Quando o carteiro chegou... leituras risonhas 3
Todos os contos são geralmente o mesmo conto e possuem todos as mesmas imagens sábias, quase os mesmos sabores conforme foram amadurecidos pelo tempo e as terras das várias culturas, permanecendo, na casca de seus frutos, as cores e texturas locais. Esta é uma tese bastante compreensiva de quem colheu e comparou narrativas através dos continentes, desde os primeiros folcloristas, antropólogos, viajantes e estudiosos de gabinete do século XIX, e após...
Por isso, são as imagens da palavra o que me interessa na leitura de um recente reconto de Celso Sisto, BATU, O FILHO DO REI, com ilustrações de Simone Matias (DCL, 2015), a partir de uma narrativa tradicional da Etiópia, um país no chifre da África apontando o leste...
Zemene é um jovem e corajoso caçador, mas poderia ser cavaleiro, um mercador, um nobre perdido em viagens pelos contos europeus ou árabes. O nome Zemene significa ‘Príncipe’ e é como aqueles que realmente andam à frente, desde o princípio. Ele entra em uma caverna escura e lá encontra Batu, o menino, que é como um gênio, um elfo, um exu, a sorte, a parca, a fada, um animal, a alma penada de um amigo ou parente morto, que irá mudar o destino do herói se – e somente se – puder salvar o pequeno indefeso da enorme serpente de sete cabeças e levá-lo à terra distante de seus pais, onde Zemene poderá requerer um gorro vermelho que torna qualquer pessoa invisível – como Saci e Perseu – e uma lâmpada de lata, aparentemente de tão pouca valia que, no entanto, realiza todos os desejos de riqueza material em ouro e prata...
Tais imagens abrem o diálogo com diferentes saberes. E é bonito aprender a brincar por esses caminhos a fim de não perdermos nossa humanidade. Um conto são todos os outros contos, iluminando-nos a própria ignorância rumo à realização de um importante feito em nós mesmos – a resignação, a esperança e a obediência, tomar o auxílio ao próximo como uma aventura, ventura ou missão...
Das imagens tecidas pelo conto, vale abrir uma mini-galeria para a ilustração de Simone Matias. Algo que inúmeros contos tradicionais ensinam é jamais desprezar o conselho dos amigos insuspeitados...
Talvez BATU, O FILHO DO REI fosse o aguardado livro de Celso Sisto para mostrar outros títulos que há bom tempo Dobras da Leitura recebeu. Como assegura o velho provérbio – a tempestade de areia passa, as estrelas permanecem –, será testemunho da perenidade das histórias tradicionais de todos os povos o generoso volume MÃE ÁFRICA: MITOS, LENDAS, FÁBULAS E CONTOS (Paulus, 2007) com ilustrações do próprio autor. A reunião de trinta e uma narrativas seguiu principalmente o critério da beleza – da magia, da identidade, da poesia dos nomes diferentes com significados encantatórios e musicais...
Outros dois livros conduzem o leitor à África Ocidental e, mais especificamente, ao Senegal. O CASAMENTO DA PRINCESA, também ilustrado por Simone Matias (Prumo, 2009), tem cores suaves de rosa, vermelho, roxo terra, cor de laranja e o contraste do branco pelas páginas para contar visualmente a história da formosa Abena, com quem a Chuva e o Fogo desejam se casar. O primeiro pretendente chegou com seu olhar molhado e palavras delicadas como água no bico de pássaros. Porém, o Fogo ao pai da moça deu provas de seu poder... O caminho do amor às vezes são cinzas deixadas pra trás, mas mesmo o fogo do Fogo extingue-se com a Temperança...
Por sua vez, RAIO DE SOL, RAIO DE LUA, com imagens de Maurício Negro (Prumo, 2011), relata acontecimentos de um tempo em que o Sol e a Lua eram crianças, vivendo com suas famílias na Terra. É verdadeiramente um conto etiológico que explica por que, desrespeitando a ética e o tabu de não espiar a própria mãe nua durante o banho, o Sol e a Lua foram separados de suas andanças e brincadeiras...
25 de junho de 2015
18 de junho de 2015
por aí flui, por aí voltei
Quando o carteiro chegou... leituras risonhas 2
Há tanto tempo tento ler um livro para crianças de Cyro de Mattos, mas confesso: desisto a meio caminho, volto atrás, volto ao livro, persisto, insisto, volto às primeiras páginas, enrolo-me depois em outros afazeres. Um livro contava a história de um boi, outro tinha a capa verde e a palavra roda no título. Ora, bois, ora roda, têm tudo a ver comigo, e gosto também do estilo, um trabalho consistente com a linguagem, aí nenhum problema. Ou o problema, porque a voz do texto como a música guarda uma tonalidade, um ritmo. Ambos os textos não me convenciam como literatura infantil. Eram canções de velho. Para leitores velhos, como também sou.
Abro hoje O QUE EU VI POR AÍ, sim de Cyro de Mattos, com ilustrações da polonesa Marta Ignerska e o projeto gráfico de Monique Sena (Biruta, 2014), e sinto-me um pouco mais em paz. A voz do texto é igualmente mansa e soa como um convite às horas de contemplação, assim que o sol acorda, com seu olho enorme, onde o céu faz uma curva e vai empurrando as sombras, inventando leões rugindo nas ondas com suas jubas brancas... Sim, respinga, no rendilhado dessa prosa poética, um olhar de criança que, como o sol, pode se admirar no espelho que ele mesmo espalha na imensidão do mar.
Sim, a descrição do amanhecer não é um objeto novo na estante de meus livros. Nem a apreciação das nuvens que rolam acima, transformando-se. Mas existe, no entanto, uma necessidade de aprender a observar a natureza de uma maneira descompromissada, sem o agito do cotidiano. E talvez a lição comece durante a infância, ou no amanhecer de um dia.
Cyro de Mattos passeia do horizonte à mata, à chuva da tarde, às figuras da noite. Formas e formigas enfileiram-se em seu texto que soa, enfim, como uma oração que exalta a vida, incansável, de flores e insetos, cores e aves, água e pedras em uma correnteza de imagens. Olhar as belezas do mundo faz lembrar outros textos, como O MENINO MAIS BONITO DO MUNDO, de Ziraldo (1983). Porém aqui a narrativa mítica cede lugar às cenas engraçadas, quando o olhar contemplativo de menino assume a proposição de imagens imaginadas e lembranças: um jogador anão no meio do campo fazendo um gol no goleiro grandão, uma velhinha (que não assobia) mas chupa cana com um dente só, palhaços, presepadas, uma macaca (que não é caixeira de uma venda) mas faz toda a família dormir...
Desde a capa do livro, já se anunciava a posição de expectador de um grande cinema. O que há de diferente é a sugestão da criança narrar e também editar seu próprio filme, após a aprendizagem das coisas simples, leves e engraçadas. Tudo isso explica as ilustrações de Ignerska, as figuras de muitos braços e olhos que povoam as páginas do livro, sempre em movimento. Apenas o projeto gráfico poderia ser mais suave, claro e aberto à intervenção dos leitores. Os mais novos, não eu. Sempre em movimento.
P.S. Também Manuel Filho possui um livro com título bastante parecido:
O que vi por aí: andanças e descobertas de um escritor pelo Brasil, il. Marcello Araujo (Arvoredo, 2013) para jovens leitores, que eu vi por aí, dia 1º de julho. Foto: Patrícia Machado/Facebook.
Há tanto tempo tento ler um livro para crianças de Cyro de Mattos, mas confesso: desisto a meio caminho, volto atrás, volto ao livro, persisto, insisto, volto às primeiras páginas, enrolo-me depois em outros afazeres. Um livro contava a história de um boi, outro tinha a capa verde e a palavra roda no título. Ora, bois, ora roda, têm tudo a ver comigo, e gosto também do estilo, um trabalho consistente com a linguagem, aí nenhum problema. Ou o problema, porque a voz do texto como a música guarda uma tonalidade, um ritmo. Ambos os textos não me convenciam como literatura infantil. Eram canções de velho. Para leitores velhos, como também sou.
Abro hoje O QUE EU VI POR AÍ, sim de Cyro de Mattos, com ilustrações da polonesa Marta Ignerska e o projeto gráfico de Monique Sena (Biruta, 2014), e sinto-me um pouco mais em paz. A voz do texto é igualmente mansa e soa como um convite às horas de contemplação, assim que o sol acorda, com seu olho enorme, onde o céu faz uma curva e vai empurrando as sombras, inventando leões rugindo nas ondas com suas jubas brancas... Sim, respinga, no rendilhado dessa prosa poética, um olhar de criança que, como o sol, pode se admirar no espelho que ele mesmo espalha na imensidão do mar.
Sim, a descrição do amanhecer não é um objeto novo na estante de meus livros. Nem a apreciação das nuvens que rolam acima, transformando-se. Mas existe, no entanto, uma necessidade de aprender a observar a natureza de uma maneira descompromissada, sem o agito do cotidiano. E talvez a lição comece durante a infância, ou no amanhecer de um dia.
Cyro de Mattos passeia do horizonte à mata, à chuva da tarde, às figuras da noite. Formas e formigas enfileiram-se em seu texto que soa, enfim, como uma oração que exalta a vida, incansável, de flores e insetos, cores e aves, água e pedras em uma correnteza de imagens. Olhar as belezas do mundo faz lembrar outros textos, como O MENINO MAIS BONITO DO MUNDO, de Ziraldo (1983). Porém aqui a narrativa mítica cede lugar às cenas engraçadas, quando o olhar contemplativo de menino assume a proposição de imagens imaginadas e lembranças: um jogador anão no meio do campo fazendo um gol no goleiro grandão, uma velhinha (que não assobia) mas chupa cana com um dente só, palhaços, presepadas, uma macaca (que não é caixeira de uma venda) mas faz toda a família dormir...
Desde a capa do livro, já se anunciava a posição de expectador de um grande cinema. O que há de diferente é a sugestão da criança narrar e também editar seu próprio filme, após a aprendizagem das coisas simples, leves e engraçadas. Tudo isso explica as ilustrações de Ignerska, as figuras de muitos braços e olhos que povoam as páginas do livro, sempre em movimento. Apenas o projeto gráfico poderia ser mais suave, claro e aberto à intervenção dos leitores. Os mais novos, não eu. Sempre em movimento.
* * *
P.S. Também Manuel Filho possui um livro com título bastante parecido:
O que vi por aí: andanças e descobertas de um escritor pelo Brasil, il. Marcello Araujo (Arvoredo, 2013) para jovens leitores, que eu vi por aí, dia 1º de julho. Foto: Patrícia Machado/Facebook.
11 de junho de 2015
imagens de infância, no entanto
Quando o carteiro chegou... leituras risonhas 1
O primeiro envelope da pilha foi o último a chegar.
Edições SM. Começo com três livros para pequenos leitores.
ESPAGUETE, de Davide Calì (2008, trad. Belisa Monteiro, 2015) remete às primeiras brincadeiras com as comidas à frente do bebê. Um prato de macarrão não apenas alimenta, mas servirá de motivação para jogos com as formas e a linguagem. O fio de espaguete enrola-se no garfo como um ninho de passarinhos, ou estica-se como as cordas do violão. O fio do macarrão é como. O fio do macarrão eu como. No jogo sonoro da paronomásia, como ocorre no discurso publicitário, tudo o que antecede a conjunção comparativa ou o verbo permanece oculto. Mas a função apelativa é inequívoca, com o desenho de uma boca devoradora, ao final do livro: Como espaguete! Para alegria e alívio dos pais.
FESTA À FANTASIA, de Inés Trigub (2007, trad. Graziela Costa Pinto, 2015) retoma um tema bastante comum dos livros para crianças: animais que se transvestem de outros animais. O efeito é o trocadilho visual, apoiado em uma frase legenda e o jogo é proposto em quatro pares de páginas. Mas... sempre aparece um mas para iniciar uma narrativa simples: a minhoca também queria ir à festa, mas não sabia que fantasia usar. Para tirá-la do buraco, do problema, da aflição, formigas enfileiradas erguem a minhoca e a ajudam transformar-se em uma centopeia. Pronto, a festa foi superdivertida...
TÁ TUDO BEM, NENÉM!, de Emmanuelle Houdart (2009, trad. Fabio Weintraub, 2015), resgata a fala cadenciada da antiga fórmula da parlenda, com perguntas percorrendo o cotidiano da criança, entre os objetos que lhe são próximos e um inequívoco sentimento de perda que começa a nutrir. Quem pegou minha mamadeira? E as respostas surgem regadas de conforto e seres mágicos. Tá tudo bem, neném: foi a sereia de mãos ligeiras. As ilustrações de traços edulcorados e suave colorido vão revelando o imaginário povoado da primeira infância com dragão empilhando cubos, diabinho gorducho no trono atrás da cortina do banheiro, dona unicórnio lendo os livros do neném...
Três livros para pequenos leitores, três traduções.
Recebo (outra vez) a antologia de contos selecionados e comentados por Luiz Ruffato, LEITURAS DO ESCRITOR, com ilustrações de Mariana Zanetti em página inteira intercalando-se às narrativas ao modo de abertura (2008, 3.ed. 2015). Um parágrafo escolho, com muitos temas e imagens:
O'ABRE ASPAS* (César Vallejo, trad. Reynaldo Damazio, 2015: 95)
O primeiro envelope da pilha foi o último a chegar.
Edições SM. Começo com três livros para pequenos leitores.
ESPAGUETE, de Davide Calì (2008, trad. Belisa Monteiro, 2015) remete às primeiras brincadeiras com as comidas à frente do bebê. Um prato de macarrão não apenas alimenta, mas servirá de motivação para jogos com as formas e a linguagem. O fio de espaguete enrola-se no garfo como um ninho de passarinhos, ou estica-se como as cordas do violão. O fio do macarrão é como. O fio do macarrão eu como. No jogo sonoro da paronomásia, como ocorre no discurso publicitário, tudo o que antecede a conjunção comparativa ou o verbo permanece oculto. Mas a função apelativa é inequívoca, com o desenho de uma boca devoradora, ao final do livro: Como espaguete! Para alegria e alívio dos pais.
FESTA À FANTASIA, de Inés Trigub (2007, trad. Graziela Costa Pinto, 2015) retoma um tema bastante comum dos livros para crianças: animais que se transvestem de outros animais. O efeito é o trocadilho visual, apoiado em uma frase legenda e o jogo é proposto em quatro pares de páginas. Mas... sempre aparece um mas para iniciar uma narrativa simples: a minhoca também queria ir à festa, mas não sabia que fantasia usar. Para tirá-la do buraco, do problema, da aflição, formigas enfileiradas erguem a minhoca e a ajudam transformar-se em uma centopeia. Pronto, a festa foi superdivertida...
TÁ TUDO BEM, NENÉM!, de Emmanuelle Houdart (2009, trad. Fabio Weintraub, 2015), resgata a fala cadenciada da antiga fórmula da parlenda, com perguntas percorrendo o cotidiano da criança, entre os objetos que lhe são próximos e um inequívoco sentimento de perda que começa a nutrir. Quem pegou minha mamadeira? E as respostas surgem regadas de conforto e seres mágicos. Tá tudo bem, neném: foi a sereia de mãos ligeiras. As ilustrações de traços edulcorados e suave colorido vão revelando o imaginário povoado da primeira infância com dragão empilhando cubos, diabinho gorducho no trono atrás da cortina do banheiro, dona unicórnio lendo os livros do neném...
Três livros para pequenos leitores, três traduções.
Recebo (outra vez) a antologia de contos selecionados e comentados por Luiz Ruffato, LEITURAS DO ESCRITOR, com ilustrações de Mariana Zanetti em página inteira intercalando-se às narrativas ao modo de abertura (2008, 3.ed. 2015). Um parágrafo escolho, com muitos temas e imagens:
Yunque entediou-se. A que horas iria para casa? Mas Humberto bateria nele na saída da escola. E sua mãe falaria ao menino Humberto: “Não, pequeno. Não bata em Paquito. Não seja tão mau.” E não diria mais nada. No entanto, Paco ficaria com a perna vermelha pelo chute de Humberto. Paco choraria. Porque ninguém fazia nada a Humberto. E porque o patrão e a patroa gostavam muito de Humberto e Paco Yunque sofria por apanhar tanto de Humberto. Todos, todos, todos tinham medo de Humberto e de seus pais. Todos. Todos. Todos. O professor também. A cozinheira, sua filha. A mãe de Paco. Venâncio com seu avental. Maria que lava as bacias e que ontem quebrou uma em três grandes pedaços. O patrão bateria também no pai de Paco Yunque? Que coisa feia essa do patrão e do menino Humberto. Paco queria chorar. Quando o professor acabaria de escrever na lousa?
O'ABRE ASPAS* (César Vallejo, trad. Reynaldo Damazio, 2015: 95)
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