Alguns livros são feitos de pura emoção, acrescentando, aos poucos, ao discurso, em fogo brando, um suspiro e mais outro, descobertas boreais e úmido sangue correndo esperançoso às veias do leitor. E o primeiro título juvenil de Eloí Elisabet Bocheco, BEATRIZ EM TRÂNSITO, vencedor da terceira edição do Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana (Porto Alegre, 2005), assim se entrega: sem medo de invadir a distância, tocar os afetos, tomar nossa respiração (meu coração viu tudo, alerta a narradora) e você — você vai se emocionar!
Beatriz e seus parentes vivem de muitas mudanças pela vida, de cidade em cidade. Por isso, tem sempre casa nova pelo caminho e a necessidade maior de se desacostumar do costume dos mesmos lugares. E das paisagens internas que só para quem não quer ver parecem quase sempre iguais, mas movendo se vão com o talismã do tempo e da compreensão, ao vento do próprio destino. Ora, essa coisa de mudar é gosto que nasce dentro de certas pessoas. O avô curtia viagens e, de silêncio bem curtido, virou tropeiro de bois celestiais. A família, a família estacionou em Santo Antônio dos Campos e, desde então, a avó cuida da menina como se criança sem mãe fosse de vidro. Moravam juntos e juntos mudavam, de tanto em tanto, a tia Leonor, tia Rosana, tio Pedro, Eduardo, Lia...
Numa das escolas que conheceu, Biazinha (detesto que me chamem de Biazinha) ficou de olho assim grudado no armário bege de livros guardados de Guiomar, uma professora que sabia misturar aula e vida. Foi quando conheceu Samuel, um menino em trânsito sobre sua cadeira de rodas com jeitão de quem havia lido montanhas de livros, tantas paisagens ele conhecia! Depois, será Samuel seu melhor amigo correspondente. Melhor não fosse, nós até poderíamos pensar. Melhor seria não tê-lo conhecido, Beatriz até poderia pensar. Porque a saudade também existe para doer. E perdoar. Em outra escola, chegará Mariana de longe, com medo trancado que não pode abrir feito pote de barro que “dentro tinha coisa que chacoalhava, tilintava, farfalhava”.
Capítulo a capítulo, a história de Beatriz se descobre em um verdadeiro ‘livro de admirações’ por outro livres, como inventaram a menina e seu grande amigo, e coube à Autora realizar, obediente ao desejo dos personagens, através da urdidura da palavra. Tem momentos para suspirar um jardim inteiro (Sento na escada da varanda pra esperar a boca da noite soltar os pirilampos.) No entanto, melhor que contar o segredo dessas pessoas, é contar que essas pessoas todas têm segredos: vivos, dentro e fora da ficção. BEATRIZ EM TRÂNSITO encerra-se com um aceno de adeus e amizade, texto de encantos e asperezas em equilíbrio, denso e leve como a vida, mais uma pitada de umas coisas que se repetem e outras que nunca mais acontecerão.
« Devagarinho fomos saindo. Decerto a alma de minha mãe ficou contente com tanta flor bonita
só pra ela. Me deu medo que as outras almas ficassem com ciúme porque não ganharam flor e viessem me pegar no meio da noite pra reclamar. Tinha tanta alma ali que era preciso um campo inteiro de flor. Nem olhei pra trás de medo desse pensamento não me largar mais até em casa e depois de chegar em casa também. Acho que a minha mãe me protegeu porque,
dum ponto em diante da estrada, o pensamento se foi não sei pra onde. »
* Resenha extraída do site Dobras da Leitura, por ocasião da publicação do texto pela editora Nova Prova, 2005, com a capa de Thanara Schonardie. A obra foi reeditada com ilustrações de João Lin (Dimensão, 2007).
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