25 de novembro de 2010

enquanto vibra agudo um violino

crônica de leitura de o’sagae


Algumas obras trazem com elas o silêncio da leitura como resposta à realidade imediata que traduzem. Basta um quase pensamento numa palavra que se quer articular e — a qualidade do sentimento se esvai! Respirar é preciso, e é preciso mais um minuto para quebrar o pacto com a ficção para reencontrar a vida nossa, encantado, movido e externo ao mundo cru dos personagens — na segurança que apenas existe fora do livro, acreditamos. A literatura mais generosa nos faz vibrar, tremer, sentir outras vidas. Por um triz.

Por isso, Angela-Lago nos dá um violino. Com Miúdo tocando, “fica mais fácil atravessar a noite.” E viver. As quatro estações. Viver ali no morro, ouvindo um sonho antigo, singelo, barroco, viver se acalentando de silêncio em silêncio que costura uma nota na outra. Talvez porque cada um aqui seja miúdo ainda para enfrentar o que mais dói, a traição, a angústia, a tirania fraterna, a doença, a morfina, a ordem da mãe: “Vá, meu filho. E não volte.” Tá tudo na voz de uma Maria, mas acreditem, parece que o violino vai falar.



E o violino também fala a língua de Oycher, o caçula todo mudo de uma família muito pobre. Seu nome, em iídice, significa “riqueza” — mas, o que seus pais mais desejavam e pediam era uma vida de paz e saciedade, levando Deus em cada coração. “Acima de suas cabeças, havia uma mistura de telhas, palha e sucata que não passava de uma cobertura de remendo. Isso não impedia que ela lhes servisse de teto, além do qual havia um sólido céu, estrelas escrupulosas e a confiável eternidade.”

Dois livros para sentir a vibração de cada palavra: trama de silêncio e histórias humanas. Não importa a geografia ou o tempo, histórias assim acontecem. E talvez hoje necessitassem acontecer para tirar, da alma, a miséria.


De Susie Morgenstern, com ilustrações de Chen Jian Hong, O dom (Edições SM, 2010), trad. Pádua Fernandes. O livro traz encartado um CD com narração do ator Caco Ciocler, música de J. S. Bach, Niccolò Paganini e Louis Dunoyer de Segonzac, compositor que responde pela concepção de repertório e montagem em formato de áudio-ficção.


De Angela-Lago, Marginal à esquerda (RHJ, 2009) conquistou o Hors-Concours do Prêmio FNLIJ: Categoria Jovem (Prêmio Orígenes Lessa), Prêmio ABL – Academia Brasileira do Livro: Literatura Infanto-Juvenil 2010, Prêmio Jabuti de Ilustração e Prêmio Jabuti de Melhor Livro Juvenil. A capa do livro caprichosamente apresenta um recorte imitando um “ouvido do violino” — saem, por essa abertura característica em f, os sons do corpo do instrumento: que saibamos ouvir sua mensagem.



P.S. hoje* quero acreditar que existam possibilidades na arte, não como refúgio, diante das situações já instaladas, mas como um caminho que regenera os sentimentos e nos faz antecipar o bem que poderemos alcançar.

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