo de verso


Fazer poema de bichos, flores e estações do ano para crianças não é tarefa fácil. É preciso que o autor tenha lido e aprendido os versos de outros poetas – e depois esquecido as mais interessantes associações de sons, imagens e ideias a fim de não se tornar um escritor ‘protocolar’, preenchendo e quebrando linhas, copiador. Bastaria talvez apreender um jeito de lidar com as palavras, mas principalmente colocar-se sob o mesmo horizonte de textos e olhares que detém seu futuro leitor. Ora, tenho três livros de João Proteti que vim guardando, e aguardando um momento de escrever a respeito de seu trabalho.

Comecemos com um título ao gosto do oximoro, figura de linguagem que aproxima palavras discordantes: SILENCIOSO ESCARCÉU, uma coleção de haicais com ilustrações de Meri (Papirus, 2010) que também falam de infância, natureza e cidade. Com singeleza e sugestão de cor, recolho três exemplos:
Chegou o entardecer –
nos ninhos, os quero-queros
e o verbo bem-querer.

Defeito perfeito –
um pavão que fica sempre
com a cauda em leque.

O jogo de opostos parece ser uma das apostas de João Proteti, igualmente no livro CLASSIFICADOS DESCLASSIFICADOS (Papirus, 2011) que ele mesmo ilustrou, revelando um trabalho gráfico com a imagem bastante divertido.


Os temas giram em torno de um humor que se poderia dizer “ecológico existencial”, brincando com os aparentes absurdos da realidade – porém, traduzindo, uma complexa rede identitária. Poemas para bichos, plantas, reservas de mata, rios... e cidades, pontes, estacionamentos e estações de metrô!
Rio solicita
a quem se distraiu
e perdeu um sofá,
que, por gentileza,
o venha retirar.
Está em sua margem esquerda,
enroscado no que sobrou
do frondoso pé de ingá.

De brinde, pode levar
todas as outras desumanidades
que estão por lá.

Por fim, RINDO ESCONDIDO (Papirus, 2012) também com ilustrações do poeta. Nesta antologia, os versos conquistam maior fluência sobre figuras de linguagem e animais há muito tempo já conhecidas do público – no entanto, com renovado fôlego e expedientes que despertam facilmente o riso do leitor. Merecem atenção, entre outros, “Complementares”, “O leão e o vento” e...
CHUVA RÁPIDA

— Papel não combina
com chuva! —
resmungou a tartaruga.

E guardou rapidinho
o livro de poesia
sob a casca dura.

E por garantia
ainda abriu
o guarda-chuva. 
Um novo ano + poético para você:
2015 com os versos de João Proteti.

5 de dezembro de 2014

as vozes humanas, sabe?

Dezembro, tempo de verso


Poemas, às vezes, contam histórias. Pequenas confissões. Vão recompondo tudo aquilo que alguém ouve e vê. Ou inventa. Edward van de Vendel combinou o aspecto formal do gênero lírico com outras possibilidades do discurso e deu aos leitores uma narrativa em primeira pessoa, com o ritmo e a surpresa de um diário: quem o escreve é Tepper...
“Eu sou esse menino.
O menino de um olho só.
É brincadeira, viu?
Não acredita em tudo o que eles dizem.
Tenho dois olhos, verdade,
Mas um é malandro.
Ele não se mexe muito.
Por isso uso o tapa-olho.
Sobre o olho bom.”

Esse interessante eu-lírico personagem escreve sobre o cotidiano comum, incomum. Ele é bom pra escrever. Pra explicar as coisas para Lótus, uma nova colega na turma da escola. Sobre a cabana que encontrou, um dia, debaixo da ponte da linha de ferro, perto das extensas hortas dos avós. Os desenhos que ali se pode fazer nas paredes firmes. De tijolos. E escrever a respeito dos trens que passam, trovejam e retumbam, no teto. Sobre um fantasma ou um anjo esquisito que, de verdade, não existia, mas veio visitá-lo, um dia, e se chamava Zoeira.

Ao longo de quarenta bonitos poemas, ou capítulos, a trama imaginária de Tepper atrai Lótus e os leitores a uma dimensão que diz respeito às pequenas, íntimas, grandes questões existenciais do nosso mundo contemporâneo e conflituoso...


A cabana, inicialmente um lugar para ficar sozinho, onde ninguém implicasse com o olho do menino, ora, a cabana recebe a visita de dois irmãos, um menor que o outro, as mãos pretas por fora e brancas por dentro, eles chegaram através de um dia de neblina, Kiko e Flam, refugiados, explicou vovó em segredo, a mão na mão no coração, um segredo, havia um país com outras cores. De guerra, vermelho de sangue. A realidade, às vezes, se mostra mais cheia de aventuras que as histórias de um poema. Os meninos de longe viviam com a mãe, em uma casa escondida, escondida, perto da horta. Brincando os três, um dia o telefone tocou: era Zoeira.
O telefone era de mentira,
Mas fazia ring, ring.
Atendi.
Eu disse: “Alô!”.
Passei o telefone pro Flam.
“Flam”, eu disse,
“é pra você.”

E ela chegou, voz, para organizar. O importante fio, vida, telefone. Uma voz presente. Pressente? Poética é a construção. Que fala. Cada verso, ou sentença, possui a extensão máxima de oito, nove, dez palavras. Peter, pergunto eu mesmo a mim, seria essa a idade de Tepper ou seu leitor ideal? Um livro para outros também. Muitos outros. Amigos secretos. Vivos.


Um novo ano + poético para você: 2015
 com o holandês Edward van de Vendel...
ZOEIRA ESTEVE AQUI, trad. Walter Carlos Costa
il. Carll Cneut (Edições SM, 2010).

4 de dezembro de 2014

duas, três, quatro linhas

Dezembro, tempo de verso


Numa espécie de exercício com a linguagem, poetas e escritores têm colecionado frases breves e pequenas estrofes, duas, três ou quatro linhas que provocam riso, um espanto, uma dúvida, reflexão – dizendo o máximo no mínimo intervalo ou espaço gráfico possível. Pois, bem!


Fora os contos, crônicas e alguns poemas que tem caracterizado à delícia sua produção literária, Marina Colasanti deu vez ao livro CLASSIFICADOS E NEM TANTO, ilustrado com xilogravuras de Rubem Grilo (Galerinha Record, 2010). Verdadeira coleção de pérolas perdidas ou pensamentos rejeitados que o leitor adota, prova e paulatinamente comprova: nem tudo se compra pronto. Como diz, a dedicatória de Marina:

“Há gente que percorre os anúncios classificados atrás de um apartamento bem localizado, um carro do ano, um cachorro com pedigree. Mas há pessoas que buscam um tapete voador, a chave para a qual já perderam a fechadura, o endereço do amigo imaginário, o rastro da estrela da cadente. Para elas é este livro.”


Outros flagrantes para ler e passar a mente à limpo apresentam-se no livro HAICAIS PARA FILHOS E PAIS, de Leo Cunha, com projeto gráfico de Salmo Dansa (Galerinha Record, 2013). Vindo habitar, com as nuanças e novelas da família contemporânea, a forma tradicional da poesia japonesa, Leo traduz dúvidas e alegrias que cercam a vida, desde o nascimento do bebê às conquistas das mais variadas comodidades entre irmãos, as férias, os brinquedos; a televisão, o computador, a cristaleira; os demais parentes, os dias de visita e os cartões de feliz ano-novo!


À voz do “haijin” mineiro, veio juntar-se a analogia das cores e das formas escolhidas por Salmo Dansa. O projeto gráfico divide o livro em quatro seções como as quatro estações, buscando uma temperatura especial nas escalas vibrantes, outonais, sóbrias e primaveris... O artista recortou amostras de antigos catálogos de cor, justando e colando cada fragmento em um bonito e tátil efeito visual; ao mesmo tempo, permitiu-se à simplicidade, abrindo cada seção (como vemos na capa do livro) com a imagem de uma casinha com chaminé e uma árvore no quintal – símbolo tão comum aos desenhos de qualquer criança resgatando um sentimento universalmente bom.


Duas coleções de pequenos textos. Para ler com calma, compromisso nenhum. Uma página agora, outra quando der vontade. Até vale esquecer onde foram deixados os livros e reencontrá-los na estante depois.

Um novo ano para você: 2015 + poético!

2 de dezembro de 2014

e a vida, o que é?

Dezembro, tempo de verso


Na dedicatória do livro a seus três filhos, Ninfa Parreiras recorda que
O Tempo nos ensina
a fotografar as horas
a escutar os lugares
a escrever os anos
a colher com os filhos
os versos dos tempos.
E ela faz poesia com fragmentos de histórias compartilhadas no ambiente doméstico, tirando o pó das imagens que guardou em caixas no sótão da própria memória, como instantes vivos, presentes em um velho álbum de fotografias. Talvez, por isso, cada verso termine em um ponto final para separar cada coisa em sua fragrância e lugar...
“A pescaria da semana atrasada. 
O dente de leite caído.
O abraço do dia dos pais.
O aniversário do anos passado.”
E entre o tempo das coisas que são e o tempo das coisas que não voltam, cada momento amarrota o coração, diz Ninfa, com dois lagos de águas cintilantes nos olhos. Mas existe também um tempo das coisas que repetidamente ou repentinamente chegam, entre descobertas e desentendimentos, tempo bom para acertar as contas e os ponteiros do relógio. Os trinta poemas dessa coletânea são marcados pelo tique-taque cotidiano, como o achocolatado que a mão ou a mãe dissolve no leite, as brigas e brincadeiras entre irmãos, tempo de ser cada um, cada um, e tempo de ser todos juntos, uma família.


O livro é assim uma espécie de diário onde tudo se registra e cada um pode encontrar uma emoção particular. Ninguém estranhe, portanto, os versos pouco a pouco virando frases mais e mais longas a fim de estender igualmente a duração de cada minuto, mesmo pertencente a dor ou um desagrado qualquer, tempo de despedidas, tempo das pessoas que se foram...

Em seu conjunto, os poemas que começavam construídos com imagens quase inarticuladas, vão se acomodando na forma de uma breve narrativa, uma pequena crônica, silêncio que se ouve e conta no sorvete derretido, na sombra do corpo refletida no chão: tudo transformando-se conforme passam as horas do dia. O tempo, pode o leitor descobrir, é como um brinquedo que se perde, mas não se esquece, sabendo manter as cores e a magia, os sentimentos que importam. As imagens pessoais conquistam uma continuidade através da palavra. Sim, era um livro de poesia, de histórias... é agora, uma tese, quase talvez.


Um novo ano + poético para você: 2015
com Ninfa Parreiras, POEMAS DO TEMPO
il. Mariana Massarani (Paulinas, 2009).