Todos os relógios da velha estação de trem de Paris jamais param ou atrasam à chegada e partida dos passageiros. As pessoas que ali transitam não desconfiam, no entanto, que a sincronia mágica dos ponteiros seja mantida por um garoto, apenas um garoto — Hugo Cabret. Diariamente, ele percorre passagens quase secretas e corredores mal iluminados por trás das paredes da estação e verifica silenciosamente o mecanismo de cobre de cada relógio. Diligentemente, ele inclina a cabeça para ouvir as batidas, pinga gotas de óleo nas engrenagens e, seguro da cadência regular, segue adiante sem perder um segundo, um minuto... apressadamente!
Com olhos claros e cabelos revoltos, Hugo entra e sai pelos dutos de ventilação, como se fosse invisível. Ninguém o vê, ninguém mesmo perguntaria como é possível a exatidão dos relógios — mas o velho da loja de brinquedos parece mesmo andar a certas desconfianças. Afinal, alma nenhuma de outro mundo viria tão sistematicamente roubar-lhe os pequenos e engenhosos bonecos de corda, graça e movimento...
Pois é Hugo o pequeno ladrão. Ele sempre traz em seus bolsos dezenas de pecinhas de metal que retira dos brinquedos e um pequeno caderno de capa puída, cheio de esquemas, desenhos e estranhas invenções — como a máquina de aparência humana que o menino esconde num dos cômodos secretos da estação! À noite, Cabret se esmera em reconstruir o misterioso autômato, na esperança de revelar a mensagem guardada entre seus mecanismos. No entanto, não sabe por quanto tempo conseguirá manter seus planos... O velho da loja de brinquedos está a espreita, fingindo dormir.
Ambientada na cidade luz de 1931, A invenção de Hugo Cabret, de Brian Selznick, com ilustrações do próprio autor (Edições SM, 2007), é uma homenagem aos primeiros anos do cinema, na articulação original entre a trama narrativa e sua apresentação gráfica. Em páginas tintadas de preto, os para-textos do livro são dispostos como antigos cartazes emoldurados de filmes mudos e, após uma breve introdução, subscrita pelo estranho nome do professor H. Alcofrisbas, os leitores são convidados a imaginarem-se sentados em uma sala escura. A primeira sequência da história projeta-se inteiramente nas imagens abertas em dupla página e o olhar compreende os movimentos da câmera, desliza sorrateiramente através do zoom que entra pelos cenários parisienses, fecha closes, foca inserts, justapõe cenas pelas viradas no eixo da câmera. Com estratégias de montagem cinematográfica, o quadro seguinte é tão somente uma página imprensa convencionalmente como qualquer romance ou novela.
Mais do que códigos, Brian Selznick opera com duas expressivas linguagens: é preciso estar atento para o fato de a imagem não se comportar meramente como ilustração, pois suas sequências funcionam como texto visual, justapostas aos entrechos verbalmente escritos, e assume diferentes funções narrativas independentes, desde a descrição vertida em informações visuais à dilatação do tempo e da atmosfera da história. Com uma feitura intricada, a obra tem sido apresentada ao público como “graphic novel”, ou uma mistura bem sucedida de romance com story-board e picture book. No entanto, não é bem história em quadrinhos, nem livro de imagem com que nos habituamos, e faltam termos claros para definir o mundo inventado no livro de Hugo Cabret.
Lançado nos Estados Unidos pela Scholastic Press, o livro conquistou o Quill Award 2007, na categoria literatura para crianças e jovens, com aplausos da crítica e o reconhecimento de uma obra-prima que restaura o glamour da sétima arte em suas páginas. Curioso e emocionante em seu próprio enredo, a narração verbal é conduzida por uma sintaxe muito fácil e fluente, permitindo-nos apostar em leitores a partir dos dez anos: sem qualquer limite de idade, o encantamento dessas invenções e seus ritmos heroicos resultam em um “bom filme” para todos.
* Extraído de Dobras da Leitura 49: Vitrina Mundi, outubro de 2007.
** Três capítulos podem ser lidos integralmente na [página promocional] do livro.
P.S. Quando escrevi a resenha, cinco anos atrás, foi intencional esconder o nome de alguns personagens. Não gostaria de tirar a surpresa de descobrir a assinatura abaixo do desenho realizado por um autômato. Adivinhar ou prever acontecimentos é parte do jogo que a leitura oferece e, nesta obra, um coadjuvante necessário para fazer avançar as páginas sob nosso olhar, revelando sua própria fantasmagoria: voltamos ao tempo de mágicos espetaculares, ilusionismo, técnica e arte, o cinema nascente. Creio que o livro tenha mais ritmo, o ritmo da emoção que o leitor imprime, suporta ou exige. O filme carrega o tempo de um terceiro, o seu diretor, mas encanta pela invenção singular do movimento colorido, das imagens que brotam de outras imagens, do profundo tiquetaquear das máquinas.
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